ACERCA DE HENRIQUE NEVES

28-01-1938 <> 04-05-2021

Aveiro e Cultura» perde um dos primeiros e melhores colaboradores

I

A minha amizade com José Henrique de Almeida Neves começou em Abril de 2006. Aliás, não sei se poderei dizer, para ser rigoroso, que começou nesta data, na medida em que ele era amigo de pessoas que faziam parte do meu círculo de amizades e já tínhamos contactado por diversas vezes. Mas esta amizade ganhou raízes a partir do momento em que verificámos que possuíamos os mesmos gostos pelas coisas da nossa terra. E fortaleceu-se quando ele me trouxe, para partilhar no espaço «Aveiro e Cultura», todo o espólio fotográfico do sogro, Américo Carvalho da Silva.

O que podemos afirmar com rigor, porque tivemos o cuidado de o registar, é que as fotografias começaram a ser acessíveis a todos os que gostam das novas tecnologias, especialmente da Internet, a partir do dia 14 de Abril, data registada, embora invisível para o público, antes da codificação em HTML do índice de conteúdos.

Ao espólio demos o nome de «Colecção Carvalhinho». Porquê esta designação?

«Carvalhinho» era o nome por que era mais conhecida esta figura de Aveiro, na primeira metade do século XX. Ele era o único que em Aveiro fazia o serviço de recoveiro. Hoje ninguém sabe o que isto significa. No entanto, a profissão ainda se mantém. Multiplicou-se por muitas empresas, que começaram a substituir os correios no transporte de mercadorias, mas que ninguém conhece por este nome.

A partir de Abril desse ano, Henrique Neves tornou-se um amigo indispensável, cuja companhia era sempre agradável, e um dos melhores colaboradores na procura e preservação de material com interesse cultural, que ele ia trazendo.

Em 2020, num período marcado por uma pandemia que abalou o planeta e se encontrava em plena força, poucas ou nenhumas vezes nos encontrámos. Tive eu e todos os que passaram por isto um período de vida difícil. Pela minha parte, estava não só sujeito a um período de quarentena, como também parte do meu tempo passou a estar repartido entre Aveiro e Matosinhos, devido à actividade de «neto work».

«Neto work» é a expressão que passei a usar, a partir do momento em que, devido à crise pandémica, se começou a ouvir falar constantemente em «Net work» ou teletrabalho. Somente a minha é uma actividade que muitos de nós temos o prazer de conhecer, especialmente quando os filhos começam a preservar a continuidade da família e a pedir-nos para tomarmos conta dos netos.

Ora a perda de um dos meus melhores amigos, a segunda maior perda desta actual fase da minha vida em menos de uma década, ocorreu na altura em que regressava de Matosinhos a Aveiro.

Mal acabado de chegar à cidade dos canais, para recomeço da actividade lectiva na Academia de Saberes de Aveiro, ainda eu não tinha enfiado a chave na fechadura da porta de entrada no prédio e já estava a ser chamado por um casal de amigos e vizinhos.

Fiquei com a chave em stand-by e voltei-me. Quase em frente à porta do actual Convívio estava um casal, cujo elemento masculino foi um antigo jogador do Sport Clube Clube Beira-Mar, também ele colaborador, em tempos, com a partilha de fotografias relativas ao clube pelo qual jogou durante vários anos.

Atravessei a rua e fui apanhado desprevenido. Estava longe de imaginar a notícia que me queriam dar:

– Faleceu ontem, dia 4 de Maio, o amigo Henrique Neves. Está na Igreja de Santo António, ao lado da Polícia Judiciária. O funeral é logo, por volta das 15 horas.

Agradeci ao casal Azevedo a triste notícia e entrei em casa, com a sensação de ter ficado mais pobre. Entrei com a sensação de que o meu universo de amigos está a ficar cada vez mais reduzido e eu cada vez mais pobre e isolado. Não fora o prazer da companhia quase diária da neta e o apoio da família, mesmo com os netos isolados devido a uma estúpida pandemia que, desde finais de 2020, nos tem obrigado a um isolamento forçado, esta etapa da vida começaria a ficar muito parecida com um deserto, onde a caravana, aos poucos, vai perdendo os elementos desta caminhada, que é a vida de todos nós.

Há anos, levei uma valente cacetada com a perda de um amigo, cuja presença diária me era indispensável. Estivesse eu num café da cidade, estivesse em casa, ou desse-se mesmo o caso de estar fora de Aveiro, diariamente, quase sempre à mesma hora, recebia o telefonema do amigo Gaspar Albino a perguntar-me onde é que eu estava, para ir tomar o café na minha companhia. E numa fatídica tarde, uma queda em casa foi o começo da separação. Ainda o consegui ver no hospital de Aveiro, para onde foi levado. Ele é que já não conseguiu ver-me. E, num sábado (?!) de manhã, estava sentado num café a tomar a bica, tive o pressentimento de que ele me havia definitivamente deixado.

