Iremos falar nesta singela
palestra do «Sugestivo da descrição camoniana». Demos-lhe um
cabeçalho algo melindroso, porquanto tem-se indicado com certa
insistência a escassez do pictórico em Camões.
Estamos plenamente de acordo
com o que se tem dito até à data no que respeita ao descritivo
naturalista, à pintura do real traduzindo emocionalmente a
harmonia, grandiosidade ou beleza de um quadro, de uma paisagem
ou de um rosto feminino.
Mas, tendo mergulhado
atentamente na poesia lírica e épica camoniana, surpreendemos
passos que tinham para nós o valor do pormenor e é esse o motivo
por que falámos de sugestividade. Seja tentando relatar esta ou
aquela cena, seja procurando fazer admirar a beleza da mulher
amada e levar à compreensão dos sentimentos que lhe inspirou,
seja dando um cenário a determinado facto ou a determinado
momento psicológico, Camões, mediante uma simples palavra ou
uma oportuna comparação, consegue dar-nos sugestivamente o que
pretende.
Por isso mesmo, Georges Le
Gentil, professor honorário da Sorbonne, que de coisas nossas
várias vezes se ocupou e que ainda há pouco legou aos
estudiosos do seu pais uma visão global do nosso épico, ao notar
que Camões «se soucie moins de peindre que de raconter»,
acrescenta imediatamente que «non le surprenons, toutefois,
çà et là, en train de camper une silhouette, d'esquisser un
tableautin.» Teremos ocasião de ver que quer a silhueta,
quer esse quadrozinho vão surgindo milagrosamente reais perante
nós, como criação de um estado de espírito comunicativo entre o
leitor e o Poeta. Ele consegue dar àquele esboços que o levarão
à vivência das coisas.
/ II / São meros adjectivos, simples
comparações, breves imagens que, na sua singeleza, no seu
apontamento rápido, possuem um mundo de valores descritivos que
têm conseguido inspirar artistas, desde o ilustrador anónimo da
célebre tradução de Duperron de Castera, saída em 1735 até
Columbano, Carlos e Soares dos Reis. Com um ou dois epítetos,
sentimos a cor, o som e o movimento. Com uma comparação, torna-se-nos concreto, visível, palpável este ou aquele
sentimento, este ou aquele aspecto moral, esta ou aquela
atitude.
Não afirmamos, contudo, que
Camões possua a técnica dos pintores realistas que, duramente,
revelam a fealdade ou beleza das coisas, sem se preocuparem com
o que as transcende, nem tão-pouco os poderemos enquadrar no
nebuloso dos românticos com imprecisões, vaguidades e tons
indeterminados. Camões é, fora de dúvida, um homem do
Renascimento, e seria loucura tirá-lo da sua época, onde tão bem
se situa pela cultura, pejos processos estéticos, pelo amor ao
equilíbrio e claridade.
Pinta, habitualmente, com um
só traço nítido, vincado, significativo. Todo o trabalho de
adorno, de construção mais completa, pertence ao leitor que,
nessa empresa, não encontra dificuldades, pelos elementos que o
Poeta lhe fornece. Do qualificativo, do quadro que nos foi
mostrado para conduzir ao complexo de uma ou outra situação
psicológica, vai-se formando com precisão e colorido, no
espírito de quem lê, o que o Poeta deseja representar,
conseguindo assim dar plasticidade ao abstracto. Para melhor
concretizar o ciúme, leva-nos à visão de um triste Inverno
«desgrenhado e crespo», e o estado de incerteza amorosa do
Agrário da écloga sétima vem-nos da comparação com a corrida da
novilha, de fraga em fraga, em busca do companheiro.
Na tentativa de dar uma ideia
da beleza corpórea das mulheres que o impressionaram, poderemos
encontrar a mesma orientação a ligar o aspecto físico com o
valor moral. Se algumas das suas descrições são de um
convencionalismo aflitivo com prodigalidade de gemas e tesouros,
outras impressionam-nos pela delicadeza e expressividade do
traçado.
Até aí, na poesia dos
Cancioneiros, a mulher perpassava como de fugida, deixando
somente pressentir o seu bom parecer ou corpo delgado, graças
estas que levavam o cantor inspirado dos poemas a designar a
donzela como a «fremosinha» ou «a bem talhada». Depois, com a
imaginação petrarquista, a poesia amorosa foi-se enriquecendo
com novas exigências e passou a adornar-se de determinadas
características, as quais tendiam sempre a mostrar a
superioridade moral da mulher, sendo o rosto um espelho dessa
perfeição interior.
A esta constante serve
Camões, como não poderia deixar de suceder ao admirador
entusiasta de Petrarca, de tal forma que, nos sonetos 123 e 37,
lá está a amálgama de rubis, rosas, neve e ouro. Rubis para a
boca, rosas a tingir a face, ouro a colorir os cabelos, neve a
deslumbrar no peito e sol nos olhos a iluminar tanta riqueza.
Da expressão da amada terá que indicar, como o seu mestre, o
rosto sereno e o doce riso a entreabrir-se entre «rubis e
perlas» e a deixar o leitor ciente da doçura e sublimidade de
carácter da possuidora de tão rica face. E, quando os metais e
as pedras preciosas são insuficientes como recursos vivos,
recorre o nosso Poeta ao mundo vegetal e de lá colhe cecéns,
rosas e cravos que espalha pelo rosto querido, de tal forma
que, julgando. a uma primavera, os próprios elementos dela se
namoram.
Também o gosto amaneirado de
quinhentos, que tece uma brincadeira rendilhada, onde ora se
nega ora se afirma, onde ora se louva, ora se despreza, está bem
presente nas redondilhas. Se uns malfadados olhos verdes tentam
Camões, canta-os ele num madrigal, aproveitando-lhes a
/ III / esmeraldina luz para
iluminar o rosto que lhe prende o coração e consegue um esboço
que, embora dado em linhas gerais, nos traz imediatamente ao
espírito o retrato feminino que deseja pintar. Experimenta,
porém, escurecer o ponto nevrálgico do seu amor, mediante uma
oposição aos encantos físicos já descritos, restrição essa que,
a jeito dos poetas do Cancioneiro Geral, vem tocar o retrato
esboçado de um sabor estranho que mais realça os olhos
maravilhosos.
Se, nestes dois aspectos, é
mais ou menos fácil a quem se deleita na poesia camoniana
imaginar a dona dos pensamentos do Poeta, outras poesias há onde
esse trabalho de construção é mais requintado, devido à luz que
as nimba, mais ténue e delicada, mas muitíssimo mais expressiva.
