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NESTA
época de brinquedos evoca-se o teatro a brincar, velho
como o mundo, mas que diverte sempre as crianças e até o
adulto. Quem não conhece o fantoche, o velho fantoche que
entra na nossa alma de pequeninos e pela vida fora nos
surge e ao qual sempre damos um sorriso?
Quem
não conhece Roberto, o hábil, o forte, o vencedor até dos
espíritos infernais, com a sua manha, ao começo, com o seu
cacete nacional ao cabo das polémicas?
Pois,
Roberto, o senhor Roberto, que vence o próprio diabo, tem
antepassados e bons. |
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O fantoche
grego |
O fantoche
egípcio |
O fantoche
nacional: o Sr. Roberto
O fantoche de
Java |
Em
Atenas e em Roma, o fantoche era de tamanho natural e
figurava nas apoteoses e nos cortejos triunfais vestidos
como símbolos. Tinha atitudes, passava como soberano
conduzido pelos homens exactamente como imagens, embora
não se lhe tributassem os respeitos. No Egipto, na
Turquia, por todo o mundo, e sobretudo na Itália de
Polichinelo, os fantoches tiveram não só o condão de
divertir os pequenos mas também os grandes, não só a honra
de aparecerem nas praças públicas mas também nos palácios
e para eles se escreveram peças e belos versos, mistérios
e simples improvisos.
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As
marionetas ou mariolas tinham e têm, como os homens,
sortes diversas, uns arrastados através dos campos
lamacentos, figuravam nas feiras, molhavam-se, destingiam,
apodreciam, encarunchavam e, estéreis dias eram os seus;
outros, vestidos de riqueza, pomposos, magníficos, tinham
palcos esplêndidos, plateias fidalgas, casas quentes onde se
diziam belos versos. Era tudo o destino, era tudo a sorte. |
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Os fantoches
da Idade Média |
Desde a
mais remota antiguidade, decerto quando as hostes de Tamerlão
fizeram a sua devastadora marcha, nas bagagens dos fugitivos, colhidas à
pressa, ia o fantoche singular da diversão.
Assim, para
ganhar a vida, os tziganos, originários desses países
devastados e batidos, começaram a mostrá-los às populações a
troco de punhados de farinha.
O fantoche
foi tudo. Não apareceu apenas de bulhento ou de demónio. Como
um actor, foi rei, rainha, príncipe, simples artífice, rico
mercador, tudo quanto a imaginação humana pode conceber,
vestindo, todavia, ao gosto do seu tempo. O do Egipto usava a
estilização do país, o da Índia o seu penteado exótico, o
fantoche medieval era atrevido como um bobo. Também tinha
respeitos de vassalo e vestia de senhor. Discreteava como
eles, tomava atitudes, e recebia imponentemente a vassalagem;
mas, quando se tratava de bordoada, ele, que não tinha medo
nem do próprio diabo, abatia-se diante do senhor; todavia, ia
roubando sempre alguma coisa da sua mesa e, muitas vezes, do seu
leito, como um pajem turbulento, já se vê... Em cena.
Quando a
revolução chegou, o fantoche também foi guilhotinado; teve
medo, não fez mais paródias mas, acabado o terror, surgia nas
feiras a desancar Robespierre. Em Portugal ele não era
político; apenas entrava nos mistérios ou divertia os garotos
da rua, descadeirando o diabo, mas respeitando muito os
espiões do sr. Pina Manique.
O fantoche de
1840 em França |
A mania
política só o atacou muito mais tarde. O fantoche
miguelista e o fantoche liberal não existiram; em
compensação, apareceu o piadista nas feiras, criticando,
umas vezes ou outras, os homens públicos da monarquia e da
república mas, sobretudo, demolindo os frades, as freiras,
exactamente como fizera esse imperial fantoche – o sr. D.
Pedro IV.