Hoje, dia 4 de Maio de 2021, quase quatro anos depois, volto a passar por outra situação pouco agradável.

Agradeci a informação. Voltei a atravessar a rua. Abri a porta. Subi as escadas e entrei em casa, depois de nova porta aberta. Libertei-me do peso da pasta com o computador e material para a aula da tarde e preparei-me para assentar. Era praticamente hora de almoçar. E assentei, sentando-me à mesa. Frequentemente, é sentados à mesa, com ou sem companhia, que melhor conseguimos assentar ideias e decidir o que fazer.

Que fazer? Ir ao funeral não é possível. Vim de propósito de Matosinhos para Aveiro para dar, às catorze e trinta, a primeira aula, após semanas de ausência devido ao confinamento provocado por esta maldita pandemia, que os chineses espalharam por todo o planeta. E os companheiros de academia estão a contar comigo para o recomeço das actividades. Sair a meio da aula para o funeral também não é viável. Há alterações a fazer na capa da publicação que a Academia de Saberes de Aveiro tem de mandar para a tipografia. E isto é trabalho para ocupar a maior parte da aula, até porque o que vamos fazer está relacionado com a actividade que tem vindo a ser aprendida.

Faltava mais de uma hora para o começo da aula. Lavei rapidamente a louça, peguei na máscara, na viseira e na pasta. Saí de casa, depois de ter voltado a desligar a Net, a água e o gás, porque depois da aula iria directamente para a estação apanhar o comboio e regressar a Matosinhos. Desci as escadas e fui directamente para a igreja de Santo António.

Na entrada da igreja apenas a carrinha e os senhores da agência funerária. Perguntei-lhes se era o funeral do meu amigo Henrique Neves. Que sim, mas que eu não poderia rever o amigo. E os familiares também ainda não tinham chegado. Mesmo assim, entrei na igreja e pedi-lhes se não tinham nada para dar às pessoas. Que sim. Entregaram-me uma pagela com a fotografia e as datas dos dois limites da vida e perguntaram-me o nome. Que ficasse descansado, que não se esqueceriam de informar os familiares de que estivera presente e que não podia ficar para o funeral pelos motivos que lhes tinha exposto.

II

Feito o preâmbulo introdutório, como são todos os preâmbulos, recordemos, através de um simples episódio, a figura do amigo que deixou de estar fisicamente entre nós.

Em tempos idos, muito antes da pandemia que nos manteve fisicamente separados, estava eu a trabalhar no gabinete que me foi atribuído por altura em que as obras de renovação da escola terminaram(1), apareceu-me o amigo Henrique Neves muito preocupado. Olhei para ele e perguntei-lhe:

– Então o que o traz por cá? Vem com cara de caso!

– Professor, – era assim que ele sempre me tratava quando estava comigo – um amigo criticou-me, tendo-me dito que eu colaborava assiduamente com o espaço «Aveiro e Cultura» e que o meu nome nem sequer figurava entre os colaboradores…

– Como? Quem lhe disse semelhante disparate?

– De facto, Professor, eu fui à listagem dos «Colaboradores», procurei o meu nome e não o encontrei!

– Como é que não o encontrou? O meu amigo teve a curiosidade de percorrer toda a página de cima a baixo?

– Eu, não! Corri a listagem com as miniaturas dos colaboradores e respectivos nomes e não encontrei o meu.

– Esses que percorreu são aqueles que produzem trabalhos escritos, tais como poesia, obras publicadas, trabalhos artísticos, e têm as suas páginas neste espaço. O meu amigo também pode aqui figurar, a partir do momento em que comece a escrever e a publicar artigos. Mas, se percorrer toda a listagem, verá que no fim da página existe, mesmo junto à barra de navegação horizontal, uma hiperligação que diz «Outros colaboradores». Alguma vez teve a curiosidade de clicar aqui? Faça a experiência e veja na listagem alfabética se o seu nome aparece.

Recorrendo à tablete que utilizo para navegar na Net e verificar a qualidade e funcionamento das páginas em suportes que não sejam um computador, mandei-lhe clicar na hiperligação e verificar se o nome dele lá se encontrava. E acrescentei:

– O meu amigo não tem tido a curiosidade de ler os textos que eu tenho escrito para apresentação do material que me tem trazido. Se fizesse a leitura, verificaria que está presente em alguns deles, funcionando como um dos meus interlocutores.

