Aida Viegas, No Rodar dos Tempos, 1ª ed., Câmara Municipal de Oliveira do Bairro, 2005, 186 pp., ISBN ISBN 72-8675-04-6

Noite tenebrosa

Nas últimas décadas do século XIX a Bairrada era uma região essencialmente agrícola. As habitações eram térreas, feitas de adobes de barro com terra à mistura, porém aqui e além surgiam casas apalaçadas, algumas até brasonadas onde, não raro, moravam Condes, Viscondes, Marqueses, ou seus descendentes.

       Numa noite de breu dum Inverno implacável, um ar gélido, trazido pelo vento que soprava forte, varava os ossos chegando até às almas.

       Na quinta da Carvalhosa, Albertina, uma mulher já madura que desde miúda servia a família do Marquês de Carvalhais, acordou, a meio da noite, sobressaltada com a voz do amo que, aos brados, reclamava a sua presença.

       – Albertina, ó Albertina!... Vai dizer ao cocheiro que prepare a carruagem e venha imediatamente junto de mim.

        Albertina trémula de frio e ainda estremunhada, não teve tempo nem coragem de abrir a boca para dizer fosse o que fosse. Embrulhada num grosso xaile negro, de lã, pegou na candeia e pressurosa atravessou o pátio indo bater à porta de uma dependência junto da cocheira, onde se alojavam os criados, gritando:

       – Serafim!...Serafim!... acorda, homem de Deus.

       Serafim, embora habituado aos desmandos do patrão e a regressar, muitas vezes altas horas, com o Conde das borgatas que este costumava fazer com os amigos, não deixou de expressar a sua surpresa, mostrando-se muito inquieto com a ordem que a Albertina lhe transmitia, pois na cara desta estavam estampados o medo e a aflição.

       – Que é que se passa para acordarem uma pessoa desta forma, a uma hora destas? Aconteceu alguma coisa com a senhora?

       – Não sei, homem, mas vai depressa que o nosso amo está transtornado e dá cabo de ti se não lhe apareces rapidamente na frente.

       À excepção do Manel, moço de recados que ia pelos seus doze anos e que, dada a sua tenra idade, continuava a dormir como uma pedra, toda a criadagem despertou, ao ouvir os gritos do amo, que ecoaram por toda a casa e pelos pátios, ao chamar pela Albertina. Embora acordados, todos os criados permaneceram na cama, de ouvido à escuta, na ânsia de saberem o que se estava a passar. Algo de muito estranho sucedera por certo, para o patrão gritar daquela forma àquelas horas da noite.

       Há vários meses que a Condessa estava enferma, recolhida em seus aposentos; só a Albertina e a Rosa cuidavam dela e ninguém sabia que estranho mal a minava.

       O Dr. Oliveira viera, no início da doença, duas ou três vezes visitar a enferma mas, estranhamente, depois nunca mais fora chamado e a senhora ali permanecia sem melhoras, sem nunca sair de casa, nem à igreja se deslocando em dias de preceito. Os rumores de que um mal ruim a levaria à cova corriam todo o povoado. Ao Conde já ninguém se atrevia a perguntar pela esposa, dado que, sistematicamente de mau humor, ou não respondia ou mastigava entre dentes frases quase ininteligíveis que não esclareciam ninguém. Por sua vez, as criadas, indagadas com frequência, diziam nada entender daquela misteriosa doença e sempre apressadas seguiam o seu caminho, sem adiantarem conversa.

       A Senhora Dona Idalina, assim era conhecida a esposa do Conde, era uma mulher jovem e esbelta dos seus vinte e oito anos, filha duma ilustre família do Minho, consideravelmente mais nova que o marido que rondava os quarenta.

       Adoecera meses antes após uma ausência prolongada do marido o qual se demorara por Lisboa envolvido em assuntos de política.

       Casualmente, nesse espaço de tempo passara lá por casa, um seu primo vindo lá dos lados de Bragança, homem bonito que viajava só, e por ali se detivera uns três ou quatro dias. Juntos deram longos passeios a pé pela quinta, tomaram chá nos jardins que envolviam a casa, foram até ao ribeiro que passava lá nos fundos. Nessa altura a condessa parecia ainda vender saúde e notava-se que seu rosto transbordava de alegria pela presença desse familiar, o qual não via desde que casara já lá iam perto de três anos.

