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Eu teria os meus sete anos quando a minha avó Joaninha foi viver para o n.º 23 da antiga rua de Ílhavo, hoje rua Dr. Mário Sacramento. Era um primeiro andar, com um sobrado de madeira, que guardava uma cor rósea, por certo resultante da frequência com que as suas pranchas de pinho arrincoado eram lavadas com sabão em barra.
Subia-se por uma íngreme escada em L que desembocava num corredor que se alongava ao comprimento de toda a casa. De um dos lados, o de dentro, ficava a cozinha, onde a minha tia Florize fritava as melhores batatas do mundo, num enorme fogão a lenha e a serrim, cuja caldeira nos garantia, sempre, água quentinha. Voltei recentemente a ver réplicas desses fogões de ferro, numa das nossas superfícies comerciais, e vontade não me faltou de comprar um, se, por ventura, tivesse espaço na minha casa de agora.
Por essa cozinha acedia-se a um quartinho, com uma janela que dava para o quintal que servia os quatro inquilinos do prédio. Este era o meu mundo: lá estava a minha cama e uma mesa onde eu arrumava a saca da escola e papel de desenho. A seguir a esse quarto ficava um outro, com porta para o corredor; era o da minha tia Conceição, irmã do meu avô Gaspar, que eu já não cheguei a conhecer. Com esta minha tia-avó fui, muitas vezes, manhã cedinho, à missa a Santo António ou às Carmelitas, palmilhando, fizesse chuva ou sol, frio ou calor, a então para mim enorme avenida Araújo e Silva, que por esses tempos ainda era de terra batida, com umas raquíticas árvores recém-plantadas a deixar adivinhar passeios por construir.
Do lado
oposto do corredor, para o lado da rua, ficava a sala, onde toda a
vida da família se desenrolava: era lá que se comia, que se recebia
quem visitava a casa, que se costurava, onde o senhor Pinheiro me
cortava o cabelo. Depois, eram os quartos da minha avó e dos meus
tios maternos, ainda solteiros. No fim do corredor virava-se à
esquerda, para um pequeno espaço no qual nascia a escada que nos
levava ao sótão e também por onde se chegava à casa de banho. Casa
de banho que nada tinha a ver com as casa de banho de hoje: era um
misto de quarto de arrumos, onde ficava uma sanita e um lavatório de
ferro forjado, com uma bacia das mãos, semelhante aos que existiam
em cada quarto de dormir. Penduradas da parede as bacias de zinco,
enormes, onde
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tomávamos o banho completo. Para o sótão ia tudo o que o andar não comportava. O mais importante, para mim, de quanto lá estava, era a escrevaninha-estirador do meu falecido avô Gaspar. Quando se levantava a tampa, lá dentro era um mundo que eu só muito lentamente fui descobrindo. As réguas-tês, os compassos, os tira-linhas, os rolos de projectos de capelas e de campas; os estudos de estátuas; até os livros da escrita da oficina de canteiro que o meu avô tinha tido, ao que me foi dito, na rua do Loureiro, perto das Cinco Bicas.
Num desvão do sótão, os meus tios, a pedido da minha avó Joaninha, tinham cimentado parte do chão, vedado o espaço com rede de capoeiro, e colocado uma vidraça a substituir umas quantas telhas de forma a deixar entrar a luz. Era o improvisado capoeiro lá de casa; o recurso para situações de maior aperto. É que éramos muitos e o rendimento da minha avó, que ficara viúva com um rancho de filhos, limitava-se aos parcos vencimentos dos meus tios que trabalhavam e estudavam na Escola Fernando Caldeira.
A minha mãe estava em Lisboa com o meu irmão, pois que o meu pai, tendo naufragado na pesca do bacalhau, fora mobilizado para a marinha de guerra portuguesa, estando lá a prestar serviço. Era, portanto, na casa de minha avó, o menino da casa. Depois de termos morado na rua Gustavo Ferreira Pinto Basto, mudar para a rua de Ílhavo era quase viver, nesses tempos, fora de portas. Eu já ia sozinho para a escola da Glória e depressa me integrei na malta da Fonte dos Amores.
Mesmo em frente à nossa porta ficava o posto da Polícia de Viação e Trânsito, com os seus agentes fardados "à americana". Eles gostavam imenso de todos nós, os garotos do bairro. E a verdade é que, na nossa irreverente meninice, nunca lhes faltámos ao respeito. Então eu, o miúdo da frente, era tratado como se fosse da família de cada um. Particularmente o chefe Silva, que até me deixava ir para a secretária do posto fazer desenhos no papel de máquina de escrever, tinha por mim um carinho que ainda hoje recordo com saudade.
Por
altura das festas religiosas, Páscoa, Santa Joana, Natal, apesar das
imensas dificuldades com que a minha avó ia governando o barco,
sempre ela me dizia para ir convidar o agente de serviço para subir
à nossa casa para beber
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