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CENA VIII
D. LEOCÁDIA, D. ADELAIDE
D. LEO. — Com dois anos de China está
curado. (Vendo entrar ADELAIDE) O Dr. Cavalcante saiu
agora mesmo. Ouviste o meu exame médico?
D. ADE. — Não. Que lhe pareceu?
D. LEO. — Cura-se.
D. ADE. — De que modo?
D. LEO. — Não posso dizer; é segredo
profissional.
D. ADE. — Em quantas semanas fica bom?
D. LEO. — Em dez anos.
D. ADE. — Misericórdia! Dez anos!
D. LEO. — Talvez dois; é moço, é
robusto, a natureza ajudará a medicina, conquanto esteja muito
atacado. Aí vem teu marido.
CENA IX
Os MESMOS, MAGALHÃES
MAG. — (a D. LEOCÁDIA).
Cavalcante disse-me que vai embora; eu vim correndo saber o
que é que lhe receitou.
D. LEO. — Receitei-lhe um remédio
enérgico, mas que há-de salvá-lo. Não são consolações de
cacaracá. Coitado! Sofre muito, está gravemente doente; mas,
descansem, meus filhos, juro-lhes, à fé do meu grau, que
hei-de curá-lo. Tudo é que me obedeça, e este obedece. Oh!
aquele crê em mim. E vocês, meus filhos? Como vão os meus
doentezinhos? Não é verdade que estão curados? (Sai pelo
fundo).
CENA X
MAGALHÃES, D. ADELAIDE
MAG. — Tinha vontade de saber o que é
que ela lhe receitou.
D. ADE. — Não falemos disso.
MAG. — Sabes o que foi?
D. ADE. — Não; mas titia disse-me que
a cura se fará em dez anos. (Espanto de Magalhães) Sim,
dez anos; talvez dois, mas a cura certa é em dez anos.
MAG. — (atordoado). Dez anos!
D. ADE. — Ou dois.
MAG. — Ou dois?
D. ADE. — Ou dez.
MAG. — Dez anos! Mas é impossível!
Quis brincar contigo. Ninguém leva dez anos a sarar; ou sara
antes ou morre.
D. ADE. — Talvez ela pense que a
melhor cura é a morte.
MAG. — Talvez. Dez anos!
D. ADE. — Ou dois; não esqueças.
MAG. — Sim, ou dois; dois anos é
muito, mas, há casos... Vou ter com ele.
D. ADE. — Se titia quis enganar a
gente, não é bom que os estranhos saibam. Vamos falar com ela,
talvez que, pedindo muito, ela diga a verdade. Não leves essa
cara assustada; é preciso falar-lhe naturalmente, com
indiferença.
MAG. — Pois vamos.
D. ADE. — Pensando bem, é melhor que
eu vá só; entre mulheres...
MAG. — Não; ela continuará a zombar de
ti; vamos juntos, estou sobre brasas.
D. ADE. — Vamos.
MAG. — Dez anos!
D. ADE. — Ou dois. (Saem pelo
fundo).
CENA XI
D. CAR. — (entrando pela direita).
Ninguém! Afinal foram-se! Esta casa anda hoje cheia de
mistérios. Há um quarto de hora quis vir aqui, e prima
Adelaide disse-me que não, que se tratavam aqui negócios
graves. Pouco depois levantou-se e saiu; mas antes disso
contou-me que mamãe é que quer que eu vá para a Grécia. A
verdade é que todos me falam de Atenas, de ruínas, de danças
gregas, da Acrópole... Creio que é Acrópole que se diz.
(Pega no livro que MAGALHÃES estivera lendo, senta-se, abre e
lê) "Entre os provérbios gregos, há um muito fino: Não
consultes médico; consulta alguém que tenha estado doente".
Consultar alguém que tenha estado doente! Não sei que possa
ser. (Continua a ler em voz baixa).
CENA XII
D. CARLOTA, CAVALCANTE
CAV. — (ao fundo). D. Leocádia!
(Entra e fala de longe a CARLOTA, que está de costas)
Quando eu ia a sair, lembrei-me...
D. CAR. — Quem é? (Levanta-se)
Ah! Doutor!
CAV. — Desculpe-me, vinha falar à
senhora sua mãe para lhe pedir um favor.
D. CAR. — Vou chamá-la.
CAV. — Não se incomode; falar-lhe-ei
logo. Saberá por acaso se a senhora sua mãe conhece algum
cardeal em Roma?
D. CAR. — Não sei, não, senhor.
CAV. — Queria pedir-lhe uma carta de
apresentação; voltarei mais tarde. (corteja, sai e pára)
Ah! aproveito a ocasião para lhe perguntar ainda uma vez em
que é que a ofendi?
D. CAR. — O senhor nunca me ofendeu.
CAV. — Certamente que não; mas ainda
há pouco, falando-lhe de um tio meu, que morreu no Paraguai,
tio João Pedro, capitão de engenharia...
D. CAR. — (atalhando). Por que
é que o senhor quer ser apresentado a um cardeal?
