O
aparecimento dos diversos títulos da imprensa portuguesa da segunda
metade do séc. XIX está intimamente relacionado com a evolução política
e partidária desse período histórico. A notícia do nascimento de um
partido, a declaração de uma dissidência, facção ou simples
sensibilidade, faziam-se através de um «manifesto» geralmente publicado
num jornal criado para o efeito. Ali eram publicitados os manifestos
eleitorais, os candidatos às eleições e as posições assumidas no
parlamento.
O
alargamento da base de apoio de uma facção ou partido no poder (ou na
oposição) impôs, frequentemente, a função de outros títulos na capital e
especialmente fora dela. Esse fenómeno ia ao encontro do desejo de
promoção e ascensão política das elites políticas locais. Foi assim que
nasceu a maioria dos periódicos da província. E foi também assim que
nasceu o “Campeão das Províncias”.
Os
«partidos» do século XIX mais não eram do que informais clubes de
notáveis, sem programa, estatutos ou qualquer tipo de organização
vertical ou horizontal, concebidos e dirigidos da cúpula para a base e
do centro para a periferia. Esses agrupamentos de «influentes», apoiados
por uma heterogénea clientela de amigos, familiares e «afilhados»,
giravam em torno de uma proeminente figura pública. Idealizados
geralmente para o combate eleitoral, constituíam, formalmente,
instrumento de legitimação do poder instituído. Não eram partidos
eleitorais de massas como os de hoje, que são estruturas verticais de
mediação entre a sociedade e o governo, lideradas por um círculo de
profissionais.
A década
de 1850 põe termo a meio século de invasões, guerras civis, golpes,
revoluções e levantamentos. A pacificação da vida política portuguesa
ficou a dever-se à favorável conjuntura internacional e à habilidade de
um político de elevada craveira corno foi Fontes Pereira de Melo. O
fontismo, que terminaria com o Ultimato (1890), constitui um período de
notável progresso técnico e económico, especialmente no domínio das
comunicações (caminhos de ferro, estradas e telégrafo). O nascimento de
quase 80 semanários em todo o Pais, só na década de 1850, resulta dessa
dinâmica e constitui um testemunho eloquente da importância que a
imprensa adquire na vida política, económica e social da época. Apesar
dos 80% de analfabetos então existentes era frequente a afirmação de que
uma cidade sem jornais é como um navio sem artilharia!
Aveiro
não ficou à margem desse fenómeno de nascimento e expansão da imprensa
periódica industrial. Nesses primeiros anos da Regeneração nasceram
nesta cidade cinco jornais, embora não fossem «delegados» de todos os
«partidos» então existentes: o “Regenerador”, o “Progressista
Histórico”, o “Cartista” e o “Legitimista”.
Em 14 de
Fevereiro de 1852 nasce o “Campeão do Vouga”, afecto ao Partido
Regenerador. Foram seus primeiros redactores Luciano de Castro, Bernardo
Xavier de Magalhães e António Nogueira Valente. Em 1854 aparece e
desaparece o “Aveirense”, de orientação progressista histórica.
No ano seguinte aparece e desaparece “A Aurora”, jornalinho
religioso e literário, onde escrevem, entre outros, os jovens estudantes
José Almeida Vilhena, Agostinho Pinheiro, Luciano de Castro e o padre
Carvalho Góis. O “Imparcial”, de orientação «fusionista», nasce
em Janeiro de 1856 e desaparece em Junho desse mesmo ano, sendo
substituído pela “A Imprensa”, próxima dos progressistas, que
encerra em Outubro de 1858.
Mais
duradouro e consistente foi o projecto do bissemanário regenerador “Campeão
do Vouga”. Exactamente pelo seu alinhamento político. Como refere
José Miguel Sardica em trabalho recente, a família do progressismo
regenerador, alçada ao poder entre 1851 e 1856, supervisionava nada mais
nada menos que 19 periódicos (cerca de um quarto do total), com
particular realce para a mítica “Revolução de Setembro”. O
nascimento do “Campeão do Vouga” (pouco antes de “O Leiriense”,
“A Razão”, de Valença, “O Bracarense”, “O Popular”,
de Lamego, “O Funchalense” e “A Terceira” é parte
integrante desse fenómeno de penetração ideológica e política dos
regeneradores no Portugal profundo.
