O
nosso povo sempre fez jus a uma boa refeição, gosta de
cozinhar e comer bem. No entanto, durante a primeira metade do
século, a escassez de alimentos, ocasionada pelo decorrer
das guerras, obrigava toda a gente, pobres e ricos, a reduzir
a sua alimentação.
Todos
os artigos de compra e sobretudo os géneros alimentícios,
eram racionados e vendidos por senhas rateadas de acordo com o
agregado familiar
Nem
os alimentos produzidos em casa se podiam consumir à
vontade, toda a produção tinha de ser obrigatoriamente
“manifestada” e a maior parte dela entregue no Grémio. Se
nem todos passavam fome era porque conseguiam esconder alguns
cereais e outros produtos que cultivavam. Os mais
endinheirados por vezes adquiriam na “candonga” alguns
bens menos correntes.
O
merceeiro tinha uma caderneta para cada chefe de família dos
seus clientes onde estavam mencionadas as pessoas que faziam
parte do agregado familiar Era mediante estes dados que cada
família tinha direito a determinado número de senhas, nas
quais constava a porção que lhe cabia de cada artigo. Uma
família de 6 pessoas, por exemplo, poderia ter direito, por
mês, a meio litro de azeite, meio quilo de açúcar, um
quarto de quilo de sabão, meio quilo de bacalhau
Em
algumas famílias o dinheiro era tão pouco, que nem
conseguiam comprar a mísera porção que lhes estava
destinada.
Nestes
casos o merceeiro, embora sujeitando-se a pesada multa ou
mesmo prisão, vendia na “candonga” esses produtos aos
amigos ou a quem lhos pudesse pagar por preços elevadíssimos.
Hoje,
que há tanta fartura e se estraga tanta comida, deve ser difícil
aos jovens acreditar nestes relatos. Na década de quarenta
cabia a cada membro duma família, por refeição, meia
sardinha ou um naco de toucinho. Toda a carne de porco era
aproveitada para tempero, dado que o azeite era uma raridade,
óleos e margarinas não existiam e manteiga poucos a
conheciam. Carne de vaca comprava-se no talho duas ou três
vezes por ano em dias de festa.
Galinha
ou coelho matava-se ao Domingo só em casa das famílias mais
remediadas. O caldo de galinha só era dado como dieta aos
doentes, porém, quando uma mulher dava à luz tinha o privilégio
de comer galinha todos os dias após o parto; algumas
gabavam-se de comerem 15 galinhas em 15 dias.
O
peixe que se consumia era: sardinha, chicharro, carapau
e raramente lingueirão ou cavalas. Durante o Verão
todas as famílias compravam peixe para salgar, o qual
iriam comer durante o Inverno.
O pão
era pouco, por isso tinha de ser comido com parcimónia.
Pedacinho de pão que ao chão caísse era apanhado, beijado e
às vezes soprado, mas sempre comido.
Quando
em casa faltava a broa, pedia-se uma emprestada à vizinha,
devolvendo-lha após a cozedura seguinte. Com o terminar da
guerra tudo foi voltando à normalidade. A evolução, muito
lenta de início, começou a acelerar com o passar dos anos até
chegar ao turbilhão e à fartura de que hoje desfrutamos.
De
uma alimentação simples, frugal e pensamos que saudável,
passou-se para outra bem diferente em que a carne e outras
coisas se comem em demasia e o processo de cozinhar os
alimentos se alterou totalmente; saltou-se do oito para o
oitenta. Até à década de 1960, a população distribuía as
refeições ao longo do dia do seguinte modo:
-
de manhã bem cedo tomava-se um café, geralmente de cevada,
que se fazia ao borralho, na chocolateira de cobre que aí permanecia
toda a semana com as borras às quais todos os dias se
acrescentava uma ou duas colheradas de pó; este “café”
era acompanhado com migas de broa; como complemento os homens
e muitas mulheres matavam o bicho com um copo de cachaça;
-
pelas 9 da manhã comiam o almoço que constava de sopa ou
comida de garfo; batatas cozidas com cebola e “conduto” se
houvesse;
-
ao meio dia era a vez do jantar; sopa feita com feijão,
batatas, couves e carne de porco com um pedaço de broa;
-
à noite vinha a ceia; escuado ou escorrido, de batatas e
bacalhau com couves, temperadas de azeite, quando havia;
-
no Verão, a meio da tarde, comia-se a merenda; broa e
azeitonas, figos secos ou “jaquinzinhos” fritos.
A
refeição do meio dia era, durante quase todo o ano, comida
no campo onde a família trabalhava de manhã à noite. Apenas
uma mulher ficava em casa para tratar do gado e fazer a
comida.
Esta
mulher punha ao lume, logo pela manhã, a panela de ferro
com os feijões e a carne de porco a cozer Ao lado na lareira
fervia o panelão grande da “lavagem” dos porcos. A mulher
afadigada ia atiçando o lume a uma e a outra enquanto cuidava
das aves de bico, dos coelhos, dos porcos e das vacas.
