Nas últimas décadas do século XIX
a Bairrada era uma região essencialmente agrícola. As habitações
eram térreas, feitas de adobes de barro com terra à mistura, porém
aqui e além surgiam casas apalaçadas, algumas até brasonadas onde,
não raro, moravam Condes, Viscondes, Marqueses, ou seus
descendentes.
Numa noite de breu dum
Inverno implacável, um ar gélido, trazido pelo vento que soprava
forte, varava os ossos chegando até às almas.
Na quinta da Carvalhosa,
Albertina, uma mulher já madura que desde miúda servia a família
do Marquês de Carvalhais, acordou, a meio da noite, sobressaltada
com a voz do amo que, aos brados, reclamava a sua presença.
– Albertina, ó
Albertina!... Vai dizer ao cocheiro que prepare a carruagem e
venha imediatamente junto de mim.
Albertina trémula de frio
e ainda estremunhada, não teve tempo nem coragem de abrir a boca
para dizer fosse o que fosse. Embrulhada num grosso xaile negro,
de lã, pegou na candeia e pressurosa atravessou o pátio indo bater
à porta de uma dependência junto da cocheira, onde se alojavam os
criados, gritando:
– Serafim!...Serafim!...
acorda, homem de Deus.
Serafim, embora habituado
aos desmandos do patrão e a regressar, muitas vezes altas horas,
com o Conde das borgatas que este costumava fazer com os amigos,
não deixou de expressar a sua surpresa, mostrando-se muito
inquieto com a ordem que a Albertina lhe transmitia, pois na cara
desta estavam estampados o medo e a aflição.
– Que é que se passa para
acordarem uma pessoa desta forma, a uma hora destas? Aconteceu
alguma coisa com a senhora?
– Não sei, homem, mas vai
depressa que o nosso amo está transtornado e dá cabo de ti se não
lhe apareces rapidamente na frente.
À excepção do Manel, moço
de recados que ia pelos seus doze anos e que, dada a sua tenra
idade, continuava a dormir como uma pedra, toda a criadagem
despertou, ao ouvir os gritos do amo, que ecoaram por toda a casa
e pelos pátios, ao chamar pela Albertina. Embora acordados, todos
os criados permaneceram na cama, de ouvido à escuta, na ânsia de
saberem o que se estava a passar. Algo de muito estranho sucedera
por certo, para o patrão gritar daquela forma àquelas horas da
noite.
Há vários meses que a
Condessa estava enferma, recolhida em seus aposentos; só a
Albertina e a Rosa cuidavam dela e ninguém sabia que estranho mal
a minava.
O Dr. Oliveira viera, no
início da doença, duas ou três vezes visitar a enferma mas,
estranhamente, depois nunca mais fora chamado e a senhora ali
permanecia sem melhoras, sem nunca sair de casa, nem à igreja se
deslocando em dias de preceito. Os rumores de que um mal ruim a
levaria à cova corriam todo o povoado. Ao Conde já ninguém se
atrevia a perguntar pela esposa, dado que, sistematicamente de mau
humor, ou não respondia ou mastigava entre dentes frases quase
ininteligíveis que não esclareciam ninguém. Por sua vez, as
criadas, indagadas com frequência, diziam nada entender daquela
misteriosa doença e sempre apressadas seguiam o seu caminho, sem
adiantarem conversa.
A Senhora Dona Idalina,
assim era conhecida a esposa do Conde, era uma mulher jovem e
esbelta dos seus vinte e oito anos, filha duma ilustre família do
Minho, consideravelmente mais nova que o marido que rondava os
quarenta.
Adoecera meses antes após
uma ausência prolongada do marido o qual se demorara por Lisboa
envolvido em assuntos de política.
Casualmente, nesse espaço
de tempo passara lá por casa, um seu primo vindo lá dos lados de
Bragança, homem bonito que viajava só, e por ali se detivera uns
três ou quatro dias. Juntos deram longos passeios a pé pela
quinta, tomaram chá nos jardins que envolviam a casa, foram até ao
ribeiro que passava lá nos fundos. Nessa altura a condessa parecia
ainda vender saúde e notava-se que seu rosto transbordava de
alegria pela presença desse familiar, o qual não via desde que
casara já lá iam perto de três anos.
