Machado de Assis, Tu, só tu, puro amor.

Tu, só tu, puro amor

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CENA XII

D. FRANCISCO DE ARAGÃO, D. ANTÓNIO DE LIMA,

depois D. MANUEL DE PORTUGAL

 

            D. FRA. —  (depois de um instante de reflexão). Talvez chegue cedo demais. (Dá um passo para a porta da esquerda) Não; melhor é que lhe fale... mas, se se aventa a notícia? Meu Deus, não sei... não sei... Ouço passos... (Entra D. ANTÓNIO DE LIMA) Ah!

            D. ANT. —  Que foi?

            D. FRA. —  Nada, nada... não sabia quem era. Sois vós... (Risonha) Chegaram galeões da Ásia; boas notícias, dizem...

            D. ANT. —  (sombrio). Eu não ouvi dizer nada. (Querendo retirar-se) Permitis?...

            D. FRA. —  Jesus! Que tendes?... que ar é esse? (Vendo entrar D. MANUEL DE PORTUGAl) Vinde cá, Senhor D. Manuel de Portugal, vinde saber o que tem este meu bom e velho amigo, que me não quer... (Segurando na mão de D. ANTÓNIO.) Então, eu já não sou a vossa frescura de Maio?...

            D. ANT. —  (sorrindo, a custo). Sois, sois. Manhosamente subtil, ou subtilmente manhosa, à escolha; eu é que sou uma triste secura de Dezembro, que me vou e vos deixo. Permitis, não? (corteja-a e dirige-se para a porta).

            D. MAN. —   (interpondo-se). Deixai que vos levante o reposteiro. (Levanta o reposteiro.) Ides ter com Sua Alteza, suponho?

            D. ANT. —  Vou.

            D. MAN. —   Ides levar-lhe notícias da Índia?

            D. ANT. —  Sabeis que não é o meu cargo...

            D. MAN. —   Sei, sei; mas dizem que... Senhor D. António, acho-vos o rosto anuviado, alguma coisa vos penaliza ou turva. Sabeis que sou vosso amigo; perdoai se vos interrogo. Que foi? que há?

            D. ANT. —  (gravemente). Senhor D. Manuel, tendes vinte e sete anos, eu conto sessenta; deixai-me passar. (D. MANUEL inclina-se, levantando o reposteiro. D. ANTÓNIO desaparece).

 

CENA XIII

D. MANUEL DE PORTUGAL, D. FRANCISCA DE ARAGÃO

 

            D. MAN. —   Vai dizer tudo a El-rei.

            D. FRA. —  Credes?

            D. MAN. —   Camões contou-me  o encontro que tivera com o Caminha aqui;  eu ia falar ao Senhor D. António; achei-o agora mesmo, ao pé de uma janela, com o dissimulado Caminha, que lhe dizia: "Não vos nego, Senhor D. António, que os achei naquela sala, a sós, e que vossa filha fugiu desde que eu lá entrei".

            D. FRA. —  Ouvistes isso?

            D. MAN. —   D. António ficou severo e triste. "Querem escândalo?..." foram as suas palavras. E não disse outras; apertou a mão ao Caminha, e seguiu para cá... Penso que foi pedir alguma coisa a El-rei. Talvez o desterro.

            D. FRA. —  O desterro?

            D. MAN. —   Talvez. Camões há-de voltar agora aqui; disse-me que viria falar ao Senhor D. António. Para quê? Que outros lhe falem, sim; mas o meu Luís que não sabe conter-se... D. Catarina?

            D. FRA. —  Foi lançar-se aos pés da rainha, a pedir-lhe protecção.

            D. MAN. —   Outra imprudência. Foi há muito?

            D. FRA. —  Pouco há.

            D. MAN. —   Ide ter com ela, se é tempo, e dizei-lhe que não, que não convém falar nada. (D. Francisca vai a sair, e pára) Recusais?

            D. FRA. —  Vou, vou. Pensava comigo uma coisa. (D. MANUEL vai a ela) Pensava que é preciso querer muito àqueles dois, para nos esquecermos assim de nós.

            D. MAN. —   É verdade. E não há mais nobre motivo da nossa mútua indiferença. Indiferença, não; não o é, nem o podia ser nunca. No meio de toda essa angústia que nos cerca, poderia eu esquecer a minha doce Aragão? Podereis vós esquecer-me? Ide agora; nós que somos felizes, temos o dever de consolar os desgraçados. (D. Francisca sai pela esquerda).

 

CENA XIV

D. MANUEL DE PORTUGAL, logo D. ANTÓNIO DE LIMA

 

            D. MAN. —   Se perco o confidente dos meus amores, da minha mocidade, o meu companheiro de longas horas... Não é impossível. El-rei concederá o que lhe pedir D. António. A culpa, força é confessá-lo a culpa é dele, do meu Camões, do meu impetuoso poeta; um coração sem freio... (Abre-se o reposteiro, aparece D. ANTÓNIO.) D. António!

            D. ANT. —  (da porta, jubiloso). Interrogastes-me há pouco; agora hei tempo de vos responder.

            D. MAN. —   Talvez não seja preciso.

            D. ANT. —  (adianta-se). Adivinhais então?

            D. MAN. —   Pode ser que sim.

            D. ANT. —  Creio que adivinhais.

            D. MAN. —   Sua Alteza concedeu-vos o desterro de CAMÕES.

            D. ANT. —  Esse é o nome da pena; a realidade é que Sua Alteza restituiu a honra a um vassalo, e a paz a um ancião.

            D. MAN. —   Senhor D. António...

            D. ANT. —  Nem mais uma palavra, Senhor D. Manuel de Portugal, nem mais uma palavra. Mancebo sois; é natural que vos ponhais do lado do amor; eu sou velho, e a velhice ama o respeito. Até à vista, Senhor D. Manuel, e não turveis o meu contentamento. (Dá um passo para sair).