São indicações morais a esboçar por reflexão a doçura dos traços
físicos, como, por exemplo, no soneto «Um mover de olhos brando
e piedoso». Aí, o emprego de artigos indefinidos «Um mover de
olhos», «um riso brando e honesto», «um despejo», «um encolhido
ousar», «um medo sem ter culpa», «um ar sereno», etc... etc...
etc... dá, nas suas meias tintas, qualquer coisa de vago e de
misterioso ao rosto da mulher oriental que teria seduzido
Camões. A expressão esplende um rosto sereno e aparentemente
impassível, reflectido num olhar estranho que, sob a notação de
«sem ver de quê», contém a impenetrabilidade ilusória,
característica da mulher exótica que parece buscar para além
das coisas uma luz ou um mistério que se esconde aos olhos dos
mais. Também o «riso brando e honesto», com o apontamento de
«quase forçado», exprime melhor que longas descrições a prega
dolorosa indicativa de meditação interior e receptividade de
amarguras e, a completar o desenho, anima-se este de uma
desenvoltura «quieta e vergonhosa» que afasta qualquer sombra
de garridice e que, através do antitético «encolhido ousar», vai
revelando em todos os seus gestos simplicidade e submissão.
Esta beleza que provém da
alma e se reflecte no rosto é dada com um traçado idêntico em
«aquela cativa» que, já pelo retrato que se vai formando, já
pelo próprio ritmo da redondilha menor, nos pinta a estranha
sedução da mulher de clima tropical. Morena, nascida noutras
paragens, a sua formosura é exaltada mediante comparações com
rosas e estrelas.
Depois do deslumbramento do
conjunto e da ideia de beleza dada como comprovada, sucede-se a
tentativa do pormenor, difícil de ser levado a cabo, porquanto a
jovem possui um encanto esquisito, vindo mais da singularidade
da expressão do que das formas plásticas e cujo segredo reside
nos olhos, que têm a tranquilidade das águas mortas, a
resignação dos seres condenados à escravidão, o calor dos
corações fiéis e o místico dos longes orientais, sendo-nos todas
estas qualidades reveladas por meio de adjectivos expressivos
como sossegados, cansados, doce e serena. Da descrição,
imaginamos o poder de uma tal presença, que, pela doçura do
carácter, pelo temperamento quieto, pela suave maneira de ser,
exerce influência em tudo o que a rodeia, amansando a tormenta e
dando tranquilidade e segurança ao coração que a ama. Esta
doçura, aparentemente inerte, é, porém, cheia de uma
consciência de si mesma, capaz de sentir voluptuosamente o amor
e de enfeitiçar.
É esta qualidade de fazer
surgir, de levantar perante nós um quadro, uma figura ou uma
paisagem que dá um cunho especial à poesia de Camões. Como a
cativa, também a «fermosíssima Maria» surge, por assim dizer,
do nada, mas tão bem delineada, tão sugestiva nos seus traços
breves, que quase a preferimos na sua passagem rápida e como que
visionada a uma demora mais com pormenor que, possivelmente, lhe
tiraria muito da sua beleza. Cheia de suavidade, vai avançando
com um ar de desventura que lhe dá um não sei quê de angelical:
/ IV /
«Entrava a fermosíssima Maria
Polos paternais paços
sublimados,
Lindo o gesto, mas fora de
alegria,
E seus olhos em lágrimas
banhados.
Os cabelos angélicos trazia
Pelos ebúrneos ombros
espalhados.
Diante do pai ledo, que a
agasalha,
Estas palavras tais,
chorando, espalha:
«Quantos povos a terra
produziu
De África toda, gente fera e
estranha,
O grão Rei de Marrocos
conduziu
Pera vil possuir a nobre
Espanha.
Poder tamanho junto não se
viu,
Despois que o salso mar a
terra banha;
Trazem ferocidade e furor
tanto,
Que a vivos medo, e a mortos
faz espanto.
Aquele que me deste por
marido,
Por defender sua terra
amedrontada,
Co pequeno poder, oferecido
Ao duro golpe está da brava
espada.
E, se não for contigo
socorrido,
Ver-me-ás dele e do Reino ser
privada;
Viúva e triste e posta em
vida escura,
Sem marido, sem Reino e sem
ventura.
Portanto, ó Rei, de quem com
puro medo
O corrente Muluca se congela,
Rompe toda a tardança, acude
cedo
À miseranda gente de Costela.
Se esse gesto, que mostras
claro e Iedo,
De pai o verdadeiro amor
assela,
Acude e corre, pai, que, se
não corres,
Pode ser que não aches quem
socorres.»
Começa por nos chamar a
atenção o superlativo absoluto simples do adjectivo («fermosíssima»)
a exprimir com uma só pincelada o valor físico e moral de Maria.
Não é, porém, um retrato
hirto, sem vibração. Maria surge lentamente, com um andar de
sílfide, de acordo com a sua figura delicada, provindo esse
movimento apenas do verbo empregado no tempo imperfeito e do
complemento circunstancial a indicar de uma forma rápida o local
da acção:
«Entrava a fermosíssima Maria
Polas paternais paços
sublimados»...
Com o mesmo deleite poderemos
demorar os olhos na trilogia que nos mostra Leonor como «isenta,
amante ou coitada.» A bem-talhada dos Cancioneiros é agora uma
verdadeira aguarela de tonalidades frescas e doces. Ela lá vai
para a fonte, descalça, formosa e, por isso mesmo, sujeita às
tentações do amor:
«Descalça vai para a fonte
Leonor pela verdura:
Vai fermosa, e não segura...
/ V /
Leva na cabeça o pote,
O testo nas mãos de prata,
Cinta de fina escarlata,
Sainho de chamalote.
Traz a vasquinha de cote
Mais branca que a neve pura;
Vai fermosa, e não segura.
Descobre a touca a garganta,
Cabelos de ouro estrançado,
Fita de cor de encarnado,
Tão linda, que o mundo
espanta.
Chove nela graça tanta,
Que dá graça à fermosura:
Vai fermosa e não segura.»
O presente do indicativo do
verbo ir («Descalça vai para a fonte») torna a acção real, não
completada, imprimindo movimento ao quadro. O pote vai à cabeça
e o testo nas mãos. Desce um pouco o olhar do Poeta e prende-se
ao sainho de chamalote e à vasquinha de todos os dias. Ao dar
realce à saia de grandes pregas em torno do corpo, lá está «a
cinta de fina escarlata» e, a colorir o quadro, já de si
curioso, há a mancha encarnada da fita a prender os cabelos.
Após o traço pinturesco, vem a sugestão da bela tricana de mãos
e rosto vencendo na sua alvinitência a brancura da própria neve
e com os cabelos loiros, brilhantes, apertados em tranças.
