10º Festival Nacional de Folclore - 16 de Julho de 1994 – pp. 21 a 26

Pesca do Bacalhau à Linha

Por Ana Maria Lopes *

 

"Que maravilhosos pescadores, os Portugueses!

Esforçados, resistentes até ao impossível,

vibrantes de entusiasmo, humildes e confiantes..."

 

Bernardo Santareno

in Nos mares do Fim do Mundo!

FAINA MAIOR

MUSEU MARÍTIMO DE ÍLHAVO

 

Porque são maravilhosos os pescadores portugueses, porque a pesca do bacalhau tem ocupado desde o século XVI um lugar de destaque na economia portuguesa e porque Ílhavo foi um grande centro fornecedor de homens para a Grande Faina, o Museu Marítimo de Ílhavo decidiu organizar esta exposição, convidando os seus visitantes a fazer uma viagem no tempo pelos mares longínquos da Terra Nova e Groenlândia.

As pesquisas empreendidas demoraram cerca de dois anos e foram criteriosamente feitas em todos os centros que forneceram homens para a pesca do bacalhau, desde Viana do / 22 / Castelo até à Fuzeta (Algarve), passando pelo Porto, Figueira da Foz, Barreiro e Seixal. Claro que a Gafanha da Nazaré, pela sua proximidade e quantidade de empresas, foi um alvo preferencial de estudo.

Um grupo de colaboradores (muitos anónimos) deu precioso contributo, salientando-se o Cap. Francisco Marques – "alma" da exposição na carpintaria naval – o Arq. Jorge Vieira Vaz – projectista da mesma – e a Dr.ª Marta Vilarinho.

A Faina Maior esteve patente ao público durante o ano de 1993. No entanto, quando foi pensada, tinha como destino ser transformada em sector do bacalhau, em exposição definitiva. E assim se fez já em Março de 1994.

 

Imagine-se entre os anos 30 e 70

e venha ver como era a vida do homem do dóri

 

Ultrapasse a entrada do Museu e percorra as quatro grandes salas dedicadas ao dóri, à escala, salga, ao convés, convés da popa, beliche e rancho, cozinha, paiol e salão dos oficiais. Todas as peças são autênticas e estão expostas em sectores de bordo, réplicas dos existentes em navios conhecidos da frota portuguesa, construídas, para o efeito, em tamanho natural.

Na sala A, o dóri – casquinha de noz, monotripulada, em que o pescador fazia a sua pesca fora do lugre (navio-mãe) – é motivo aglutinador. Para além do bote, devidamente apetrechado, vêem-se três tipos diferentes de velas de dóri, um exemplar de bacalhau em dermoplástico e uma exposição pedagógica da linha de mão – aparelho que determina a faina e dá o nome à profissão e ao barco: navio de linha. A zagaia e o trol, que, no seu emaranhado de linhas veio substituir a linha de mão, também não foram esquecidos.

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Como se podia "perder a vida", mas não o Norte, o homem munia-se sempre de uma pequena bússola magnética, normalmente colocada na loca do dóri.

Ao sinal convencional, os dóris vêm atracar ao navio; os pescadores, de pé no pequeno barco oscilante, atiram o peixe para os quetes.

A preparação do bacalhau – a escala (sala B) – é em seguida executada por grupos de três pescadores – o troteiro o parte-cabeças e o escalador – com funções bem definidas. Depois de lavado nas selhas e escorrido, é lançado para o porão, onde sofre a última fase do preparo – a salga.

Nesta sala é representada meia secção do porão de um antigo veleiro, tipo Gazela, desde a sobrequilha até meia-altura; com as suas divisórias, panas e hinos. Desde o garfo, o balde, bandeja, pá, galão, até aos alfabuches e cachimbos que iluminavam o porão, tudo é apresentado em situação.

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Na sala C, o convés de um antigo veleiro, só faltando ser varrido pelas altas vagas que persistem na mente de quem sofreu no corpo e na alma a dura experiência da faina do bacalhau à linha...

