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libertação

conto de joão carlos

 

Chamam-me pessimista só porque nos meus contos predomina a exaltação da morte! Creiam, meus amigos, que estão errados. O que para vós é pessimismo, para mim é optimismo. Não sentis, como eu sinto, que a vida é um mero acidente, uma fatalidade? Por cada partícula de alegria, ela proporciona-nos cem de desespero. É por esta razão, bem firme, que eu patenteio a morte perante vós, irmãos na desgraça cruciante do existir, na certeza de que o nome real que se lhe deve atribuir é o de LIBERTAÇÃO!

Posto isto, rogo-lhes que me não condeneis, meus bons senhores, e me deixeis continuar a libertar os meus personagens fictícios, em tudo semelhantes aos autênticos que comigo cruzam diariamente, de semblantes emurchecidos, nos passeios desta cidade de cara lavada, mas de ar pejado de micro-organismos.

Mas basta de cogitações. Urge começar o conto e para isso necessito de uma personagem. Vou escolher uma qualquer que vegeta no passeio em frente. Pode ser aquele de olhar angustiado. Por acaso é meu conhecido e chama-se Ernesto. Tem uma história triste. É claro que nem todos se chamam Ernesto, mas todos têm histórias tristes, embora diferentes.

A vida, até há coisa de um ano, decorrera-lhe razoavelmente. Ganhava o que se convencionou chamar o «pão de cada dia», numa próspera fábrica, alimentando intermitentemente grandes fornos, sempre envolto em espessas e negras volutas.

Era tóxico o ambiente e de autómatos o trabalho? Bah! Isso não lhe dava ralação. O que ganhava ia chegando para entreter o estômago da sua Amélia e dos catraios. Aos domingos, dava o seu passeiozito, com a família, pelo jardim.

Muito se ria com os miúdos. Tinha piada o modo como eles olhavam os cisnes brancos de asas grandes que / 16 / deslizavam na superfície das águas ludras do lago. Enfim, mais riso amarelo, menos riso amarelo, a coisa ia.

Mas o dia diferente surgiu...

Uma maleita desconhecida veio prostrar na enxerga semi-nua os seus dois filhos. A desolação passou a habitar as modestas águas-furtadas do proletário. As parcas economias do casal, destinadas a uma aflição, depressa foram consumidas em medicamentos de nomes arrevesados, quase sempre terminados em ina, sem que resultados práticos se verificassem.

Ernesto contorcia as ossudas mãos de desespero. Tinha de arranjar dinheiro. Mas como, como?

Então a solução surgiu-lhe com naturalidade. Tiraria algum dinheiro que havia na caixa grande do escritório da fábrica. Quando pudesse, repô-lo-ia.

Que diabo, se o descobrissem, sempre haviam de compreender que, se fazia aquilo, era por humanidade!

Fê-lo. Mas a desdita que desde o berço sempre o acompanhara, foi amante ciosa na hora do gesto aviltante.

Sentaram-no no banco desnudo dum tribunal humano, onde os juízes foram desumanos.

Uma cela fria, uma manta esfarrapada e após um ano, o sol de novo a brilhar, dardejando um amarelo mais carregado.

Os filhos haviam-se finado. A mulher, sem recursos e debilitada, percorria o trilho incerto da mendicidade. Andava por aí, ao Deus dará, aguardando, talvez, uma bênção do céu.

Ernesto, mal saiu, buscou-a e não a achou. Por que estranhos locais andaria ela? Era uma dúvida que o atormentava. Ia-a procurando sempre, e ao mesmo tempo batendo a muitas portas a implorar trabalho. Mas todas se fechavam ante o ex-presidiário. Cada qual, num egoísmo chocante, apenas se preocupava com os seus próprios dramas. Onde está a solidariedade dos que sofrem pelos que sofrem? E demais nestes tempos de demência ferina...

– Presidiário? Não, não serve. Demais, nem sequer há vagas. E eram sempre respostas ambíguas as recebidas, sem que ao menos tremeluzisse uma centelha de esperança.

Braços pendentes, expressão de desalento e o contínuo vaguear de terra em terra. Pobre pária da sociedade! Erraste uma vez, se é que erraste, mas o ferrete marcou-te pela vida fora.

/ 17 Ninguém sabe do que ele vive. Ousei uma ocasião perguntar-lho e ele fugiu de mim, como foge de toda a gente. Se lhe querem dar uma moeda, ele pragueja e cospe no chão com desprezo. Como ele odeia tudo e todos! Não sou grande psicólogo, mas quase juro que ele vive com a certeza de que toda a gente espeta o dedo na sua direcção e murmura: Presidiário!

É esta, leitores, a história banal, terrivelmente banal, mas patética, dum irmão nosso. Ele sofre e nós somos os culpados do seu sofrimento. Quando nele a esperança ainda era latente, devíamos ter aberto os braços e clamar:

– Vem, irmão, vem... Sabem porque o não fizemos? Porque somos homens. As nossas mãos de esterco não dão flores.

 

Escrevi isto há perto de um mês. O manuscrito, cheio de imperfeições, ficou guardado no fundo duma gaveta. Trouxe-o para a claridade para lhe atribuir um fim. Aliás, o mérito não é meu, mas unicamente do destino. Minha é só a descrição.

É verdade. Ernesto morreu, mas por favor, não me chamem monstro, por esperar que isso acontecesse. O certo é que eu tinha a percepção deste desenlace, mas não me perguntem porquê, que não sei.

Não tenham pena. No seu fim, houve uma réstia de felicidade.

Eu conto como foi.

De mãos enfiadas nos bolsos do casaco esburacado, Ernesto contemplava, abstracto, a grande avenida em frente, onde opulentos... espadas, conduzidos por gente de fatos de fino corte, rolavam em todos os sentidos, em velocidades vertiginosas, como se o tempo contasse e cada segundo fosse fundamental na vida. O seu olhar estendia-se até ao passeio oposto, onde o formigueiro humano era compacto. De repente, estremeceu. Os seus olhos esbugalhados fitavam uma mulher que seguia de olhar cravado no chão.

Amélia, Amélia!

Ela olhou. Simultaneamente, correram um para o outro. Já mãos tocavam mãos, quando o Cadillac negro surgiu veloz... e surgiu a LIBERTAÇÃO.

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