Todo o retrato possui
colorido e minúcia, deixando, no entanto, adivinhar o que de
essencial diz respeito a Leonor. Esse trabalho pertence-nos a
nós que a vemos formosa e ingénua, avançando por entre uma chuva
de graças, plena de insegurança, aliás justificada pela
mortificação psicológica desta outra poesia:
«Na fonte está Leonor,
Lavando a talha e chorando.
Às amigas perguntando:
— Vistes lá o meu amor?
Posto o pensamento nele,
Porque a tudo Amor obriga,
Cantava; mas a cantiga
Eram suspiros por ele.
Nisto estava Leonor
O seu desejo enganando,
Às amigas perguntando:
— Vistes lá o meu amor?
O rosto sobre uma mão;
Os olhos no chão pregados,
Que, de chorar já cansados,
Algum descanso lhe dão...
Desta sorte Leonor
Suspende de quando em quando
Sua dor; e em si tornando
Mais pesada sente a dor.
/ VI /
Não deita dos olhos água,
Que não quer que a dor se
abrande
Amor; porque em mágoa grande
Seca as lágrimas a mágoa.
Depois que de seu amor
Soube novas perguntando,
De improviso a vi chorando.
Olhai que extremos de dor!
Já na fonte, Leonor lava a
talha, mas a insegurança de há pouco foi vencida pela dor. Tal
como a donzela das cantigas de amigo, sente a inquietação
afogueá-la e, perturbada, procura obter uma informação que a
tranquilize e lhe traga boas notícias do seu amor. Para enganar
o tormento, tenta uma canção molhada e, a pouco e pouco, a
aguarela torna-se mais rica, aliando à delicadeza do contorno o
interesse psicológico.
A talha foi abandonada e
esquecida a sua lavagem, e a coitada para ali fica, inerte
exteriormente, com o rosto apoiado numa das mãos, numa atitude
de cansaço, a traduzir um estado de alma doloroso. Com os olhos
no chão pregados, enxutos por não terem mais lágrimas para
chorar, ela para ali ficou perturbada, sem ter consciência do
que a rodeia. E todo o drama lírico, toda a coita nos vem desta
atitude de esquecimento e da ansiedade da pergunta que a pobre
duas vezes lança, à maneira de refrão.
Temos visto que, para cada
tipo de mulher, o recorte camoniano ganha um motivo especial que
vinca esta ou aquela expressão e que tenta, sobretudo, através
de uma atitude, de um olhar ou de um sorriso, sugerir
sentimentos.
Vénus, por ser diferente da
feiticeira china, da singela «fermosinha» ou da palaciana dama,
é-nos descrita com tonalidades que tendem, principalmente, a
impressionar Júpiter e o leitor pelo aspecto físico, cujas
formas foram ditadas pelo «homem de carne e sentidos» que Camões
se reconhece. A forma plástica da deusa como que brilha nas
estâncias que a descrevem, pondo-nos sob os olhos uma
interpretação do quadro de Boticceli.
Alva como a neve, o corpo
ligeiramente ocultado por «delgado cendal», num movimento
ondulado, é bem uma deusa pagã, de contornos sensuais, que
provoca exaltação nas estrelas, no ar e no próprio céu.
Foi outro o pincel utilizado,
mais rico de cor, mais afiado para os contornos, mais preocupado
com o aspecto plástico da figura mitológica, de tal forma
tentadora, que obrigou à sua sujeição artistas de todas as
categorias, desde o ilustrador Desenne até ao pintor Oscar
Begas, autor dos quadros da galeria de Dresde.
Nasce também da magistral
paleta de Camões a criação que mais tarde ocupou a arte de
escritores nossos, num indício nítido da audácia marítima dos
portugueses. À imaginação popular, que semeava os mares de
lendas e monstros, foi o Poeta inspirar-se para a sua
figura-símbolo, para esse Adamastor, síntese de todas as
fantasias, corporização de todas as fatalidades físicas.
Como cenário, o tombadilho de
um barco, o mar e o colóquio descuidado dos nautas,
interrompido por uma nuvem negra que apareceu de súbito e que os
obriga a erguerem as cabeças surpreendidas. Essa nuvem
concretiza-se numa enorme personagem e, gradualmente, vai-se
animando o retrato, para carregar a expressão horrorosa do
início, agravada agora pelo retorcer da boca e dos olhos negros.
Não se esquece o Poeta do cenário e, volvendo os olhos para
baixo, serve-se, num processo indirecto, do temor sentido pelos
nautas perante a medonha visão, para adensar o colorido da
mesma:
/ VII /
«Não acabava, quando hua
figura
Se nos mostra, no ar, robusta
e válida,
De disforme e grandíssima
estatura,
O rosto carregado, a barba
esquálida,
Os olhos encovados, e a
postura
Medonha e má e a cor terrena
e pálida;
Cheios de terra e crespos os
cabelos,
A boca negra, os dentes
amarelos.
Tão grande era de membros,
que bem posso
Certificar-te que este era
segundo
De Rodes estranhíssimo
Colosso,
Que um dos sete milagres foi
do mundo.
Com tom de voz nos fala,
horrendo e grosso,
Que pareceu sair do mar
profundo.
Arrepiam-se as carnes e o
cabelo,
A mim e a todos, só de
ouvi-lo e vê-lo!»
Vai-se modificando este
aspecto, sob evocação do drama, amoroso cujo sofrimento lhe
quebra a arrogância e o torna sensível e perturbado como
qualquer ser humano, a um ponto tal que a voz horrenda do
começo acaba por se transformar num «medonho choro», numa
agonia, que levou o ilustrador da tradução de La Harpe a
colocá-lo, vencido, gemendo, entre os rochedos:
Oh! Que não sei de nojo como
o conte!
Que, crendo ter nos braços
quem amava,
Abraçado me achei cum duro
monte
De áspero mato e de espessura
brava.
Estando cum penedo fronte a
fronte,
Que eu polo rosto angélico
apertava,
Não fiquei homem, não, mas
mudo e quedo
E, junto dum penedo, outro
penedo!
Ó Ninfa, a mais fermosa do
Oceano,
Já que a minha presença não
te agrada,
Que te custava ter-me neste
engano,
Ou fosse monte, nuvem, sonho
ou nada?
Daqui me parto, irado e quase
insano
Da mágoa e da desonra ali
passada,
A buscar outro mundo, onde
não visse
Quem de meu pranto e de meu
mal se risse.»
Desaparece tão rapidamente
como apareceu e, com ele, esvai-se a nuvem negra, novamente
acompanhada, como no princípio, de um sonoro bramido» do mar,
como se de um sonho se tratasse:
«Assi contava; e, cum medonho
choro,
Súbito de ante os olhos se
apartou.