            D. MAN. —   Se matais vossa filha?

            D. ANT. —  Não a matarei. Amores fáceis de curar são esses que aí brotam no meio de galanteios e versos. Versos curam tudo. Só não curam a honra os versos; mas para a honra dá Deus um rei austero, e um pai inflexível... Até à vista, Senhor D. Manuel. (Sai pela esquerda).

 

CENA XV

D. MANUEL DE PORTUGAL, CAMÕES

 

            D. MAN. —   Perdido... está tudo perdido. (CAMÕES entra pelo fundo) Meu pobre Luís! Se soubesses...

            CAMÕES —  Que há?

            D. MAN. —   El-rei... El-rei atendeu às súplicas do Senhor D. António. Está tudo perdido.

            CAMÕES —  E que pena me cabe?

            D. MAN. —   Desterra-vos da corte.

            CAMÕES —  Desterrado! Mas eu vou ter com Sua Alteza, eu direi...

            D. MAN. —   (aquietando-o). Não direis nada; não tendes mais que cumprir a real ordem; deixai que os vossos amigos façam alguma coisa; talvez logrem abrandar o rigor da pena. Vós não fareis mais do que agravá-la.

            CAMÕES. —  Desterrado! E para onde?

            D. MAN. —   Não sei. Desterrado da corte é o que é certo. Vede... não há mais demorar no paço. Saiamos.

            CAMÕES —  Aí me vou eu, pois, caminho do desterro, e não sei se da miséria! Venceu então o Caminha? Talvez os versos dele fiquem assim melhores. Se nos vai dar uma nova Eneida, o Caminha? Pode ser, tudo pode ser... Desterrado da corte? Cá me ficam os melhores dias, e as mais fundas saudades. Crede, Senhor D. Manuel, podeis crer que as mais fundas saudades cá me fiCAM. — 

            D. MAN. —   Tornareis, tornareis...

            CAMÕES —  E ela? Já o saberá ela?

            D. MAN. —   Cuido que o Senhor D. António foi dizer-lho em pessoa. Deus! Aí vêm eles.

 

CENA XVI

Os mesmos, D. ANTÓNIO DE LIMA, D. CATARINA DE ATAÍDE

 

            (D. ANTÓNIO aparece à porta da esquerda, trazendo D. Catarina pela mão. D. CATARINA vem profundamente abatida).

 

            D. CAT. —  (à parte, vendo CAMÕES). Ele! Dai-me forças, meu Deus! (D. ANTÓNIO corteja os dois, e segue na direcção no fundo. CAMÕES dá um passo, para falhar-lhe, mas D. MANUEL contém-no. D. CATARINA, prestes a sair, volve a cabeça para trás). 

 

CENA XVII

D. MANUEL DE PORTUGAL, CAMÕES

 

            CAMÕES —  Ela aí vai... talvez para sempre.... Credes que para sempre sempre?

            D. MAN. —   Não. Saiamos!

            CAMÕES —  Vamos lá; deixemos estas salas que tão funestas me foram. (Indo ao fundo e olhando para dentro) Ela aí vai, a minha estrela, aí vai a resvalar no abismo, donde não sei se a levantarei mais... Nem eu... (voltando-se para D. MANUEL) nem vós, meu amigo, nem vós que me quereis tanto, ninguém.

            D. MAN. —   Desanimais depressa, Luís. Por que ninguém?

            CAMÕES —  Não saberia dizer-vos; mas sinto-o aqui no coração. Essa clara luz, essa doce madrugada da minha vida, apagou-se agora mesmo, e de uma vez.

            D. MAN. —   Confiai em mim, nos meus amigos, nos vossos amigos. Irei ter com eles; induzi-los-ei a...

            CAMÕES —  A quê? A mortificarem um camareiro-mor, a fim servir um triste escudeiro, que já estará caminho de África?

            D. MAN. —   Ides à África?

            CAMÕES —  Pode ser; sinto umas tonteiras africanas. Pois que fecham a porta dos amores, abrirei eu mesmo as da guerra. Irei pelejar, ou não sei se morrer... África, disse eu? Pode ser que Ásia também, ou Ásia só; o que me der na imaginação.

            D. MAN. —   Saiamos.

            CAMÕES —  E agora, adeus, infieis paredes; sede ao menos compassivas; guardai-ma, guardai-ma bem, a minha formosa D. Catarina! (A D. Manuel) Credes que tenho vontade de chorar?

            D. MAN. —   Saiamos, Luís!

            CAMÕES —  E não choro, não; não choro... não quero... (Forcejando por ser alegre) Vedes? até rio! Vou-me para bem longe. Considerando bem, Ásia é melhor; lá rematou a audácia lusitana o seu edifício, lá irei escutar o rumor dos passos do nosso Vasco. E este sonho, esta quimera, esta coisa que me flameja cá dentro, quem sabe se... Um grande sonho, Senhor D. Manuel... Vede lá, ao longe, na imensidade desses mares, nunca dantes navegados, uma figura rútila, que se debruça dos balcões da aurora, coroada de palmas indianas? É a nossa glória, é a nossa glória que alonga os olhos, como a pedir o seu esposo ocidental. E nenhum lhe vai dar o ósculo que a fecunde; nenhum filho desta terra, nenhum que empunhe a tuba da imortalidade, para dizê-la aos quatro ventos do céu... Nenhum... (Vai amortecendo a voz) Nenhum... (Pausa, fita D. MANUEL como se acordasse e dá de membros) Uma grande quimera, senhor D. Manuel. Vamos ao nosso desterro.

FIM

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Inserido em
15-03-2006