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Episodio romantico
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Miss Dondly
(DE URBANO RODRIGUES)
Urbano Rodrigues é um dos poucos jornalistas que
fazem literatura, o seu espirito vivo e interessante, cheio de
juventude e de alegria, revela-se neste episodio flagrantemente
verdadeiro, levemente malicioso em que a realidade desfaz ingénuas
ilusões, ao fim de uma noite passada sobre o mar na elegante cabine
de um transantlantico, cheio de civilisação...
Madeira, 12.
Meu caro:
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A docil e fuIva miss Dondly, lavada e
fresca, como as mulheres da sua raça, não tinha olhos azues, e éra,
com o seu sangue cruzado de escoceza, como que lasciva e provocante
nos movimentos e modos.
Vestida sem nenhuma pretenção, eram
elegantes os fatos que usava e nada tinham dos desleixos irritantes
dessas excursionistas, que se encontram sempre, com formas rigidas
de macho, kodak e oculo a tiracolo, colecionadoras de insectos e
muito sabidas nas leis e teorías dos srs. Archimedes e La PIace.
Tinha um ar de agrado e dulcidão na voz a ponto de fazer que a sua
língua não se resumisse a monosiIabos de groom.
Trabalhara em circos e teatros, cantara
coplas em cafés, fôra eximia equilibrista e arrojada domadora de
leões.
Levava bilhete para o cabo. Ia para um
rico e velho mineiro de Cap-Town que a possuira cinco anos
antes num circo de Liverpool, com o custo de dois cheques de mil
libras a sua prima, e o presente generoso e delicado dum
cavalo de corridas. Ela mesma m'o contou, naturalmente, com um riso
resignado de aborrecimento para o velhote tropego e baboso que vae
ser o seu senhor.
Fala muito comigo, miss DondIy. Talvez
por gratidão de não a cortejar e aborrecer como todos os outros
homens que vão a bordo. E’ que nós entendemo-nos bem. Gostamos um do
outro e de o sabermos, fazemos por não gostar. Tenho para ela
delicadezas que a espantam; falo-lhe com tais temores e recatos que
me acho depois gauche, idiota, quando caio em mim. Custa-me a
crer que uma creatura complicada e original como esta, seja
simplesmente uma perdida ou uma estrela de circo. E por mais que o
saiba e ela m'o diga, sabendo…
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...ou não que me tortura, por mais que
lhe conheça o feitio ardente e romanesco, de irrequieções e
abatimentos adoraveis, – não posso julgal-a como é, ando a iludir-me
fazendo-a melhor, para lhe querer mais e não ter vergonha de mim
mesmo.
Ela encontra-me novo para si e agrada-se
porque não sou capaz de lhe dizer banalidades.
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No alto mar…
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O Aragon vae galgando milhas e
nada mais se ouve que os resfolegos brutos da maquina e as pancadas
ôcas, espadantes, das ondas que se desfazem no costado. Mar azul
interminavel, ceu infinito e iluminado, tudo se confunde longe, onde
a vista cança. A noite é mole, abafada, equatorial.
Nós os dois ficamos na tolda a
baloiçarmo-nos em cadeiras de lona, preguiçosos, jogando de mansinho
palavras cançadas, dum para o outro.
Chegamos as cadeiras para ficarmos
juntos e, com as caras mais perto, conversamos, falamos que falamos,
meio adormecidos, todos quebrados da suavidade da noite quieta…
Não sei nada do que lhe disse, mas
lembro-me que ela me respondia e que me pareciam caricias as
palavras secas da sua lingua.
Era muito tarde…
O ceu tinha o tom duma solução pobre de
anil, e enchera-se de carreiras de luzinhas tremulas que nos
prendiam os olhos, emparvecidos de os encontrarmos tantas vezes.
Fixei uma estrela, a mais linda, e como naquele conto delicioso do
Daudet pareceu-me num momento que ela vinha descendo magestosamente
para caír sobre mim e beijar-me devagarinho, roçando pelos meus
labios a cabeleira fulva e adormecendo sobre o meu hombro.
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Lourenço Marques.
Querido amigo:
Tenho-te falado nas minhas cartas de
miss Dondly quasi exclusivamente, e é justo que te conte agora o
mais que houve e como deixamos cada um de nós seguir o seu destino;
eu com menos uma ilusão e mais um molho de cabelos louros – ela com
as minhas dezoito libras na carteira e a vaidade de ter vencido mais
um tolo. E' horrivel!
Eu tinha-te dito ao acaso que ela, no
seu aspéto de pureza deixava perceber, num extranho contraste, um
traço de provocação e languidez. Devia por aí ter começado.
AGUEDA
A vila
Pateira de Fermentelos
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Aquelas noites de idilio na tolda em que
viviamos os contos poeticos de Daudet não podiam ter um fim mais
lógico, mais natural, e contudo não o esperava. Miss Dondly, que eu
amava com idealismos que não calculas, que respeitava com uma
estupidez que não imaginas, fez-se minha amante. Ela! Foi ela que me
seduziu brutalmente, miseravelmente.
E has-de saber como. Abraçando-me e
pegando a sua boca á minha, de surpresa, quando passava no corredor
para a minha cabine a sonhar com ela acordado, a poetisal-a…
Tu sabes lá! Enleou-se a mim como uma
serpente, chamuscou-me de furias e tentações, e (Santo Deus!)
mordiscando-me no pescoço rosnou baixinho no seu perverso hespanhol
comercial: chiquito! me muerro, hijo mio!
Ao outro dia, quando o sol avermelhava a
vigia do beliche, saía ela, deixando-me nos lábios um molhinho de
cabelos e tomando de sobre a mesa as minhas dezoito moedas de ouro!
A Miss Dondly!...
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Urbano Rodrigues.
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