Desfez-se a nuvem negra, e
cum sonoro
Bramido muito longe o mar
soou.
A nuvem dá entrada ao mundo
irreal e consolida o quadro, unindo e justificando a
transposição do guineense negrume com a sugestão do encontro de
Ulisses com Polifemo.
Quanto à tentação enganadora
a que a astuciosa Tétis o submete e ao desengano e vibração
sentimental do Adamastor, após a sua sofreguidão
/ VIII /
amorosa, vemo-los como
auxílio pictórico do perigo e fio de ligação do céu com a terra,
pela transformação do infeliz apaixonado num promontório.
Da nuvem escura, fomos
assistindo ao espectacular aparecimento de uma figura horrenda,
apenas nascida de adjectivos, figura que se anima, se quebra e
acaba por fluir com o desaparecimento da nuvem, como se esta
constituísse uma cortina de teatro, que se abre para desvendar o
tablado onde se joga o drama, encerrando-se no fim e trazendo os
espectadores para o mundo real com os olhos e o espírito presos
ao génio dramático e artístico que se lhes revelou. As mesmas
qualidades vão continuar a manifestar-se em quadros singelos ou
de conjunto, seja tentando patentear um estado de alma, por
meio de uma imagem que se vai desenvolvendo paralela à ideia,
seja no cultivo de constantes clássicas às quais imprime novo
colorido, seja no tratamento de temas que, pela lenda e pelo
cunho que apresentam, são bem portugueses.
O processo indirecto a que já
nos temos referido pode ser encontrado, por exemplo, na écloga IIl, onde o Poeta põe a nu o tormento íntimo de um pastor e a
sua imobilidade aparente, mediante a forma como reage perante o
que o cerca. A Natureza, como mais adiante veremos, não
apresenta características especiais e serve apenas os desígnios
de Camões. Na sua meditação, tem o pastor a face encostada a
uma das mãos, tal como Leonor, e deixa-se ficar esquecido, sem
sequer ver que o sol já começa a mergulhar nas águas salgadas,
que o gado está impaciente por regressar ao curral e que tudo
se activa no sentido de retorno. Este adormecimento exterior
continua até que o pio de um mocho o acorda do seu sonho. É uma
cena serena, tranquila, com toques doces, quase esfumados, mas
que não é menos expressiva do que se o Poeta se demorasse em
longos pormenores e em esmiuçadas explicações de sentimentos.
Em assuntos mais delicados, a
aguarela é mais graciosa, com requintes, por vezes, de
colorido, como, por exemplo, no auxílio das Nereidas ou na
visão rápida das mesmas na écloga VlI. Ambas elas foram traçadas
pela paleta de um renascentista, mas de um renascentista
conhecedor da harmonia do colorido e da sugestividade do
movimento.
Na écloga a que nos
referimos, a luz é menos viva, porque a acção se passa de
madrugada e a tonalidade que o Poeta passou pelo céu é roxa, de
um roxo alegre, mas, ao mesmo tempo, frio. As belas ninfas
correm pelos montes, deixando admirar os cabelos loiros,
negligentemente soltos e entrançados e, chegando ao rio,
banham-se descuidadas até que, surpreendidas, sugerem, na sua
fuga desordenada, um maravilhoso quadro pagão.
No mar, deslumbra-nos o bando
de belas ninfas, alvas e cerúleas, e parentes das tais «humanas
rosas», correndo apressadas a ferver espuma com as «caudas
argênteas», através do vasto lençol de água que alcança animação
com a pressa de Cloto, o salto de Nise, o arremesso de Nerine
ou como reacção das próprias ondas, que, crespas e encurvadas
(note-se o que há de sugestivo nestes dois epítetos), abrem
caminho às Nereidas:
«As âncoras tenaces vão
levando,
Com a náutica grita
costumada;
Da proa as velas sós ao vento
dando,
Inclinam para a barra
abalizada.
Mas a linda Ericina, que
guardando
Andava sempre a gente
assinalada,
Vendo a cilada grande e tão
secreta,
Voa do céu ao mar como hua
seta.
/ IX /
Convoca as alvas filhas de
Nereu,
Com toda a mais cerúlea
companhia,
Que, porque no salgado mar
nasceu,
Das águas o poder lhe
obedecia.
E, propondo-lhe a causa a que
deceu,
Com todas juntamente se
partia,
Pera estorvar que a armada
não chegasse
Aonde para sempre se
acabasse.
Já na água erguendo vão, com
grande pressa,
Com as argênteas caudas,
branca escuma:
Cloto o peito corta e
atravessa
Com mais furor o mar do que
costuma.
Salta Nise, Nerine se
arremessa,
Por cima da água crespa, em
força suma.
Abrem caminho as ondas
encurvadas,
De temor das Nereidas
apressadas.
Nos ombros de um Tritão, com
gesto aceso,
Vai a linda Dione furiosa;
Não sente quem a leva o doce
peso,
De soberbo com carga tão
fermosa.
Já chegam perto donde o vento
teso
Enche as velas da frota
belicosa;
Repartem-se e rodeiam nesse
instante
As naus ligeiras que iam por
diante.
Põe-se a Deusa com outras em
defeito
Da proa capitaina, e ali
fechando
O caminho da barra, estão de
jeito
Que em vão assopra o vento, a
vela inchando.
Põe no madeiro duro o brando
peito,
Pera detrás a forte nau
forçando;
Outras em derredor levando-a
estavam,
E da barra inimiga a
desviavam.
Vénus impera sobre os ombros
do seu Tritão, e, como o motivo que agita tais divindades é
ingente, não se demorou o Poeta em longas descrições e acompanha
a acção no seu andamento rápido, dando nela, contudo, o
essencial. Impressionou-nos, sem dúvida, a parte final, quando o
vento, continuando a soprar, enfunava as velas, tornando mais
agitado o mar. É então que, no escuro da nau capitaina, de
encontro à sua madeira dura, Camões lança a mancha brilhante do
«brando peito» de
algumas donzelas que tentam,
com graciosa fragilidade, desviar aquela da rota traiçoeira.
Está agora em primeiro plano a nau de velas túmidas, sobre um
mar agitado, tendo encostado ao casco escuro ombros
alvinitentes que imergem deslumbrantemente das águas furiosas;
cercando este conjunto maravilhoso, a presença das restantes
ninfas prontas a prestar ajuda e a contribuírem para a beleza do
quadro que vemos interpretado na água-forte de Thevenard, na
gravura a buril de Monet ou nas paredes do Museu de Artilharia
que Carlos Reis ornamentou.