       Ele partiu numa madrugada de neblina, levado pelo cocheiro à estação do caminho-de-ferro e desde então Idalina ficou mergulhada numa profunda tristeza. Nem o regresso do marido a animou, bem pelo contrário, pareceu até agravar a sua nostalgia. Quando passado algum tempo, numa tarde de Sábado em que se ouviu o Conde falar muito alto com a esposa, parecendo que em ralhos, toda a gente da casa teve a sensação de que o mal se propagou também ao marido que, a partir daí, passou a andar taciturno, mal disposto e sempre de mau humor. Foi por essas alturas que chamaram, por três vezes quase seguidas, o doutor, tendo este recomendado, na última visita, repouso absoluto e resguardo à Senhora que desde então nunca mais foi vista no exterior de sua casa, nem ao jardim assomando, para passear ou colher flores, prática tanto do seu agrado noutros tempos.

       Serafim em três tempos apresentou-se diante do Conde que em voz baixa lhe deu algumas ordens. Depois, saindo a correr, atrelou os cavalos e pôs-se sem delongas a caminho na noite cerrada. 

       – Onde vais Serafim? 

       – O que é que aconteceu?

       – A Senhora está pior?...

       Muitas perguntas lhe foram formuladas pela criadagem, porém ele partiu mudo sem nada responder.

       Uma hora e tal depois Serafim estava de volta trazendo em sua companhia alguém. Um vulto feminino, protegido por grossa capa, apeou-se no pátio, entrando em silêncio, guiado pelo cocheiro para o interior da casa. Ali, impaciente esperava o Conde a recém-chegada, e com prontidão a encaminhou para os aposentos do casal.

       Saíram, volvido pouco tempo, o Conde, a Condessa e a mulher que Serafim fora buscar. No pátio, subiram para a carruagem e partiram com os cavalos a trote, após o cocheiro ter prendido aos estribos laterais dois enormes e ferozes cães de guarda da quinta.

       Estrada adiante, logo se sumiram de vista embrenhando-se na noite. A criadagem, moços e moças, agora todos despertos, espreitavam e cochichavam movidos por enorme curiosidade, tentando adivinhar o que se estaria a passar, a razão de tanta pressa e qual o rumo seguido por seus amos.

       Já distantes da povoação, após terem andado alguns quilómetros, bem no meio da gândara, a mando do Patrão, os cavalos deixaram a estrada principal e embrenharam-se na mata por um caminho estreito, indo parar a uma clareira no meio do pinhal. Ali chegados, após recolher algumas carumas e um bom braçado de lenha, o cocheiro acendeu uma enorme fogueira.

       A Condessa foi ajudada a descer da carruagem e acomodaram-na num leito improvisado com grossas mantas junto ao lume que crepitando fortemente, já ardia com vigor. Após algum tempo de dor e intenso sofrimento, ajudada pela mulher que os acompanhava, ali mesmo ao lado da fogueira, Dona Idalina, deu à luz um robusto rapaz.

       Enquanto a parteira cuidava da parturiente que, exausta, pouco ou nada se apercebia do que ao seu redor se passava, um dos homens, com um sangue frio de arrepiar, pegou no recém-nascido e num acto de inqualificável selvajaria esquartejou a criança atirando-a aos cães que sofregamente a devoraram.

       De seguida embrulharam a jovem mãe, quase inconsciente, puseram-na na carruagem, apagaram a fogueira e partiram sem deixar o mais ínfimo sinal do que ali se havia passado.

       No regresso passaram pela casa da parteira onde a deixaram. A pobre estarrecida, dado o choque que sofreu, perdeu a fala só a recuperando uns meses depois do acontecido.

       Como era de prever, de entre a criadagem só os mais novos adormeceram na ausência dos patrões, todos os outros, e eram muitos nessa época, contando as criadas de dentro, as cozinheiras e os moços de lavoura ou criados de fora, que cuidavam do serviço do campo e dos trabalhos pesados, aguardaram despertos entre curiosos e aflitos o regresso ou notícias dos patrões. Ao chegarem os amos recolheram-se em pleno silêncio não dando azo a conversas e, o cocheiro, escusado será dizer que ninguém lhe arrancou palavra sobre o que se passara. O seu silêncio, embora estranhado por todos, manteve-se sepulcral por toda a sua vida.

       A Condessa constava-se que endoidou embora tenha recuperado da doença de que sofria.

       Só os remorsos acabaram por trazer a lume esta história macabra, mas muitos, muitos anos depois.


      Página anterior   Índice geral   Página seguinte