CAV. — Bem respondido! Confesso que
fui indiscreto com a minha pergunta. Já há-de saber que eu
tenho distracções repentinas, e quando não caio no ridículo,
como hoje de manhã, caio na indiscrição. São segredos mais
graves que os seus. É feliz, é bonita, pode contar com o
futuro, enquanto que eu... Mas eu não quero aborrecê-la. O meu
caso há-de andar em romances. (Indicando o livro que ela
tem na mão) Talvez nesse.
D. CAR. — Não é romance (Dá-lhe o
livro).
CAV. — Não? (Lê o título) Como?
Está estudando a Grécia?
D. CAR. — Estou.
CAV. — Vai para lá?
D. CAR. — Vou, com prima Adelaide.
CAV. — Viagem de recreio, ou vai
tratar-se?
D. CAR. — Deixe-me ir chamar mamãe.
CAV. — Perdoe-me ainda uma vez; fui
indiscreto, retiro-me. (Dá alguns passos para sair).
D. CAR. — Doutor! (CAVALCANTE pára)
Não se zangue comigo; sou um pouco tonta, o senhor é bom...
CAV. — (descendo). Não diga que
sou bom; os infelizes são apenas infelizes. A bondade é toda
sua. Há poucos dias que nos conhecemos e já nos zangamos, por
minha causa. Não proteste; a causa é a minha moléstia.
D. CAR. — O senhor está doente?
CAV. — Mortalmente.
D. CAR. — Não diga isso!
CAV. — Ou gravemente, se prefere.
D. CAR. — Ainda é muito. E que
moléstia é?
CAV. — Quanto ao nome, não há acordo:
loucura, espírito romanesco e muitos outros. Alguns dizem que
é amor. Olhe, está outra vez aborrecida comigo!
D. CAR. — Oh! não, não, não.
(Procurando rir) É o contrário; estou até muito alegre.
Diz-me então que está doente, louco...
CAV. — Louco de amor, é o que alguns
dizem. Os autores divergem. Eu prefiro amor, por ser mais
bonito, mas a moléstia, qualquer que seja a causa, é cruel e
terrível. Não pode compreender este imbróglio; peça a
Deus que a conserve nessa boa e feliz ignorância. Por que é
que me está olhando assim? Quer talvez saber...
D. CAR. — Não, não quero saber nada.
CAV. — Não é crime ser curiosa.
D. CAR. — Seja ou não loucura, não
quero ouvir histórias como a sua.
CAV. — Já sabe qual é?
D. CAR. — Não.
CAV. — Não tenho direito de
interrogá-la; mas há já dez minutos que estamos neste
gabinete, falando de coisas bem esquisitas para duas pessoas
que apenas se conhecem.
D. CAR. — (estendendo-lhe a mão).
Até logo.
CAV. — A sua mão está fria. Não se vá
ainda embora; hão-de achá-la agitada. Sossegue um pouco,
sente-se. (CARLOTA senta-se) Eu retiro-me.
D. CAR. — Passe bem.
CAV. — Até logo.
D. CAR. — Volta logo?
CAV. — Não, não volto mais; queria
enganá-la.
D. CAR. — Enganar-me por quê?
CAV. — Porque já fui enganado uma vez.
Ouça-me; são duas palavras. Eu gostava muito de uma moça que
tinha a sua beleza, e ela casou com outro. Eis a minha
moléstia.
D. CAR. — (erguendo-se). Como
assim?
CAV. — É verdade; casou com outro.
D. CAR. — (indignada). Que
acção vil!
CAV. — Não acha?
D. CAR. — E ela gostava do senhor?
CAV. — Aparentemente; mas, depois vi
que eu não era mais que um passatempo.
D. CAR. — (animando-se aos poucos).
Um passatempo! Fazia-lhe juramentos, dizia-lhe que o senhor
era a sua única ambição, o seu verdadeiro Deus, parecia
orgulhosa em contemplá-lo por horas infinitas, dizia-lhe tudo,
tudo, umas coisas que pareciam cair do céu e suspirava...
CAV. — Sim, suspirava, mas...
D. CAR. — (muito animada). Um
dia abandonou-o, sem uma só palavra de saudade nem de
consolação, fugiu e foi casar com uma viúva espanhola!
CAV. — (espantado). Uma viúva
espanhola!
D. CAR. — Ah! tem muita razão em estar
doente!
CAV. — Mas que viúva espanhola é essa
de que me fala?
D. CAR. — (caindo em si). Eu
falei-lhe de uma viúva espanhola?
CAV. — Falou.
D. CAR. — Foi engano... Adeus, Sr.
doutor.
CAV. — Espere um instante. Creio que
me compreendeu. Falou com tal paixão que os médicos não têm.
Oh! como eu execro os médicos! principalmente os que me mandam
para a China.
D. CAR. — O senhor vai para a China?
CAV. — Vou; mas não diga nada! Foi sua
mãe que me deu esta receita.
D. CAR. — A China é muito longe!
CAV. — Creio até que está fora do
mundo.