Outra perfeita realização
plástica, embora de cunho diverso, é o sonho de D. Manuel na
segunda parte da noite, ocasião oportuna, segundo a lenda
popular, que atribui aos sonhos nela realizados o carácter de
verdadeiros. Deitado no «áureo leito», como Fragonard o viu e
contrariamente à gravura de 1735, o rei dorme com um sono
inquieto, devido às preocupações do seu cargo, permanecendo na
maior parte das / X / vezes no
estado de vigília. Trata-se de uma excelente interpretação do
subconsciente, com veracidade e colorido. A paisagem que
circunda o rei, intimamente relacionada com o sonho, não é
específica desta ou daquela região, mas está pintada a traços
impressionáveis e capazes de condizer com o assunto do sonho. O
mesmo no que diz respeito aos dois rios.
Após as palavras do que de
mais longe parecia ser, desaparece a visão com a mesma rapidez
com que apareceu, e o rei, reconduzido ao leito, acorda quando
amanhecia.
Todo o sonho está
sugestivamente apresentado no que diz respeito à paisagem e à
corporização dos rios e seu desaparecimento, revestindo-se essa
descrição de tons imprecisos, ditados pelo subconsciente. O que
nele há de nebuloso e de irreal vem-nos das meias tintas de todo
o quadro e da visão e audição distante dos dois rios em relação
ao rei, para já não falarmos no desaparecimento momentâneo
dessas duas figuras.
É, porém, nas grandes telas,
de numerosas figuras que se vão esbatendo e esfumando para
darem melhor a ideia de multidão, é aí que a evocação artística
nos prende.
Nesses largos painéis se
demorou um pouco mais o pincel, a carregar as tintas, a dosear
o matiz, a escurecer os tons, a colocar personagens em diversos
planos, a detalhar de tal forma os gestos que todo o quadro se
anima, alcançando realidade.
No episódio dos doze de
Inglaterra que, como sabemos, se prende à voga do ciclo bretão,
intensamente admirado entre nós desde o século XlII, poderemos
surpreender estas mesmas características. Deveremos considerar,
porém, dois planos. A um canto, os nautas semi-adormecidos,
velando na coberta do navio, bocejando uns e protegendo-se
outros do frio, encostados pelas antenas. No meio deles está
Veloso, que, num ambiente de tranquilidade absoluta, na noite
muda, vai contando uma história com tal ressonância, que a cena
surge a ocupar todo o resto do quadro, como se fosse assistido
pela marinhagem. Esta vai a pouco e pouco despertando com o
armar de «elmos, grevas e arneses» dos cavaleiros que se vão
bater por suas damas, garridamente enfeitadas de «cores e de
sedas», «de ouro e de jóias mil».
Segue-se a apresentação do
pleito e pasma a marinhagem perante tanto ardor, vendo aqui um
morto, ali um cavalo sem dono, mais adiante um cavaleiro
derrubado do seu cavalo, até que a vitória cabe aos
portugueses, satisfazendo, assim, os nautas já sem sono.
A mesma descrição de conjunto
está patente, com características próprias, nos dois concílios e
no banquete que Tétis e as ninfas oferecem aos navegadores. O
palácio de Neptuno surge-nos situado num local muito afastado e
impossível de determinar bem, mediante o emprego de expressões
indefinidas, e todo o cenário acompanha esta irrealidade: areias
de prata fina, altas torres transparentes ao longe, portas de
ouro marchetadas com aljôfar e sabiamente esculpidas. O arauto
Tritão, «mancebo grande, negro e feio», com a barba e os cabelos
cheios de limos e mexilhões e trazendo no corpo nu, pegados a
si, camarões, caranguejos, e caramujos, anima a tela ao toque de
um búzio, assemelhando-a ao concílio do céu.
Quer numa quer noutra,
assistimos à vinda gradual dos deuses convocados, embora haja
mais demora no esboço da aquática companhia. O primeiro
concílio, contudo, é mais longamente descrito, com indicação do
divino. Júpiter, imponente na sua soberania, a tentar Columbano.
Encerram-se os dois concílios a um sinal do respectivo deus e,
perante nós, desaparece a cena do conto de fadas.
O mesmo ambiente de
irrealidade anima o banquete a que acima nos referimos. Passa-se
ao pôr do sol, quando cada marinheiro e sua dama estão sentados
em cadeiras tão preciosas como as anteriores. À cabeceira,
/ XI /
Tétis e o Gama a
presidirem e, sobre a mesa, «divinas iguarias», pratos de ouro,
copos lavrados com vinho de Falerno e ambrósia. Um pouco
distante, uma pequena orquestra que acompanha a voz maravilhosa
de uma sereia que leva os ventos ao silêncio para melhor a
escutarem e a água a um deslize mais doce.
Estes três quadros (concílio
do céu, do mar e banquete) são cheios de magia, passados num
mundo de fantasmagoria, longe de nós e que, por isso mesmo, se
vão delineando estranhos à nossa vida, com enriquecimento de
materiais e esplendor de adornos.
Outro é o traçado quando nos
narra a partida de Lisboa ou a chegada a qualquer paragem
desconhecida. Há então manchas pictóricas pela praia, enquanto,
no meio das águas, as naus ancoradas vão balançando num ritmo
lento, suavemente impelidas pelos «ventos sossegados», com
reflexo ondulado dos estandartes, no cimo dos mastros. Aqui,
pinta-se a saída da marinhagem do templo, por entre a praia
coalhada de gente, trazida pela curiosidade ou pelo amor, com
manifestações dolorosas de «mães, esposas e irmãs», de tal
forma espectacular que os próprios elementos se comovem com a
amargura dos que ficam e com a saudade silenciosa dos que
partem. Assiste-se ao embarque dos navegantes que, de cabeça
baixa, não têm coragem para despedidas e, como se embarcássemos
também, vai-se-nos esfumando o casario sobranceiro à praia do
Restelo, para só abrangermos os «pátrios montes» da serra de
Sintra que, desaparecendo, nos deixam isolados entre «mar e
céu».
Ali, é a chegada da frota a
Melinde, a Moçambique, à Angra de S. Brás ou ao rio dos Bons
Sinais. A vistam-se os habitantes com balhos e festas de
alegria, com homens de pano delgado de algodão a servir de
turbante e mulheres entoando cantigas pastoris ao som de avenas.
