CONFERENCISTA (Entra na sala,
aparvalhado e cambaleante. Pára, reflecte, e dirige-se a um
espectador) — É aqui que vai haver uma conferência?
ESPECTADOR — É sim! Mas ainda não
chegou o conferencista. Estamos à espera dele...
CONFERENCISTA — O conferencista sou eu.
(Sempre empertigado, dirige-se para o palco e ocupa o
lugar em frente aos espectadores. Assoa-se, fazendo uma grande
barulheira, pigarreia, pega no enorme rolo com o discurso e
desenrola-o, lentamente, patenteando diante do público uma longa
tira de papel. Após uma breve pausa, olha atentamente toda a
plateia. Toma uma pose solene e inicia o discurso).
Estimadas damas e estimados cavalheiros. (Uma breve pausa)
Peço desculpa por ter chegado um pouco atrasado. (Outra
pausa, parecendo que está a pensar numa desculpa) À
última hora, tive de fazer certas alterações no discurso que
tinha composto. (Outra breve pausa) Tive que fazer
certas alterações, pois pretendo analisar e desenvolver
concretamente o tema que me foi indicado pela minha mulher. O
tema é este: «Os malefícios do álcool». Vou-o abordar pelo
método técnico-científico, ou não será muito científico, mas que
tenha cariz de o ser, assim me foi imposto pela minha mulher.
Um tema destes, pelas suas características, obrigar-me-á a
abordar as suas muitas e complexas vertentes, umas positivas e
outras negativas, concernentes ao problema do álcool, como aliás
acontece com todos os problemas — com os seus prós e contras, o
verso e o reverso. (Vai espreitar a ver se vê a mulher)
Ainda lá não vem... E permitam-me um desabafo: eu estou aqui por
exigência da minha mulher, a Gertrudes...
ESPECTADOR — A beata?
CONFERENCISTA — Sim. É essa. Aquela que
está à frente da Liga de Emancipação Feminina. E acha que o
álcool — o vinho, sim, o vinho — é o motivo principal que leva o
homem a ser em casa um ditador. Que eu, pobre de mim, nunca fui
um ditador... agora ditador... tá bem, tá bem!... ela até me
bate quando vê nódoas de vinho na camisa e chama-me nomes: seu
porco sujo, seu borracho, seu sebento, seu mal-amanhado... Eu
sei lá quantos nomes me chama! É bem verdade que com a idade e a
falta de dentes, deixo pingar vinho na roupa... (à parte)
Ouço passos. Será ela?
ESPECTADOR — Não. Esteja descansado...
Eu aviso, se ela aparecer.
CONFERENCISTA — Já tenho a boca seca
(Bebe, arrota. De cada vez que bebe uma golada, solta um
«ah!» prolongado) Bem, vamos ao discurso. Como ia
dizendo, o tema da conferência é o vinho... O vinho e os seus
derivados. Como todos sabem, o vinho é uma bebida feita de
fruta, da uva da videira, planta originária do Oriente, da
família das vitácias, que o botânico Lineu sincopou para
vitis e a que os gauleses chamam champanhe, não sei porquê!
ESPECTADOR — Oh, gentes, isto é que é
saber!...
CONFERENCISTA — Se duvidam, leiam a
enciclopédia... (conferencista tira papeis de um bolso,
vira-os e revira-os, selecciona um e mostra-o aos assistentes)
Estão a ver? Tenho aqui a fotocópia. Está aqui. (Vira a
folha para o público) Estão a ver? Nas enciclopédias
encontra-se tudo o que é preciso saber. Voltando ao assunto: nem
toda a videira é de casta vitis pura! Não! Nas videiras,
tal como nas famílias humanas, há filhos legítimos e filhos
ilegítimos. A propósito: o vinho aqui é de Cacia. É muito ácido.
(Tira um frasco pequeno de um bolso e leva-o à boca)
Brrr... Este é cá da zona. Brrr!!! É muito ácido e de baixo
grau. Uma zurrapa, criada no areal diluviano... Não tem
espírito, nem alma! Só serve para a chanfana, para a célebre
caçoila-de-cabra, por alturas do S. Bartolomeu de Sarrazola. Mas
bebe-se, quando não há mais nada! Que remédio! Senão passa-se
sede.
(Uma pequena pausa. Olha
para a assistência e retoma, segundos depois, a conferência)
É o prato típico daqui,
a chanfana, não o vinho. A chanfana daqui é o prato mais pitéu!
Olaré, se é! É o prato mais típico da gastronomia regional...
Embora tenhamos a saborosa sardinha assada na telha, os
merendeiros do borralho e os apetitosos pratos de robacos,
cozinhados em Janeiro, com cebola e um ramo de salsa a
enfeitar... Tão gostosos, que o povo até diz: «robacos em
Janeiro, sabem a carneiro»!
(Breve pausa. Tira do bolso uma garrafa pequena e bebe-lhe um
golo. Um grande arroto e retoma a conferência)
Mas eu estava a falar do
vinho de Cacia. Esta zurrapa só serve para a chanfana. Se este
fosse o vinho servido na Ceia de Cristo, nunca o divino Mestre o
gabaria como gabou naquele célebre convívio de bons
companheiros.
O vinho, o bom, é uma bebida saudável.
(Tira novamente a garrafa do bolso e
dá-lhe uma golada. Após um arroto sonoro) É uma bebida
saudável. Tão boa que... Lá vai mais um golo, à vossa saúde.
ESPECTADOR — Cuidado! Olha a Gertrudes.
MULHER DO CONFERENCISTA (De rolo
da massa no ar, vociferando ao encontro do conferencista, que lhe foge
andando à volta da mesa) — Ah, porco sujo,
borrachão! Anda cá, meu malandro, que eu já tas canto! Porco
sujo, borrachão, que mas vais pagar! Não fujas, malandro, que lá
em casa levas mais, meu safardana...
(Saem, ela atrás dele,
aos berros, e ele a gritar ai, ai, ai. E fenece a peça.)
Bartolomeu Conde,
Julho de 2005.
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(1) -
Bartolomeu Conde,
Os Malefícios do Álcool (arremedo inspirado no monólogo de Anton Tchekov «Os Malefícios do Tabaco»).
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