Mas a
marioneta grosseira, que nós conhecemos, teve também um
intervalo de beleza. Foram os articulados do Chaves, do
velho e habilidoso actor José Rodrigues Chaves, que os
fabricou com tanta perícia como o poeta Murício Boucher, em
Paris, |
Jamais os
fantoches tiveram tão grande amigo, tão cuidadoso defensor, e
nunca para eles foram arranjados teatros e compostas as peças
com tanta arte. Chegou a fazer conferências em que demonstrava
o seguinte:
– Que aos
fantoches não falta a poesia, pois forçam os poetas a ser
simples e a sua gravidade hierática empresta-lhes beleza;
– Também
despertam comoções, tanto dramáticas como cómicas, na sua
maneira de se moverem como os actores humanos não o fazem;
– As suas
transfigurações são mais rápidas e mais belas do que
propriamente as realizadas por actores, isto desde que tenham
articulações.
Mas havia
ainda um ponto mais perigoso, um óbice, um melindre: a
interpretação de personagens sacras pelas marionetas.
Só eles,
exclamava o poeta, podem representar os santos sem profanação,
pois os actores são sujeitos ao pecado e os meus pobres
artistas não têm alma.
Foi com
estes argumentos que se fez o Petit Théâtre de Paris, onde
representaram os antepassados do senhor Roberto. E que
encantadores eles eram! Que sucesso causaram, aí por 1894,
representando peças em que havia arte desde as mais belas
oratórias aos mais Inocentes contos cor-de-rosa!
Tornou-se
uma obrigação dos pais levar os filhos ao salão onde se
representavam essas peças. A marioneta tornou-se tão querida
como o Pirilau do A B C. Era como o prolongamento dos
brinquedos; aquilo que as imaginações infantis podiam ver de
mais extraordinário.
Eram os
bonecos, ora movendo-se em batalhas, ora navegando fardados de
almirantes; umas vezes a história de fadas, outras as de
simples sapateiros; as Mil e Uma Noites foram interpretadas
por bonecos e os pequenitos, que não podiam ir aos teatros sem
cabecearem com sono, tinham as suas matinés bem cheias com a
intensa alegria que os fantoches lhes davam.
Riam muito
mais com os vultosinhos articulados e tornados populares que
propriamente com os clowns; e as lições de moral saíam dessa
série de contos azuis ou cor-de-rosa que um verdadeiro poeta
punha em cena.
Os
pequenitos portugueses também viram os andróides que pouco
duraram. O senhor Roberto, porém, foi o seu encanto.
Roberto é um demolidor; e dizemos é, porque Roberto ainda
existe e ainda trabalha. Não aparece em bons salões; é
grosseiro, e mal talhado, usa fatos mal feitos, mas
encarna absolutamente o espírito nacional. Roberto é um
pimpão; Roberto tem um cacete nodoso e faz dele um bom
uso, porque só bate nos maus. O português não deixa nunca
de ser varredor de feiras e Roberto consubstancia este
espírito de valentia. |
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Uma fada de
madeira |
Porque é
assim. Porque deste modo se desenvolve a sua psicologia. É
querido e é amado e jamais solta os seus guinchos ou diz as
suas graçolas que não paremos estarrecidos, na frente da sua
pequena barraca, com um sorriso ou com uma gargalhada.
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Outras caras
de fantoches |
Vem, pois,
do fundo remoto dos séculos esse Roberto que tem avós como
nenhum príncipe e tradições como nenhum rei, guardando,
todavia, o seu espírito democrático, porque fala a toda a gente
e a toda a gente tem que dizer. Misto de truão e de vingador,
esse Roberto pintado a zircão, mal entrajado e violento,
descendente de tantos fantoches, anda por baixo, vive mal mas
não morre.
Roberto
incarna uma raça que balburdia, mas que quando o espicaçam se
lança contra o próprio Satanás.
– Ó senhor
Roberto!
– Que é lá?
E Roberto
aparece como um neto de príncipes que desse em bobo, fazendo
sorrir, levando consigo as nossas simpatias, sendo tanto mais
querido quanto mais terra a terra, e andando nos lábios das
crianças o seu nome para designar a graça e a valentia. E ser
popular entre os pequenitos é a imortalidade.
Autor
não indicado.
Texto revisto e actualizado. |