Bartolomeu Conde, escrito no Natal de 1993.

NARRATIVA LÍRICA dedicada às professoras D. Gorete e D. Conceição e aos alunos da Telescola de Sarrazola no NATAL de 1993.


SARRAZOLA é uma das aldeias mais castiças de todo o BAIXO-VOUGA!

O Rio que banha SARRAZOLA, quando nasceu e era pequenino — o bebé VOUGUINHA — logo olhou, do Alto da Serra da LAPA, para o mar, que era o seu destino, e ficou maravilhado com o panorama, pois perto do mar viu uma linda aldeia, a mais linda que podia imaginar...

E logo ganhou forças suficientes — era então já o formoso RIO VOUGA —, para deixar os penhascos onde nasceu, perto do Santuário de NOSSA SE­NHORA DA LAPA.

Desceu pela serra abaixo, aos trambolhões, umas vezes escondido entre giestas e pinheiros, outras vezes entoando ao Sol canções poéticas de louvor a terras bonitas como S. Pedro do Sul (A Sintra da Beira), Vouzela, S. João de Loure, Frossos, Angeja e CACIA... até descansar no colo da sua amada Sarrazola! [1]

Moço atrevido, o VOUGA, pelo caminho, esteve preso de amores por Angeja e Frossos, onde até fez cama para se deitar — essa bela PATEIRA DE FROSSOS — mas o seu coração já tinha dono! O seu amor de perdição, a sua mais louca paixão era a linda SARRAZOLA!

E os dois — o VOUGA e SARRAZOLA —, quando se encontraram, ficaram logo agarradinhos um ao outro, num maravilhoso encantamento. Ele, cansado da jornada, abandonou-se aos carinhos da acolhedora aldeia e, na volúpia do acolhimento, estendeu com a mais subtil meiguice os seus dois braços líquidos: um veio abraçar a cinta de SARRAZOLA peIa RIBEIRA; o outro é o misterioso RIO DAS MÓS, e assim enlaçou para sempre a sua predilecta namorada.  

E nós, que fomos criados em SARRAZOLA, que aqui aprendemos a ler, que aqui brincámos e aqui fomos abençoados por esta santa união, somos por isso uns príncipes deste reino. E também por isso o VOUGA é o nosso REI, o nosso melhor amigo, aquele que tudo deu a SARRAZOLA: um Rio cheio de peixe, com barbos, pimpões, enguias, ruivacos e até carpas; a sua água regava as marinhas onde crescia viçoso o arroz da terra, tão apreciado em arroz doce; os salgueiros que abundavam nas suas margens... boa lenha para fazer o caldo [2] e para nos aquecer à lareira nas noites de inverno; e nos campos marginais crescia o milho, o trigo, a cevada e as abóboras com que se engordava o porco e se enchia a salgadeira; e quando as serras despejavam chuvadas torrenciais, lá o VOUGA estendia, como pai carinhoso, a sua manta de natas, maná de estrume vivificante para o desenvolvimento de boas pastagens, comedoria apetecida por cavalos e vacas [3], animais gratificantes e grandes e prestimosos auxiliares do Homem nos cansativos trabalhos da lavoura.

E naquele abraço que vinha dar à RIBEIRA, o VOUGA, sempre utilitário, tomava ares de aprazível piscina para regalo dos rapazes que, depois da Escola, ali vinham aprender a nadar; e era ali também, onde as mulheres lavavam a roupa, que as raparigas vinham à noite (noites sem luar...), no verão, em compridas camisas de estopa, lavar o corpo e refrescar-se de um dia de calor apanhado na monda do arroz!

Os rapazes, que as espreitavam a montante, metiam-se à água, rio-abaixo, silenciosos e matreiros, com a cabeça envolvida em ervas aquáticas (rabos de gato) e assim, mascarados, deslizavam suavemente até às raparigas, para gáudio deles e gritinhos assustadiços delas!

Como era colorida a vida fluvial de há 70/80 anos! Jovens a pastorear o gado nas tapadas marginais e a ensaiarem os primeiros namoricos, cantando e dançando, enquanto passavam os barcos — mercantéis e moliceiros — ora empurrados à vara pelos barqueiros, ora deslizando, vaidosos como cisnes, de velas enfunadas ao vento, subindo e descendo o Rio, levando prá serra o peixe fresco do “nosso mar”, o saboroso sal de Aveiro e o delicioso marisco da Ria... ou, de regresso, rio-abaixo, ajoujados de pipas de vinho, lenha, carqueja e fruta, para Ílhavo, Aveiro e Murtosa!

“O Rio Vouga, — dizia o nonagenário António Carapinheira — no meu tempo de rapaz, era uma festa!” [4]

Era no tempo em que as enguias subiam o Rio em fieiras intermináveis, para alegria dos lavradores-pescadores, que armavam os seus galrichos e bitorões.

Por tudo isto, o Vouga, encantadora obra da Natureza — a grande Mãe de tudo — foi o nosso encanto, a mais próspera dádiva de Deus, autêntica riqueza cheia de graça! Um céu!

Notas:

 

[1] — O Vouga, nos 3 ou 4 Km que bordeja SARRAZOLA, tem apenas o desnível de 1 metro, pelo que passa vagarosamente; já o poeta António Correia de Oliveira cantou esse vagar.

 

            OLHA O VOUGA ENTRE VERDURAS!
            COMO VAI... DEVAGARINHO...
            PARECE QUE VAI PASMADO
            DE VER TÃO LINDO CAMINHO!

 

[2] — A lenha de salgueiro é a mais aconselhada para fazer os famosos “rojões de porco” em tachos de cobre: não faz fumo e arde em morrinha.

 

[3] — Em tempos recuados — séc. XVIII e XIX — SARRAZOLA criava muito gado vacum e cavalar. Actualmente ainda há alguns criadores desse gado, mas muito longe de atingir os níveis de produção antigos.

 

[4] — Grupos de rapazes e raparigas de Aveiro, com as suas famílias, vinham de barco até às margens do Vouga em Cacia e Sarrazola, onde acampavam e faziam arraial, com musicata e danças, algumas vezes até com piano!

Até havia quem da margem perguntasse aos barqueiros que passavam no Rio: “o corno leva azeite?”

De seguida, uma troca de palavras a roçar pelo insulto, com grande galhofa de ambas as partes...

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