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Os Domingos de Nambuangongo

Reportagem de Luís Bernardes e Fernando Farinha

 In: "Notícia" Luanda, n.º 609, 7 de Agosto de 1971, págs. 60 a 63

 

Igreja de Nambuangongo. Clicar para ampliar.EM quase todas as línguas do Ocidente, os nomes que designam os dias da semana são de origem pagã. Da Lua, de Marte, Mercúrio, Juno ou de Vénus. Domingo, entre nós, é o Dia do Senhor. Em inglês, é o dia do Sol – «Sunday». Não sei o que se faz em Inglaterra durante o inverno, e mesmo fora dele, para escamotear o equívoco dos domingos chuvosos, quer dizer, dias do Sol de chuva. De qualquer maneira, o domingo é um dia chato.

Há vários domingos, claro. Às vezes, há um domingo que arrefece em Amesterdão, enquanto aquece em Nova Iorque. E trata-se do mesmo domingo, imagine-se! Com sol ou chuva, quente ou frio, cristão ou pagão, o domingo dissemina-se, insistentemente (uma vez, por semana) pelo mundo inteiro. Um flagelo.

Os domingos de Paris têm pombos no Jardim de Luxemburgo. Os de Bruxelas arrastam-se pelas cervejarias e depois dão um pulo às relvas da «Expo». As pessoas aborrecem-se, mas há quem tenha a sorte de poder aborrecer-se com certo frenesim. A civilização empenha-se em arranjar umas emoções fortes, para se gastar nos domingos de Berlim ou de Londres. Nos domingos de Lisboa, por exemplo, ninguém pega. Mesmo que fossem a saldo, a gente deixava-os lá, cheios de pó, na prateleira. Quanto a Luanda, metem um bocado de medo, com os rapazes todos a discutirem coisas bastante impossíveis pelas esplanadas fora.

No respeitante aos domingos de Nambuangongo, têm eles uma particularidade: não existem. Eu, pelo menos, andei à procura e não encontrei nenhum. Em abono dos domingos, devo elucidar que também me não foi possível encontrar nenhum sábado, ou sexta-feira: ou quinta, etc. Um extenso dia sem nome, inconsútil e indistinto, faz o tempo de Nambuangongo.

Porque as tarefas e os descansos são sempre da mesma natureza e correspondem a um quotidiano sem qualquer surpresa ou solicitação. Do alto de um morro, a vila desenvolve-se (se assim se pode dizer) inclinadamente, para terminar numa picada que vai desembocar em Gombe, a aldeia dos GE. Mas Gombe já não é Nambuangongo. Sensacional que um lugarejo posto no alto de um monte, cercado de florestas, com uma igreja e menos de meia dúzia de casas de construção definitiva, tenha alcançado a importância que realmente alcançou. A importância em questão é, sobretudo, a de um símbolo.

Em 1961, a povoação sofreu os maiores horrores da guerra, e nela se instalou a chamada «República Socialista de Nambuangongo». Em Agosto desse mesmo ano, a vila foi reocupada, depois da aventura das colunas-auto, que demoraram mais de três meses a cobrir a distância entre Luanda e essas pequenas povoações perdidas no norte. A história já foi contada, e sê-lo-á decerto outras vezes, de perspectivas várias. Mas Nambuangongo funcionará, em qualquer delas, antes como um significado do que como um lugar, ou mesmo um facto.

Como em quase todas as povoações da região, vive-se por cima, por baixo, à esquerda, à direita, à frente e atrás de poeira. Quer dizer: a presença dominante é uma poeira avermelhada, leve, envolvente, infiltrante. Os militares gracejam: «Quando escarramos, saem tijolos.»