Na chegada da armada a
Melinde a recepção prendeu mais o olhar do artista, que,
enamorado com o espectáculo, vai distribuindo pinceladas pela
longa tela. É a frota embandeirada anunciando-se com atambores e
pandeiros. É a correria dos indígenas pela praia, o estalar de
foguetes, das descargas dos bombardeiros e do fogo preso, o
barulho dos instrumentos musicais e a sugestiva «grita». Aquando
da visita do rei à frota, diz-nos o Poeta que a praia ferve de
gente e este verbo pinta-nos de um só traço o movimento e o
aglomerado. As cabaias de fina púrpura, o brilho da seda e os
ramos de palmeira lá estão a colorir o conjunto. Em direcção à
armada, parte um batel grande e largo, coberto de sedas de
várias cores, onde vai o rei, ricamente vestido, acompanhado
dos principais do reino.
Não se dá Camões por
satisfeito e continua a pincelar na larga tela. Ocupa-se agora
da proa do batel e aí esboça um conjunto de «trombetas arcadas
em redondo» que tocam uma música estranha e alegre «de áspero
som, horríssono ao ouvido» dos portugueses, habituados a que os
seus instrumentos não produzam aquele «rudo estrondo». Volta-se
depois o pincel para o lado oposto e começa a delinear o nosso
Gama que, igualmente num batel, se mostra também ricamente
paramentado, posto que de diversa maneira, como convinha à sua
qualidade de europeu e de molde a espantar o mundo renascente
com o encontro dessas duas civilizações: embaixada europeia
recebida por um rei oriental.
Nos que acompanham o grande
capitão predominam os fatos de púrpura e, porque o colorido é
impressionante, o poeta dá descanso ao braço artista e fica
encantado com o maravilhoso azulejo:
«Tal o fermoso esmalte se
notava
Dos vestidos, olhados
juntamente,
Qual aparece o arco rutilante
Da bela Ninfa, filha de
Taumante»
/ XII /
Apresentados os dois batéis opostos, com o mar que os cerca
«coalhados» de mouros e de toldos a tocarem as águas, soam as
trombetas de tal forma que
«Tapam com as mãos os mouros
os ouvidos».
À naturalidade do gesto,
segue-se a cerimónia de um primeiro encontro, dada com requintes
de cortesia, até que a âncora do batel é lançada à água, para
que o Gama possa iniciar a história maravilhosa do povo
português.
A tela de Moçambique é já
diferente, estando a pintura das naus feita com sobriedade,
devido à distância a que são vistas. O mesmo sucede com os
mouros e com o movimento de reacção das nossas naus e das deles.
Dentro delas, é uma lufa-Iufa,
transmitida de uma forma tão viva que a descrição adquire agora
foros de reportagem. «Tomam-se as velas», amaina-se a verga alta
e ancora-se, enquanto os mouros vão subindo alegremente pelas
cordas. Na manhã seguinte, há a mesma cena de urbanidade já
entrevista em Melinde.
Lá está a marinhagem pela
«enxárcia», a olhar admirada os visitantes, naquele espanto
parado, tão do nosso povo. À sua admiração desprevenida opõe-se
a manha dos mouros, que tudo observam, detendo o olhar cobiçoso
no desfile das armaduras, com arneses e «peitos reluzentes»,
«malhas finas», escudos variamente pintados nas espingardas,
pelouros, chuços, bombas e panelas súlfureas, numa sucessão
singela só de quando em quando acompanhada de um adjectivo que
pouco acrescenta e que revela a sobriedade do Gama ao patentear
o seu armamento.
Segue-se a traição, passada
em dois planos: no mar e na terra. Das naus, vê-se a praia e,
com transporte da acção para o presente e com o auxílio de um
verbo de movimento, sentimos a acção real, esperando
ansiosamente o desenlace. Com o costumado recurso da figura de
semelhança, anima Camões os nossos de um ardor bélico. À
sugestão do enamorado que, incitado pelo amor, se planta diante
do touro e «salta, corre, sibila, acena e brada», enquanto o
animal, de cabeça baixa, cego, o «derriba, fere e mata e põe
por terra», vem-se juntar a visão da luta travada e da qual saem
vencedores os portugueses.
Foi apenas um esboço da luta,
onde, no entanto, já se podem surpreender as possibilidades de
realização artística verificadas noutras lutas de «Os Lusíadas»,
impressionantes pelo movimento e colorido.
Nessas batalhas, tem por
hábito o Poeta dar a desproporção das forças combatentes, sempre
com minoria para os portugueses, notação esta que, na de
Ourique, prepara o ambiente miraculoso e apresenta uma certidão
da veracidade à lenda da visão de Cristo, de forma que o
documento apócrifo descoberto nos arquivos do Convento de
Alcobaça em 1596 ganhe foros de verdadeiro e derrube a delação
de Herculano.
Antes, porém, da chegada ao
campo, assistimos à ida das tropas dada com um movimento tão
sugestivo, que vemos, na batalha do Salado, a gente armada a
desfilar pelos campos de Évora e, na de Aljubarrota, o aspecto
das ruas por onde o exército vai passando.
Como que se nos torna
concreta essa marcha belicosa pelo colorido que possui. Na luta
travada nas margens do Salado e vencida aos muçulmanos, vai
Camões distribuindo manchas brilhantes do sol a «lustrar o
arnês», demora-se nos jaezes dos cavalos e chega às «trombetas
em bandeiradas», não esquecendo as armas fulgentes. Para
imprimir mais / XlII / realismo,
não se esquece de marcar bem a continuidade dos sons que,
embatendo nos montes, se ampliam, retumbando «polas
concavidades».
Na luta que pôs fim ao
conflito dinástico, o nosso pintor vai mais longe, não se
limitando a ser a espectador ocioso que contempla com entusiasmo
marcial os soldados, mas o narrador atento ao conjunto, que
desvia os olhos das fardas para os deter nas pessoas que
assistem ao desfile. Nessa observação, capta o estado das
almas, a qual nos é revelado numa indicação apressada mas rica,
onde pinta, em quatro simples versos, um mundo de sugestões:
«Estavam pelos muros,
temerosas
E de um alegre medo quase
frias,
Rezando, as mães, irmãs,
damas e esposas,
Prometendo jejuns e
romarias».
Na simples frase «estavam
pelos muros», há um magote de rostos que, subindo às muralhas,
tentam avistar quem lhes é querido. Depois, com a nota de que
estavam «de um alegre medo quase frias», consegue tornar
fisicamente visível a complexidade de um estranho caso
psicológico revelado pela palidez do rosto a traduzir
sentimentos de temor e por um olhar de orgulho que encontra
justificação no patriotismo da mulher portuguesa.
