O Campeão das Províncias (1852-1924)

campeão da imprensa aveirense

 

Quinta-feira, 1 de Outubro de 1998 – pág. 11 – Manuel Ferreira Rodrigues

 

O aparecimento dos diversos títulos da imprensa portuguesa da segunda metade do séc. XIX está intimamente relacionado com a evolução política e partidária desse período histórico. A notícia do nascimento de um partido, a declaração de uma dissidência, facção ou simples sensibilidade, faziam-se através de um «manifesto» geralmente publicado num jornal criado para o efeito. Ali eram publicitados os manifestos eleitorais, os candidatos às eleições e as posições assumidas no parlamento.

O alargamento da base de apoio de uma facção ou partido no poder (ou na oposição) impôs, frequentemente, a função de outros títulos na capital e especialmente fora dela. Esse fenómeno ia ao encontro do desejo de promoção e ascensão política das elites políticas locais. Foi assim que nasceu a maioria dos periódicos da província. E foi também assim que nasceu o “Campeão das Províncias”.

Os «partidos» do século XIX mais não eram do que informais clubes de notáveis, sem programa, estatutos ou qualquer tipo de organização vertical ou horizontal, concebidos e dirigidos da cúpula para a base e do centro para a periferia. Esses agrupamentos de «influentes», apoiados por uma heterogénea clientela de amigos, familiares e «afilhados», giravam em torno de uma proeminente figura pública. Idealizados geralmente para o combate eleitoral, constituíam, formalmente, instrumento de legitimação do poder instituído. Não eram partidos eleitorais de massas como os de hoje, que são estruturas verticais de mediação entre a sociedade e o governo, lideradas por um círculo de profissionais.

A década de 1850 põe termo a meio século de invasões, guerras civis, golpes, revoluções e levantamentos. A pacificação da vida política portuguesa ficou a dever-se à favorável conjuntura internacional e à habilidade de um político de elevada craveira corno foi Fontes Pereira de Melo. O fontismo, que terminaria com o Ultimato (1890), constitui um período de notável progresso técnico e económico, especialmente no domínio das comunicações (caminhos de ferro, estradas e telégrafo). O nascimento de quase 80 semanários em todo o Pais, só na década de 1850, resulta dessa dinâmica e constitui um testemunho eloquente da importância que a imprensa adquire na vida política, económica e social da época. Apesar dos 80% de analfabetos então existentes era frequente a afirmação de que uma cidade sem jornais é como um navio sem artilharia!

Aveiro não ficou à margem desse fenómeno de nascimento e expansão da imprensa periódica industrial. Nesses primeiros anos da Regeneração nasceram nesta cidade cinco jornais, embora não fossem «delegados» de todos os «partidos» então existentes: o “Regenerador”, o “Progressista Histórico”, o “Cartista” e o “Legitimista”.

Em 14 de Fevereiro de 1852 nasce o “Campeão do Vouga”, afecto ao Partido Regenerador. Foram seus primeiros redactores Luciano de Castro, Bernardo Xavier de Magalhães e António Nogueira Valente. Em 1854 aparece e desaparece o “Aveirense”, de orientação progressista histórica. No ano seguinte aparece e desaparece “A Aurora”, jornalinho religioso e literário, onde escrevem, entre outros, os jovens estudantes José Almeida Vilhena, Agostinho Pinheiro, Luciano de Castro e o padre Carvalho Góis. O “Imparcial”, de orientação «fusionista», nasce em Janeiro de 1856 e desaparece em Junho desse mesmo ano, sendo substituído pela “A Imprensa”, próxima dos progressistas, que encerra em Outubro de 1858.

Mais duradouro e consistente foi o projecto do bissemanário regenerador “Campeão do Vouga”. Exactamente pelo seu alinhamento político. Como refere José Miguel Sardica em trabalho recente, a família do progressismo regenerador, alçada ao poder entre 1851 e 1856, supervisionava nada mais nada menos que 19 periódicos (cerca de um quarto do total), com particular realce para a mítica “Revolução de Setembro”. O nascimento do “Campeão do Vouga” (pouco antes de “O Leiriense”, “A Razão”, de Valença, “O Bracarense”, “O Popular”, de Lamego, “O Funchalense” e “A Terceira” é parte integrante desse fenómeno de penetração ideológica e política dos regeneradores no Portugal profundo.