D. CAR. — Tão longe por quê?
CAV. — Boa palavra essa. Sim, por que
ir à China, se a gente pode sarar na Grécia? Dizem que a
Grécia é muito eficaz para estas feridas; há quem afirme que
não há melhor para as que são feitas pelos capitães de
engenharia. Quanto tempo vai lá passar?
D. CAR. — Não sei. Um ano, talvez.
CAV. — Crê que eu possa sarar num ano?
D. CAR. — É possível.
CAV. — Talvez sejam precisos dois,
─
dois ou três.
D. CAR. — Ou três.
CAV. — Quatro, cinco...
D. CAR. — Cinco, seis...
CAV. — Depende menos do país que da
doença.
D. CAR. — Ou do doente.
CAV. — Ou do doente. Já a passagem do
mar pode ser que me faça bem. A minha moléstia casou com um
primo. A sua (perdoe esta outra indiscrição; é a última) a sua
casou com a viúva espanhola. As espanholas, mormente viúvas,
são detestáveis. Mas, diga-me uma coisa: se uma pessoa já está
curada, que é que vai fazer à Grécia?
D. CAR. — Convalescer, naturalmente. O
senhor, como ainda está docente, vai para a China.
CAV. — Tem razão. Entretanto, começo a
ter medo de morrer... Pensou alguma vez na morte?
D. CAR. — Pensa-se nela, mas lá vem um
dia em que a gente aceita a vida, seja como for.
CAV. — Vejo que sabe muita coisa.
D. CAR. — Não sei nada; sou uma
tagarela, que o senhor obrigou a dar por paus e por pedras;
mas, como é a última vez que nos vemos, não importa. Agora,
passe bem.
CAV. — Adeus, D. Carlota!
D. CAR. — Adeus, doutor!
CAV. — Adeus. (Dá um passo para a
porta do fundo) Talvez eu vá a Atenas; não fuja se me vir
vestido de frade...
D. CAR. — (indo a ele). De
frade? O senhor vai ser frade?
CAV. — Frade. Sua mãe aprova-me,
contanto que eu vá à China. Parece-lhe que devo obedecer a
esta vocação, ainda depois de perdida?
D. CAR. — É difícil obedecer a uma
vocação perdida.
CAV. — Talvez nem a tivesse, e ninguém
se deu ao trabalho de me dissuadir. Foi aqui, a seu lado, que
comecei a mudar. A sua voz sai de um coração que padeceu
também e sabe falar a quem padece. Olhe, julgue-me doido, se
quiser, mas eu vou pedir-lhe um favor: conceda-me que a ame.
(Carlota, perturbada, volta o rosto) Não lhe Peço que
me ame, mas que se deixe amar; é um modo de ser grato. Se
fosse uma santa, não podia impedir que lhe acendesse uma vela.
D. CAR. — Não falemos mais nisto, e
separemo-nos.
CAV. — A sua voz treme; olhe para
mim...
D. CAR. — Adeus; aí vem mamãe.
CENA XIII
Os MESMOS, D. LEOCÁDIA
D. LEO. — Que é isto, doutor? Então o
senhor quer só um ano de China? Vieram pedir-me que reduzisse
a sua ausência.
CAV. — D. Carlota lhe dirá o que eu
desejo.
D. CAR. — O doutor veio saber se mamãe
conhece algum cardeal em Roma.
CAV. — A princípio era um cardeal;
agora basta um vigário.
D. LEO. — Um vigário? Para quê?
CAV. — Não posso dizer.
D. LEO. — (a CARLOTA).
Deixa-nos sós, Carlota; o doutor quer fazer-me uma
confidência.
CAV. — Não, não, ao contrário... D.
Carlota pode ficar. O que eu quero dizer é que um vigário
basta para casar.
D. LEO. — Casar a quem?
CAV. — Não é já, falta-me ainda a
noiva.
D. LEO. — Mas quem é que me está
falando?
CAV. — Sou eu, D. Leocádia.
D. LEO. — O senhor! o senhor! o
senhor!
CAV. — Eu mesmo. Pedi licença a
alguém...
D. LEO. — Para casar?
CENA XIV
Os MESMOS, MAGALHÃES, D. ADELAIDE
MAG.
—
Consentiu, titia?
D. LEO. — Em reduzir a China a um ano?
Mas ele agora quer a vida inteira.
MAG. — Estás doido?
D. LEO. — Sim, a vida inteira, mas é
para casar. (D. CARLOTA fala baixo a D. Adelaide) Você
entende, Magalhães?
CAV. — Eu, que devia entender, não
entendo.
D. ADE. — (que ouviu D. CARLOTA).
Entendo eu. O Dr. Cavalcante contou as suas tristezas a
Carlota, e Carlota, meia curada do seu próprio mal, expôs sem
querer o que tinha sentido. Entenderam-se e casam-se.
D. LEO. — (a CARLOTA). Deveras?
(D. CARLOTA baixa ou olhos) Bem; como é para saúde dos
dois, concedo; são mais duas curas!
MAG. — Perdão; estas fizeram-se pela
receita de um provérbio grego que está aqui neste livro.
(Abre o livro) "Não consultes médico; consulta alguém que
tenha estado doente".
FIM
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