Ele partiu numa madrugada
de neblina, levado pelo cocheiro à estação do caminho-de-ferro e
desde então Idalina ficou mergulhada numa profunda tristeza. Nem o
regresso do marido a animou, bem pelo contrário, pareceu até
agravar a sua nostalgia. Quando passado algum tempo, numa tarde de
Sábado em que se ouviu o Conde falar muito alto com a esposa,
parecendo que em ralhos, toda a gente da casa teve a sensação de
que o mal se propagou também ao marido que, a partir daí, passou a
andar taciturno, mal disposto e sempre de mau humor. Foi por essas
alturas que chamaram, por três vezes quase seguidas, o doutor,
tendo este recomendado, na última visita, repouso absoluto e
resguardo à Senhora que desde então nunca mais foi vista no
exterior de sua casa, nem ao jardim assomando, para passear ou
colher flores, prática tanto do seu agrado noutros tempos.
Serafim em três tempos
apresentou-se diante do Conde que em voz baixa lhe deu algumas
ordens. Depois, saindo a correr, atrelou os cavalos e pôs-se sem
delongas a caminho na noite cerrada.
– Onde vais Serafim?
– O que é que aconteceu?
– A Senhora está pior?...
Muitas perguntas lhe foram
formuladas pela criadagem, porém ele partiu mudo sem nada
responder.
Uma hora e tal depois
Serafim estava de volta trazendo em sua companhia alguém. Um vulto
feminino, protegido por grossa capa, apeou-se no pátio, entrando
em silêncio, guiado pelo cocheiro para o interior da casa. Ali,
impaciente esperava o Conde a recém-chegada, e com prontidão a
encaminhou para os aposentos do casal.
Saíram, volvido pouco
tempo, o Conde, a Condessa e a mulher que Serafim fora buscar. No
pátio, subiram para a carruagem e partiram com os cavalos a trote,
após o cocheiro ter prendido aos estribos laterais dois enormes e
ferozes cães de guarda da quinta.
Estrada adiante, logo se
sumiram de vista embrenhando-se na noite. A criadagem, moços e
moças, agora todos despertos, espreitavam e cochichavam movidos
por enorme curiosidade, tentando adivinhar o que se estaria a
passar, a razão de tanta pressa e qual o rumo seguido por seus
amos.
Já distantes da povoação,
após terem andado alguns quilómetros, bem no meio da gândara, a
mando do Patrão, os cavalos deixaram a estrada principal e
embrenharam-se na mata por um caminho estreito, indo parar a uma
clareira no meio do pinhal. Ali chegados, após recolher algumas
carumas e um bom braçado de lenha, o cocheiro acendeu uma enorme
fogueira.
A Condessa foi ajudada a
descer da carruagem e acomodaram-na num leito improvisado com
grossas mantas junto ao lume que crepitando fortemente, já ardia
com vigor. Após algum tempo de dor e intenso sofrimento, ajudada
pela mulher que os acompanhava, ali mesmo ao lado da fogueira,
Dona Idalina, deu à luz um robusto rapaz.
Enquanto a parteira cuidava
da parturiente que, exausta, pouco ou nada se apercebia do que ao
seu redor se passava, um dos homens, com um sangue frio de
arrepiar, pegou no recém-nascido e num acto de inqualificável
selvajaria esquartejou a criança atirando-a aos cães que
sofregamente a devoraram.
De seguida embrulharam a
jovem mãe, quase inconsciente, puseram-na na carruagem, apagaram a
fogueira e partiram sem deixar o mais ínfimo sinal do que ali se
havia passado.
No regresso passaram pela
casa da parteira onde a deixaram. A pobre estarrecida, dado o
choque que sofreu, perdeu a fala só a recuperando uns meses depois
do acontecido.
Como era de prever, de
entre a criadagem só os mais novos adormeceram na ausência dos
patrões, todos os outros, e eram muitos nessa época, contando as
criadas de dentro, as cozinheiras e os moços de lavoura ou criados
de fora, que cuidavam do serviço do campo e dos trabalhos pesados,
aguardaram despertos entre curiosos e aflitos o regresso ou
notícias dos patrões. Ao chegarem os amos recolheram-se em pleno
silêncio não dando azo a conversas e, o cocheiro, escusado será
dizer que ninguém lhe arrancou palavra sobre o que se passara. O
seu silêncio, embora estranhado por todos, manteve-se sepulcral
por toda a sua vida.
A Condessa constava-se que
endoidou embora tenha recuperado da doença de que sofria.
Só
os remorsos acabaram por trazer a lume esta história macabra, mas
muitos, muitos anos depois. |