Aida Viegas, Oliveira do Bairro. Memórias de um século. Águeda, AVI, 1994, pp. 43-46.

Natal de ontem e de hoje

Noutros tempos, nas nossas aldeias, o Natal era uma festa que se restringia quase exclusivamente a práticas religiosas à volta da igreja; festa singela mas talvez mais fiel ao seu verdadeiro significado que nos nossos dias.

Começava-se a preparação do Natal com o início das novenas ao Menino Jesus em todos ou quase todos os lugares. Nos nove dias que antecediam a noite de vinte e quatro de Dezembro, homens, mulheres e crianças reuniam-se nas capelas ou igrejas para juntos rezar e cantar em louvor do Deus Menino, preparando-se assim para o seu nascimento. Era grande a devoção com que o povo acorria às novenas só ficando em casa os descrentes ou impossibilitados.

Em algumas terras nunca esta prática foi posta de parte, noutras caiu no esquecimento, mas dentre estas há algumas que estão a retomar a tradição.

Deixamos aqui algumas quadras dos cânticos mais populares, entoados no decorrer das novenas do Menino, nas noites frias de Dezembro. Eram cantadas ora pelos homens ora pelas mulheres e intercaladas de fervorosas preces.


Vinde ó pastores
Com sua alegria,
Redentor do mundo
Nasce de Maria. (bis)

Do varão nasceu a vara
Da vara nasceu a flor
Da flor nasceu Maria
De Maria o Redentor

Vinde ó pastores
Com seu prazer,
Redentor do mundo
Está para nascer. (bis)

Pastorinhos do deserto
Correi todos a Belém

Adorar o Deus Menino
E a Virgem Sua Mãe.

 

Na véspera de Natal, à tarde, eram os homens os encarregados de armar o presépio na igreja. Este teria maior ou menor número de pastores mas nunca lhe faltavam as figuras principais: o Menino Jesus, Nossa Senhora e S. José, os Anjos, os três Reis Magos, a vaca e o burro e lá bem no alto a estrela. Os presépios eram: testemunho da fé dos crentes, mostra da arte dos seus executantes e a alegria e encanto não só da pequenada, mas dos fiéis em geral, que se enterneciam quando na noite ou manhã de Natal entravam na igreja toda iluminada, com o presépio em lugar de destaque para que todos o pudessem admirar.

Por aqui os presépios eram armados, quase só, nas igrejas; raras eram as famílias que em suas casas o faziam por não possuírem figuras nem dinheiro para as comprar

Em quase todas as igrejas matrizes era rezada, à meia noite da véspera de Natal, a chamada Missa do Galo.

No fim da missa o padre, acolitado por dois homens de opas e luvas brancas e por baixo da umbela que um ter­ceiro segurava, ia até junto do presépio, pegava na imagem do Menino e começava a dá-la a beijar a todos os presentes que entoavam devotamente cânticos de louvor, por vezes gritados ou arrastados, mas sempre cheios dos mais belos sentimentos.

Ninguém arredava pé sem ter beijado o Menino. Isto repetia-se em todas as missas da quadra natalícia. A meia noite, por todo o concelho, ouviam-se repicar os sinos e estralejar os foguetes.

Durante este período e até ao dia de Reis, todas as famílias levavam para a igreja uma oferenda, que deposita­vam junto ao presépio, composta das mais diversas coisas, predominando os produtos da terra: batatas, cebolas, réstias de alhos, abóboras, ovos, frutas ou mesmo galinhas, coelhos e até pés de porco.

Havia quem levasse ofertas surpresa: uma caixa fechada, não sabendo quem a comprava, se levava para casa, um casal de pombas ou um rato. As melhores ofertas eram as de comes e bebes; levadas num açafate ou tabuleiro, enfeitado com um paninho branco ou com papel de seda artisticamente recortado, estas compunham-se de petiscos variados tais como um prato de bilharacos, uns figuinhos secos e tremoços, duas garrafas de vinho com os gargalos unidos por um fio donde pendiam rebuçados ou bolachas; um prato de aletria, filhoses e uma garrafinha de branco; um grande pão de ló, uma garrafa de jeropiga... etc.

Terminada a missa organizava-se um leilão, no adro da igreja, para rematar as oferendas.

Todos faziam questão que a sua oferta fosse a melhor e rendesse mais; para tal picavam os lances que o “arrematador” ia proclamando em voz forte. O produto do leilão destinava-se ao culto. O Natal era pois uma festa voltada para o Menino Jesus e para Ele eram as prendas.

Só em alguma casa mais abastada ou de gente mais evoluída a ementa melhorava ou variava.

Nas famílias dos lavradores a ceia era igual à de todos os dias, tendo apenas a adoçá-la algumas filhoses ou bilharacos, castanhas assadas ou figos secos e pela noite adiante umas canecas de vinho quente com açúcar; na lareira a fogueira crepitava mais viva e escolhia-se um cepo que durasse até de madrugada.

Nos largos ardiam durante toda a noite grandes fogueiras, à volta das quais se reuniam apenas os homens.

À roda da fogueira, alimentada quase sempre com lenha surripiada, bebia-se vinho e comiam-se castanhas, laranjas e tangerinas que eram igualmente roubadas nos aidos mais próximos. Por vezes insistiam com os donos das laranjeiras para virem até à fogueira para mais facilmente lhes assaltarem os pomares. Eles saboreavam gulosamente a fruta e, os larápios, gozavam à brava, não só pelo gostinho das boas laranjas mas sobretudo pela lorpice daqueles que acediam em sair de casa para confraternizar com quem os roubara.

Poucas eram as crianças que recebiam presentes, as que punham o sapatinho na lareira apenas lá encontravam um punhado de rebuçados ou, quando muito, um brinquedo de lata. Não deixavam no entanto de se sentir felizes, pois uma boneca pequena mesmo feita de trapo era já motivo de grande alegria.

No Natal, imbuído da mística religiosa do nascimento do Menino Deus, a alegria era sã e os costumes simples como a vida das pessoas.

Hoje a profusão de luzes, de prendas e de manjares deixa não só as crianças mas também os adultos perdidos e confusos de tal maneira que muitos esquecem a razão da festa.

Ao falar no Natal vem-nos ainda à memória os corte­jos das pastorinhas ou dos Reis, tradição muito generaliza­da nas nossas terras, nesta época. Estes cortejos começaram a realizar-se para angariação de fundos e ainda hoje a eles se recorre.


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