No final
da década de 1850, José Estêvão rompe com o Partido Regenerador, ruptura
que o levaria até à tentativa de fundação de um partido liberal, em
1861. Esse acontecimento provocou uma cisão no seio do “Campeão do
Vouga”, que passou a denominar-se “Campeão das Províncias”,
desde 12 de Novembro de 1859. Para a mudança de nome é invocada a
necessidade de se alargar a sua área geográfica de influência. Mudava o
nome, mas mantinha-se a orientação política. Assim, uma parte do grupo
inicial, constituída pelo séquito de José Estêvão, deixava de se rever
no bissemanário, que passa a ser dirigido por Manuel Firmino de Almeida
Maia. A separação e a animosidade entre os dois grupos acentuar-se-ia
dois anos depois.
Manuel
Firmino apresentou-se às eleições de 1861 como candidato governamental.
José Estêvão é o candidato da oposição. Perante a hostilidade do “Campeão
das Províncias”, decide criar outro bissemanário, a que dá o nome de
“Distrito de Aveiro”. O primeiro número saiu dos prelos em 2 de
Julho de 1861. Nas duas décadas seguintes, os dois periódicos foram os
porta-vozes dos interesses das duas parcialidades rivais do rotativismo
local. A animosidade do grupo de amigos de José Estêvão e Mendes Leite
contra Manuel Firmino é retomada mais tarde pelos republicanos locais,
que se reclamam naturais herdeiros do legado político de José Estêvão.
“O
Campeão das Províncias" – ou tão-só “Campeão” como era conhecido cá
na terra – foi de facto o primeiro jornal aveirense, se não levarmos em
conta um título de existência efémera, impresso em 1846. Tornar-se-ia o
periódico mais respeitado e longevo da imprensa aveirense e um dos mais
prestigiados do País. O carácter moderado e tolerante das suas páginas
constituiu a sua imagem de marca durante mais de sete décadas.,
Até ao
seu último número (o 6.879, de 26 de Janeiro de 1924), o “Campeão das
Províncias” foi uma importante tribuna de ascensão e afirmação da
elite política aveirense. Pelas suas páginas desfilaram, além dos
políticos já referidos, Luciano de Castro, Teixeira de Queirós,
Agostinho Pinheiro, Bento Xavier de Magalhães, Tomás Ribeiro, Barbosa de
Magalhães, Fernando Vilhena, Rangel de Quadros Oudinot, Marques Gomes,
Melo Freitas e tantos outros.
Desde o
primeiro momento, o “Campeão das Províncias” teve um papel
determinante na socialização do credo liberal, na formação da
consciência nacional e na criação de uma opinião pública atenta aos
jogos do poder central, interessada pelos destinos da cidade e da
região. Durante três quartos de século, como assinalou Eduardo
Cerqueira, o Campeão das Províncias marcou indelevelmente a vida pública
de Aveiro, quer do ponto de vista da doutrinação e da acção política,
quer na propaganda e defesa dos problemas regionais, ou na divulgação
dos seus motivos de prestígio e das suas glórias, na revelação dos seus
valores intelectuais e espirituais, ou nas iniciativas que tomou e
preconizou.
De resto, é difícil pensar no lançamento dos dois
projectos mais importantes da década de 1850 – a Caixa Económica de
Aveiro e a Associação Comercial de Aveiro – sem o Campeão. No seu
seio é recrutada uma parte da nata do poder municipal aveirense. Sem o “Campeão”,
dificilmente Manuel Firmino teria sido presidente da Câmara ou deputado.
E o mesmo se poderia dizer do “Distrito de Aveiro”. Sem esta
última tribuna dificilmente Sebastião de Carvalho Lima (pai dos bem
conhecidos Jaime e Sebastião de Magalhães Lima) teria sido presidente da
Câmara Municipal de Aveiro. Como não teríamos conhecido Homem Cristo sem
“O Povo de Aveiro” ou Acácio Rosa sem a sua “Vitalidade”,
tal a relação entre a imprensa e a vida partidária.
A
recuperação deste título impõe aos seus promotores e colaboradores, bem
como aos seus leitores, acrescidas responsabilidades. Façamos votos para
que o novo semanário faça jus ao nome deste importante periódico, que é
património da cidade e da região. |