Um dos aspectos característicos de Nambuangongo é ser um lugar masculino. Não há mulheres. Também, e consequentemente, não existem crianças. O administrador de posto, António Faria da Silva, é solteiro, vive com os seus livros, os seus apontamentos sobre etnografia, os seus casos administrativos. Dormimos em sua casa, folheámos-lhe os livros, ouvimos-lhe as histórias sobre os nativos. Homem calmo, culto, compreensivo, não tem qualquer problema pelo facto de viver no meio da poeira, num local que se pode descrever assim: barracões pré-fabricados para alojamento da tropa, quatro habitações, duas casas de comércio, uma igreja, e um campo de futebol improvisado. Uma pista para aviões (térrea), que é também estrada de acesso. E pó, claro – quero dizer: pó escuro.

Não haver mulheres e crianças é (digamos) inquietante. Dá ao lugar uma atmosfera parada, morta. Destitui-o daquela espécie de delicadeza difusa, e alegria sem razão, que aparecem com o elemento feminino e infantil.

Além dos civis solteiros, há os militares. Que se faz num quartel de onde se não pode sair para fazer qualquer coisa fora do quartel? Não existe lugar para onde. Não se pode sair? Pode. Eles saem para a mata, em operações. A guerra, é, portanto, uma ocupação. Por acaso, um grupo de homens, com alguns dos quais estive a beber e a conversar até tarde da noite, foi passar o domingo à guerra.

Além da guerra, faz-se comida. Também se lava e passa a roupa. Limpam-se os sítios que, umas horas depois, estão de novo sujos de poeira. Ouve-se rádio. Joga-se futebol e vólei. Possível, do mesmo modo, subir e descer o morro, assobiando ou não. E conversa-se. Mas tudo isto se faz tanto ao domingo como à segunda ou terça-feira. Conversar em Nambuangongo é muito bom. Salva as pessoas de se sentirem tão isoladas. Como não há mulheres, fala-se razoavelmente sobre elas. E como há guerra, fala-se bastante dela. E como se trata de militares, recordam-se acontecimentos dos tempos da Escola do Exército.

Jogar ao futebol ou ao vólei, excelente coisa. Liberta a pessoa de uma porção de pesos sufocantes, abre a necessidade de um longo duche frio, cansa o corpo. Ler histórias aos quadradinhos e fumar é óptimo. O que eu quero dizer é que, nesta lisura e indistinção de tempo, nesta restrição de espaço, as mais insignificantes ocupações ganham extrema importância. Nelas se coloca toda a atenção – a força e a fantasia que cada um possui dentro de si. E, na verdade, porque se há-de considerar menos importante lavar uma camisa, ou descer um morro assobiando, do que ir ver os pombos do Jardim de Luxemburgo, ou meter-se no «Paradiso» de Amesterdão? Não é tão bom discutir o best-seller «Papillon» (espantosa reportagem, diga-se, enfrentando os intelectuais do pedantismo) com um capitão e um alferes que leram e gostaram, como andar às cotoveladas em Domingo-Cascais?

Isto para mim, evidentemente que possuo domingos aqui e acolá, e não estou meses e meses metido em Nambuangongo. E então admiro o auto-domínio destes homens arrancados aos seus domingos naturais e transplantados para as poeiras de Nambuangongo, onde o tempo é circular.

Quando, já tarde na noite, deixo a messe dos oficiais e subo a encosta até ao meu quarto, na casa do administrador, paro a meio caminho, olho nas trevas a floresta que não vejo mas sinto, aspiro o ar frio, situo-me no fim do mundo.

Amanhã parto para Luanda, daqui a não sei quantos dias encontrar-me-ei não sei onde. A movimentação da minha vida é o contrário da imobilidade de Nambuangongo. Quase me tenho por culpado. Mas a minha consciência ganha vantagem à consciência de outros, com sorte bastante para se aborrecerem dominicalmente em sítios e circunstâncias «ferviscosos». É que eu conheço Nambuangongo e os homens de lá – habitantes de um símbolo, de uma significação. Domingos chatos, os deles, mas muito mais importantes que uma quantidade de domingos que andam por aí.


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10-05-2019