Passemos agora à acção
guerreira. No fossado de Ourique, primeira surtida de
portugueses para além Tejo, houve a intervenção sobrenatural,
descrita com sobriedade, como convinha ao assunto. Ao sopro
bélico que percorre a medula dos combatentes, segue-se o já
familiar processo indirecto que, aqui, compara a vibração real
ao cão raivoso, tornando esta figura estilística mais visível o
«estômago acendido» da nossa gente que corre de encontro ao
exército inimigo, o qual toma arcos, setas e lanças, numa
confusão horrível, com o som das tubas e o estrondo dos
instrumentos de guerra.
Vem reforçar a surpresa do
exército mourisco a comparação esboçada a um canto da tela,
evocando pastores cujo sono é perturbado pelo estalido do mato a
arder e que, surpreendidos e temerosos, só têm tempo para
recolherem o que lhes pertence e fugirem. O paralelismo das duas
imagens torna-se mais flagrante na estância seguinte, posto que
os mouros não fujam, porquanto a sua força lhes promete uma
superioridade que estão certos de obter. Por isso mesmo, ficam
atordoados quando o inimigo lhes cai em cima e lhes dá combate
sério.
Na batalha do Salado, a luta
é relatada sob uma forma menos directa, sem que nela possamos
distinguir o espectáculo da derrota coloridamente apresentado
ao jeito de reportagem com que nos deleitamos na de Ourique. É
verdade que o artifício retórico da perífrase vem perturbar essa
visão directa, mas a enumeração final das verbos «rompe, corta,
desfaz, abala e talha», todos de acção, imprime um
extraordinário movimento à cena, pintando-nos com objectividade
o entusiasmo e a energia dos nossos.
A de Aljubarrota, porque de
duas hostes civilizadas se tratava, é desenhada de forma
diversa. Há a mesma acumulação de sons e cores, com o início
«horrendo, fero, ingente e temeroso» que, mediante a enumeração
qualificativa, nos penetra e nos faz sentir retrospectivamente o
temor que não teria causado e que nós avaliamos pelas hipérboles
que fazem recuar as águas ao Guadiana, procurar refúgio ao Tejo
e exteriorizarem os guerreiros a reacção emotiva nos «rostos sem
cor».
Na reportagem da tumulto vai
passando perante os nossos olhos de espectadores o avanço, de
início lento, das primeiras alas, sem que nunca se esqueça o
Poeta de nos ter em contacto com o estado moral dos
/ XIV / combatentes. Tornam-se
cada vez mais perigosos os recontros, com multiplicidade de registos
imitativos, mediante sibilantes a traduzirem o som das setas e farpas, até
chegarmos a um quadro muito semelhante ao da batalha de Ourique. Vem
depois,
como informação da derrota, a mesma imagem dos rostos pálidos,
sem vida, que jazem pelo campo tingido de sangue ou «as flores da
própria cor mudadas» que aparecem nas outras batalhas.
. . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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. . . . . . .
Verificada a expressividade dos quadros de movimento, e já que nos ocupámos dos homens e das
divindades, volvamos agora o olhar para o cenário e vejamos como
Camões nos pinta o mar e a terra onde se passam as cenas que as nossas
palavras evocaram.
O mar já era uma fonte de
imaginação poética dos cancioneiros, surgindo como cenário a bater
nos degraus da igreja de Vigo ou como confidente a quem a «fremosinha»
frequentemente recorria para saber o que era feito do homem que
lhe despertara ansiedades. N' «Os Lusíadas», como não podia deixar
de ser, está bem presente em descrições rítmicas e em terminologia
náutica.
A vida que Camões vai
pintando a bordo, com informação de instrumentos utilizados,
movimentação do cabrestante e acção de amarra e alijamento ou
tudo quanto se refere à técnica das naves da época, é ditada pela sua experiência de
marinheiro esforçado e extraída da lembrança do que viu quando isolado do
mundo, apenas entre água e céu.
Não esperemos encontrar,
portanto, paisagens de além-mar, paisagens exóticas com
características diferentes das que nos pintam os clássicos e
semelhantes às da «Peregrinação». Mesmo no que respeita às paragens percorridas, não adianta
mais do que os geógrafos da época. A única coisa em que é
original é na pintura de fenómenos e acções, observadas do tombadilho do seu
barco, como a tromba marítima, as tempestades ou a limpeza da carena.
Na descrição dos perigos
marítimos, os seus olhos retêm o que viram e transmitem
expressivamente ao leitor que, como se de um relatório científico se tratasse, não
necessita de nada mais para ter perante si o que atormentou os nautas. Em
traços rápidos, informa-nos desses perigos:
«Súbitas trovoadas
temerosas,
Relâmpados que o ar em fogo
acendem,
Negros chuveiros, noites
tenebrosas,
Bramidos de trovões que o
mundo fendem.»
Desce, depois, ao caso
particular que vai pintando por observação directa como no-lo afirma
como «vi, claramente visto». As águas do mar, formando um cano,
elevavam-se até às nuvens, parecendo desaparecer nelas, após o que, um
vapor que o poeta diz ser um «subil fumo» se erguia no ar, arredondando-se
sob a acção do vento. Dava a impressão de que um cano intérmino,
feito da mesma matéria das nuvens, se elevava até ao céu e, gradualmente
mais espesso, ia ondeando a acompanhar o ritmo das ondas. Tornado mais
visível pela comparação com uma sanguessuga, assinala-lhe o
Poeta o seu desprendimento do mar, mediante uma imagem concreta mas, por
isso mesmo, sugestivamente pinturesca:
«O pé que tem no mar a si
recolhe»
e, ao voar pelo céu, deixa
cair gotas de água, agora sem sal.
Demorámo-nos nesta descrição
pormenorizada, interessante e quase rigorosa. Cientificamente
mesmo, só possui a inexactidão da chegada da água às nuvens, provocada
pela superfície do cone nascida da rotação da tromba em espiral. Mas não
deveremos ser tão severos. e, muito / XV / contrariamente, é nossa
obrigação louvarmos este exagero de artista
que
amplia a imagem para a tornar
mais nítida, não podendo nós considerar essa inexactidão como
um erro dos sentidos ou do conhecimento, visto que a rectificação está
feita quando nos afirma que a água que cai do céu é doce.
Da descrição de tempestades,
a que presidiu a experiência colhida na sua viagem para a Índia,
ao dobrar o Cabo, poderemos surpreender o mesmo artista, sugestivo pelo
traçado rápido a animar o quadro, que já encontrámos em todos os
domínios por onde fomos lançando um olhar e ficaremos
impressionados quer na tempestade do canto VI, quer na da elegia «O poeta
Simónides falando», com o realismo surpreendente da narração,
onde não se esquece a vibração das cordas impelidas pelo vento
a darem a sensação auditiva de um assobio ou a ondulação alterosa
das vagas a sugerirem serras.