O dóri ocupa também um lugar importante no convés, onde era normalmente arrumado em pilhas de sete, poupando espaço. As colecções presentes de cavirões, espichas, macetes, muletas, repuxos, recordam todo o trabalho de panos e cabos, habilmente feito pelos pescadores numa redescoberta da arte de marinharia.

A zona posterior engloba, ainda, o albói da câmara, o mastro da ré (seguro à amurada) e a gaiuta. Superestrutura de madeira situada à popa do navio, a gaiuta abriga o mecanismo do leme, podendo a sua forma ser em arco de círculo, como a do modelo construído (tipo Gazela) ou rectangular (tipo Creoula). No seu interior a gaiuta mostra, a estibordo, a retrete dos oficiais; a bombordo, prateleiras a meia altura acomodam artigos de apoio à navegação.

O homem do leme nunca o abandona, aguentando as temperaturas negativas, os ciclones e as fortes pancadas do mar, para o que, além da roupa normal de pescador, veste a rabana, protege a cabeça e o pescoço com barrete e sueste, as mãos com grossas luvas e calça botas de borracha.

Colecções de odómetros, vidros de convés, fog-horns, formas de zagaias e prumos de mão mostram pormenorizadamente muitos dos instrumentos e objectos usados nesta zona do convés da popa.

Na sala D são recriados alguns espaços interiores que a tripulação ocupava quer à proa (beliche e rancho, cozinha), quer à ré (Câmara dos oficiais).

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Os beliches, sob o convés (área que juntamente com a cozinha se designa por rancho), situam-se no sentido longitudinal, de um bordo e do outro, e dispõem-se, normalmente, em três fiadas. Nos mais estreitos, sempre preferidos; dorme um só homem; nos outros, dormem dois, sendo a divisória uma tábua. As fotografias da família, coladas em geral na antepara do lado da cabeceira, e as pagelas dos santos da devoção do pescador também não são esquecidas. O espaço do rancho é de tal modo limitado que o pescador, mal se levanta, pousa na loca e aí se senta para a refeição.

Roupas do enxoval do pescador, sacos de lona para o seu transporte e uma colecção de cadeados completam o sector beliche e rancho.

A cozinha é a réplica do lugre "Hortense", construído / 26 / na Gafanha da Nazaré, em 1930. O grande fogão de ferro, a carvão de pedra e proveniente do lugre-motor "Creoula" (1937), suporta, sobre o tampo, as bailas, panelas, tachos, chaleiras, cafeteiras... Colocadas em situação, dão uma ideia do "mundo" do cozinheiro de bordo.

A câmara dos oficiais é o último dos sectores do interior do lugre. Dando acesso aos camarotes dos oficiais e ao painel de aprestos, é iluminada pelo albói. Além de sala de jantar, serve de casa de navegação e ainda para arrumação, sob os bancos, de materiais de pesca e artigos vários.

Aparelhos náuticos diariamente usados pelos oficiais (sextante, barómetro, barógrafo, cronómetro, binóculo), utensílios rudimentares de farmácia, louças de porcelana usadas à ré, cartas de navegação e planos de pesca completam este sector.

O painel de Domingos Rebelo pintado pelo autor para o "Gil Eanes" construído em Viana do Castelo em 1955 e aí tendo viajado durante todo o tempo que o navio deu apoio à frota, resume a pesca do bacalhau à linha: os mares longínquos, os icebergs, os perigos, o lugre-patacho "Gazela", a assistência em terra, as mães e os filhos na ausência dos pais e a própria assistência a bordo do Gil Eanes...

É hoje uma preocupação museológica o fazer perdurar no tempo a memória colectiva do que foi a Faina Maior. Linha de mão, zagaia, trol, redes de emalhar, arrasto clássico, arrasto pela popa, a evolução no tempo da pesca do "fiel amigo". O fim da grande epopeia do bacalhau não pode acontecer sem que ao menos as estruturas museológicas consigam contar como foi.

* Directora do Museu Marítimo de Ílhavo

 

 

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