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José Saramago

Azinhaga - Portugal


AZINHAGA — “A terra é plana, lisa como a palma da mão, sem acidentes orográficos dignos de tal nome, um ou outro dique que por ali se tivesse levantado mais servia para guiar a corrente onde causasse maior dano do que para conter o ímpeto poderoso das cheias. Desde tão distantes épocas, a gente nascida e vivida na minha aldeia aprendeu a negociar com os dois rios que acabaram por lhe configurar o carácter, o Almonda, que a seus pés desliza, o Tejo, lá mais adiante, meio oculto por trás da muralha de choupos, freixos e salgueiros que lhe vai acompanhando o curso, e um e outro, por boas ou más razões, omnipresentes na memória e nas falas das famílias. Foi nestes lugares que vim ao mundo, foi daqui, quando ainda não tinha dois anos, que meus pais, migrantes empurrados pela necessidade, me levaram para Lisboa, para outros modos de sentir, pensar e viver, como se nascer eu onde nasci tivesse sido consequência de um equívoco do acaso, de uma casual distracção do destino, que ainda estivesse nas suas mãos emendar.”

(J. Saramago, As Pequenas Memórias,  p. 12)


RETRATO DO POETA QUANDO JOVEM

                

Há na memória um rio onde navegam

Os barcos da infância, em arcadas

De remos inquietos que despregam

Sobre as águas as folhas recurvadas.

 

Há um bater de remos compassado

No silêncio da lisa madrugada,

Ondas brandas se afastam para o lado

Com o rumor da seda amarrotada.

 

Há um nascer do sol no sítio exacto,

À hora que mais conta duma vida,

Um acordar dos olhos e do tacto,

Um ansiar de sede inextinguida.

 

Há um retrato de água e de quebranto

Que do fundo rompeu desta memória,

E tudo quanto é rio abre no canto

Que conta do retrato a velha história.

(José Saramago, Os Poemas Possíveis)

 


 

“Já não existe a casa em que nasci, mas esse facto é-me indiferente porque não guardo qualquer lembrança de ter vivido nela. Também desapareceu num montão de escombros a outra que durante dez ou doze anos foi o lar supremo, o mais íntimo e profundo, a pobríssima morada dos meus avós maternos, Josefa e Jerónimo se chamavam, esse mágico casulo onde sei que se geraram as metamorfoses decisivas da criança e do adolescente.”

(J. Saramago, As Pequenas Memórias, p. 18) 

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