– Não o estou a entender. Eu sou um dos seus interlocutores?

– Claro que sim! Ao fazer a apresentação do material, numa página geralmente intitulada «Acerca de...», e apresentada antes da listagem dos conteúdos, eu tenho o cuidado de falar acerca da forma como o material de índole cultural chega até mim. E, se nem sempre faço uma breve evocação da história que está por detrás, recorrendo à reprodução das nossas conversas, tenho sempre o cuidado de indicar a quem se deve o material recuperado.

Para o convencer, porque não me parecia estar, disse-lhe:

– Indique-me um dos muitos materiais que me fez chegar.

– Por exemplo, Professor, o último, foi um livro que nós resgatámos de uma cave.

– Estou a lembrar-me perfeitamente. Está a referir-se ao livro acerca do Convento de Mafra. Ora vamos lá ver o que se diz nessa rubrica.

Voltei a recorrer à tablete e pesquisámos na página inicial do «Aveiro e Cultura», na secção «Acesso Directo», o título «Mafra, Convento de –».

E o meu amigo começou a leitura do que lá estava, ao mesmo tempo que mostrava um ar de espanto:

«(...) Certo dia dos começos deste ou finais do ano anterior, já não posso precisar rigorosamente a data, porque os meus neurónios já se encontram gastos devido a um ADN elevado (ADN = Afastamento da Data de Nascimento), e, além do mais, a falta de rigor cronológico não altera em nada o interesse desta verídica história, entrou-me no café onde estava um amigo e colaborador deste espaço, onde vou depositando para a comunidade alguns documentos com interesse. Era ele, por que não dizer o seu nome e para que fique para a História, o amigo e colaborador meu homónimo, quase parecido nos registos escritos do baptismo com o meu, mas com as palavras trocadas, porque tem o José antes do Henrique; e, já agora, também com Neves, que só tem no nome. Ao contrário de mim, que as tenho abundantemente no cabelo, que perdeu o doirado acastanhado com a passagem do tempo, as Neves dele são só no nome, porque na cabeça apenas lhe restam alguns vestígios do cabelo.

Pois é! Entra-me no café o amigo José Henrique Neves e diz-me:

– Professor, está interessado nuns livros antigos?»

Interrompi a leitura espantada do meu amigo e perguntei-lhe:

– Então, amigo Neves, quem é este Neves de quem se fala no texto? Não será o meu amigo? Quer melhor do que isto? Já viu que através deste texto passou a figurar para a posteridade? Já viu que não só figura na listagem dos colaboradores, como também é uma figura de Aveiro de quem se fala!

– Ó Professor, eu nem imaginava que era uma personagem nos seus textos…

– Isto significa que o amigo Henrique Neves, tal como quem lhe procurou meter algum veneno, não tem tido o cuidado de ler o que eu tenho escrito e referido a seu respeito.

Não vamos aqui referir todos os textos em que se faz referência ao amigo Henrique Neves. O que acabou de ser dito é suficiente para aquilatarmos da importância que ele teve para nós. E, se tiverem curiosidade, leiam o resto do texto. Poderão através dessa leitura avaliar o trabalho a que alguns salvados nos obrigam.

Para que fique devidamente registado como memória de um amigo que, para mim, apenas deixou de existir fisicamente, eis uma breve listagem: Colecção Carvalhinho; Galitos 1960; Convento de Mafra; Eva - Revista de 1934; etc. E a sua importância não se mede apenas por aquilo com que ele contribuiu para o enriquecimento de um espaço de cultura na Internet. Nunca poderemos esquecer o amigo que, volta e meia, nos procurava e sempre, em todos os encontros, trazia consigo uma anedota nova para nos fazer rir, como que dando o lamiré para que os momentos de convívio se mantivessem num ambiente de boa disposição.

Para um conhecimento mais aprofundado acerca do que foi a vida de José Henrique de Almeida Neves, têm à disposição o texto de índole biográfica escrito pela filha.

Aveiro, 28 de Outubro de 2021

Henrique J. C. de Oliveira

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(1) – Antes das obras de renovação da escola, iniciadas no ano lectivo de 2010/11, eu tinha o prazer de trabalhar numa Biblioteca Histórica, que  nunca deveria ter sido destruída. A partir do momento em que começou a destruição deste património, o meu local de trabalho foi mudando sucessivamente de espaço. O gabinete foi-me atribuído após a inauguração do edifício remodelado, para que o Projecto Prof2000 pudesse ser continuado. E aqui me tem deixado continuar a trabalhar a Direcção do AEJE, dando todo o apoio à manutenção do espaço «Aveiro e Cultura». 

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