No final da década de 1850, José Estêvão rompe com o Partido Regenerador, ruptura que o levaria até à tentativa de fundação de um partido liberal, em 1861. Esse acontecimento provocou uma cisão no seio do “Campeão do Vouga”, que passou a denominar-se “Campeão das Províncias”, desde 12 de Novembro de 1859. Para a mudança de nome é invocada a necessidade de se alargar a sua área geográfica de influência. Mudava o nome, mas mantinha-se a orientação política. Assim, uma parte do grupo inicial, constituída pelo séquito de José Estêvão, deixava de se rever no bissemanário, que passa a ser dirigido por Manuel Firmino de Almeida Maia. A separação e a animosidade entre os dois grupos acentuar-se-ia dois anos depois.

Manuel Firmino apresentou-se às eleições de 1861 como candidato governamental. José Estêvão é o candidato da oposição. Perante a hostilidade do “Campeão das Províncias”, decide criar outro bissemanário, a que dá o nome de “Distrito de Aveiro”. O primeiro número saiu dos prelos em 2 de Julho de 1861. Nas duas décadas seguintes, os dois periódicos foram os porta-vozes dos interesses das duas parcialidades rivais do rotativismo local. A animosidade do grupo de amigos de José Estêvão e Mendes Leite contra Manuel Firmino é retomada mais tarde pelos republicanos locais, que se reclamam naturais herdeiros do legado político de José Estêvão.

O Campeão das Províncias" – ou tão-só “Campeão” como era conhecido cá na terra – foi de facto o primeiro jornal aveirense, se não levarmos em conta um título de existência efémera, impresso em 1846. Tornar-se-ia o periódico mais respeitado e longevo da imprensa aveirense e um dos mais prestigiados do País. O carácter moderado e tolerante das suas páginas constituiu a sua imagem de marca durante mais de sete décadas.,

Até ao seu último número (o 6.879, de 26 de Janeiro de 1924), o “Campeão das Províncias” foi uma importante tribuna de ascensão e afirmação da elite política aveirense. Pelas suas páginas desfilaram, além dos políticos já referidos, Luciano de Castro, Teixeira de Queirós, Agostinho Pinheiro, Bento Xavier de Magalhães, Tomás Ribeiro, Barbosa de Magalhães, Fernando Vilhena, Rangel de Quadros Oudinot, Marques Gomes, Melo Freitas e tantos outros.

Desde o primeiro momento, o “Campeão das Províncias” teve um papel determinante na socialização do credo liberal, na formação da consciência nacional e na criação de uma opinião pública atenta aos jogos do poder central, interessada pelos destinos da cidade e da região. Durante três quartos de século, como assinalou Eduardo Cerqueira, o Campeão das Províncias marcou indelevelmente a vida pública de Aveiro, quer do ponto de vista da doutrinação e da acção política, quer na propaganda e defesa dos problemas regionais, ou na divulgação dos seus motivos de prestígio e das suas glórias, na revelação dos seus valores intelectuais e espirituais, ou nas iniciativas que tomou e preconizou.

De resto, é difícil pensar no lançamento dos dois projectos mais importantes da década de 1850 – a Caixa Económica de Aveiro e a Associação Comercial de Aveiro – sem o Campeão. No seu seio é recrutada uma parte da nata do poder municipal aveirense. Sem o “Campeão”, dificilmente Manuel Firmino teria sido presidente da Câmara ou deputado. E o mesmo se poderia dizer do “Distrito de Aveiro”. Sem esta última tribuna dificilmente Sebastião de Carvalho Lima (pai dos bem conhecidos Jaime e Sebastião de Magalhães Lima) teria sido presidente da Câmara Municipal de Aveiro. Como não teríamos conhecido Homem Cristo sem “O Povo de Aveiro” ou Acácio Rosa sem a sua “Vitalidade”, tal a relação entre a imprensa e a vida partidária.

A recuperação deste título impõe aos seus promotores e colaboradores, bem como aos seus leitores, acrescidas responsabilidades. Façamos votos para que o novo semanário faça jus ao nome deste importante periódico, que é património da cidade e da região.

 

 

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