Chegado
o meio dia preparava o cesto com a panela da sopa, metade de
uma broa, uma garrafa de vinho e algumas colheres. Tapava
tudo com um pano e, de cesto à cabeça em cima da rodilha,
lá ia ligeirinha levar o comer
Os
trabalhadores aproveitavam a sombra duma árvore, quando esta
existia ou comiam mesmo junto à carroça, cujos varais
serviam de assento. A seu lado presa a uma roda estava a vaca
que ia ruminando uma gabela de pasto ou de bandeiras.
Durante
a refeição a garrafa do vinho rodava e todos bebiam,
incluindo as crianças: “o vinho ajudava a empurrar a comida
e. dava força” Chegava-se ao extremo de calar os bebés,
quando estes choravam, com um rolhão de açúcar molhado em
vinho. Leite só o tomavam as crianças de colo, cujas mães
as não pudessem amamentar, e os doentes. Os doces só se
comiam por festa e em doses mínimas. Os rebuçados que
vulgarmente se encontravam à venda, cinco por meio tostão e
“cada cor seu paladar” serviam muitas vezes para adoçar o
café em vez do açúcar que quase não existia
Pelo
Natal faziam-se umas filhoses ou bilharacos de abóbora e
pelas festas da terra uma sopa de carne de vaca e assava-se
carneiro. A sobremesa mais usada em dias de festa era aletria.
A Páscoa
era adoçada pelos folares e algumas amêndoas. O pão-de-ló
e os suspiros só vieram mais tarde.
As
papas de abóbora eram feitas só no fim da vindima e mais
uma ou duas vezes por ano. A parte de cima das papas era a
mais gostosa e depois destas despejadas na bacia de barro e
cobertas de canela, secava rapidamente.
Conta-se
que um dia, um pequenote, apanhando a mãe desprevenida, comeu
com grande sofreguidão a “côdea” da bacia das papas.
Depois
de satisfeita a sua gulodice, reparou pesaroso no mau aspecto
com que aquilo ficou e, pensando que a mãe descobriria a sua
lambarice, pedia às papas encarecidamente:
-
«ó papas criai côdea senão a minha mãe mata-me». Esta e
outras historietas contavam-se amiúde ao borralho e com elas
se iam ensinando as crianças a não mexerem onde não deviam.
O
bacalhau, fiel amigo dos portugueses, não faltava em casa
nenhuma pendurado numa das paredes da chaminé. Umas febras
de bacalhau cru e um naco de broa já ajudavam para beber um
copo quando o pessoal, chegado do campo, vinha com a
“barriga a dar horas” e a panela ainda sem estar ao lume.
Além de o bacalhau ser sempre benvindo no escuado, fazia-se
com ele sopa logo pela manhã. Porém o melhor pitéu era, sem
dúvida, a “tibornada”, ou bacalhau à lagareiro, assado
no lagar do azeite com batatas a murro quando a malta ia moer
a azeitona.
Antigamente,
o leitão assado à moda da nossa Bairrada era servido
apenas nos casamentos; como tal era vulgar perguntar a um
jovem casadoiro: “quando é que nos vais dar leitão”? O
consumo deste prato foi-se generalizando e hoje em dia, por
tudo e por nada, se manda assar um leitão que se come
acompanhado de laranja, sempre com redobrado apetite em
qualquer dia do ano.
Em
terra de vinhedos, o vinho não podia faltar à mesa e se um
copo de bom vinho pode estimular o apetite e tornar mais agradável
o repasto, não deixava de ser verdade que o vinho dava de
comer a um milhão de portugueses; o que não se acrescentava
e também era uma realidade é que grande parte desse milhão
de portugueses, além de comer, também bebia e muitas vezes
demasiado.
A
bebedeira era o estado normal de muita gente e os males incontáveis
que daí advinham e se projectavam de geração em geração,
tornavam-se um pesadelo. “Beber um copito”, “tomar um
tinto na adega de um amigo”, convidar
alguém para vir provar o vinho, chamar a comadre para beber
um branquinho ao Domingo, “pagar uma rodada na taberna”,
estava tudo certo.
Depois...
andar à bulha ao fechar a taberna; chegar a casa e dar uma
tareia à mulher e aos filhos sem motivo nem razão; partir a
loiça, espantalhar tudo e maltratar os animais; andar pelas
ruas a cambalear a pé ou de bicicleta; ficar caído pelas
valetas; gerar filhos com problemas - tudo isto era frequente
e tristemente lamentável.
Para
quem não bebia vinho, além da água fresca e pura das nossas
fontes, havia o pirolito que era a gasosa da época, ou a
laranjada do Buçaco. Mais tarde andou muito em moda o
“champorriô”, uma mistura de vinho branco, cerveja e açúcar.
Um
costume muito interessante, que de certo modo tinha a ver com
a alimentação e ao mesmo tempo com as festas de “anos”,
eram as “tramoçadas”:
-
“Venho convidar-te para vires, Domingo, à minha tramoçada”
Era este o convite que qualquer rapariguita dirigia às suas
amigas para a festa do seu aniversário.
A
ementa constava de uma ou duas “pratadas” de tremoços
acompanhadas de vinho ou raramente de laranjada. Nunca
faltava animação na festa onde ao redor da mesa se comiam os
tremoços, se cantava e até por vezes se dançava.
“Fulana fez uma grande tramoçada!!!” Esta exclamação
era sinal da ostentação dada. Também era costume dar tremoços
no final das novenas a quem nelas participava e ajudava.
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