Como mais representativa,
olhemos a tempestade do poema:
«Mas, neste passo, assi
prontos estando,
Eis o mestre, que olhando os
ares anda,
O apito toca: acordam,
despertando,
Os marinheiros de hua e de
outra banda.
E, porque o vento vinha
refrescando,
Os traquetes das gáveas tomar
manda.
– Alerta (disse) estai, que o
vento crece
Daquela nuvem negra que
aparece.
Não eram os traquetes bem
tomados,
Quando dá a grande e súbita
procela.
– Amaina (disse o mestre a
grandes brados),
Amaina (disse), amaina a
grande vela!
Não esperam os ventos
indinados
Que amainassem, mas, juntos
dando nela,
Em pedaços a fazem cum ruído
Que o mundo pareceu ser
destruído!
O céu fere com gritos nisto a
gente,
Cum súbito temor e desacordo;
Que, no romper da vela, a nau
pendente
Toma grão soma de água pelo
bordo.
– Alija (disse o mestre
rijamente)
Alija tudo ao mar, não falte
acordo!
Vão outros dar à bomba, não
cessando!
à bomba, que nos imos
alagando!
Correm logo os soldados
animosos
A dar à bomba, e, tanto que
chegaram,
Os balanços, que os mares
temerosos
Deram à nau, num bordo os
derribaram.
Três marinheiros, duros e
forçosos,
A menear o leme não bastaram,
Talhas lhe punham, de hua e
de outra parte,
Sem aproveitar dos homens
força e arte.
. . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
A tornar mais
impressionante o quadro posterior, vem a antítese da atitude descuidada da
marinhagem a escutar as histórias de Veloso, o qual é interrompido pelo
sinal de alarme do mestre.
Cresce o
burburinho nas naus e, por sobre o bramido do mar, vão ouvindo as ordens apressadas
do chefe. Uns tomam os traquetes das gáveas,
/ XVI / outros correm às
manobras, enquanto o vento sopra mais rijamente ampliando a voz
que indica as acções que se impõem. Despedaçam-se as velas,
ouvem-se gritos e a nau inclina-se com o peso do mastro caído, a
deixar entrar água pelo bordo.
Assistimos a um relato
directo, cheio de dramatismo e animado ao máximo, com um vocabulário
apropriado e pintado por um artista. No final, é a nau de Paulo
da Gama que, tornada nítida pelo fulgor dos raios, se mostra
quase alagada com um mastro quebrado pelo meio, vindo completar
admiravelmente este «récit authentique de naufrage conté par un témoin oculaire».
Como exemplo de paisagem
marítima temos a que inicia «Os Lusíadas» na estância 19,
quando começa a narração. Todo o quadro prima pela delicadeza.
Essa suavidade provém do emprego do gerúndio a prolongar
lentamente a acção e do verbo respirar aplicado aos ventos, que,
para intensificar essa doçura, se encontra acompanhado do
advérbio brandamente.
As naus apartam «as inquietas
ondas» e a tal suave respiração vai inchando as «velas côncavas»
a desenharem a forma túmida dos traquetes que tantas vezes temos
visto em gravuras da época e que, por terem as escotas pandas,
deixam bem em evidência a cruz de Cristo.
A completar a serenidade da
tela, cobre Camões os mares de espuma, havendo apenas a
lamentar que a referência clássica ao «gado de Proteu» venha
perturbar a simplicidade da descrição.
Olhemos finalmente para o
pintor da terra e vejamos como sentiu ele a natureza. É pena
que o homem que Hernâni Cidade diz ser «um guloso de sensações»
com os «sentidos todos abertos à festa pagã que lhe oferece a
linda terra que canta» se tenha servido, na maior parte das
vezes, da natureza apenas como meio expressional. No entanto, é
já enorme a distância que vai da singeleza das flores do «verde
pino» ou da solitária «avelaneira florida» dos nossos
Cancioneiros à paisagem camoniana.
Evidentemente que um leitor
assíduo de Petrarca e dos clássicos teria de os seguir, com a
mesma invocação às aves, ao sol, aos céus e ao vento e com o
mesmo olhar aberto à claridade e equilíbrio das paisagens de
um Virgílio ou de um Horácio. Teria de reproduzir o mesmo
encantamento emocional, provocado pela presença da amada
revelando a natureza uma anímica perturbação que
obriga os ramos a justas homenagens à beleza que passa.
Não são, porém, pinturas
frias e meramente copiadas. Dá-lhes Camões uma saborosa
originalidade, distribuindo, aqui e ali, pinceladas de cor, com
amplo contributo dos seus epítetos que, como diz Hernâni Cidade,
são frequentemente sugeridores de sensações cromáticas, para já
não falar nos que despertam sensações de som.
Anima o cenário clássico com
a sua sensibilidade de tal forma que, no soneto «O céu, a terra, o
vento sossegado», pinta, por oposição a um estado de alma, e,
para mais realçar este, uma aguarela sobre a qual paira uma
calma singular. O mar acompanha esse sossego na quebra
preguiçosa das ondas e, para vincar melhor esta quietude, desce
o pincel até ao seio do oceano, esboçando, «in loco», os
peixes adormecidos».
À dor de Aónio responde esta
singela paisagem litoral com a mesma perturbadora e irritante
serenidade: o mar, lá mais para longe, «bate», o
arvoredo «move-se brandamente» e a voz do pescador é levada
sugestivamente pelo vento, devido à harmonia imitativa do final:
«leva-lhe o vento a voz que ao vento deita.».
Nada de concreto, nada de
particularmente descrito; simples esboços, linhas quase
esfumadas que nos dão, no entanto, nitidamente, a quietude de uma paisagem da
beira-mar. Ao Poeta, porém, serve essa
/ XVII / quietude para pôr a nu um
drama íntimo, intenção essa que poderemos surpreender em quase
todos passos da Lírica e que, embora prejudique o descritivo
realista da paisagem, consegue, de onde em onde, verdadeiras
maravilhas de encantos naturais, como, por exemplo, no soneto de
que Bocage se confessa tão devedor. Aí também Camões procura
enunciar suavidades de cenário para concluir pela absorção total
amorosa:
«A formosura desta fresca
serra
E a sombra dos verdes
castanheiros,
O manso caminhar destes
ribeiros,
Donde toda a tristeza se
desterra;
O rouco som do mar, a
estranha terra,
O esconder do sol pelos outeiros,
O recolher dos gados
derradeiros,
Das nuvens pelo ar a branda
guerra;
Enfim, tudo o que a rara
natureza
Com tanta variedade nos of'rece,
Me está, se não te vejo,
magoando.
Sem ti, tudo me enoja e me
aborrece;
Sem ti, perpetuamente estou passando
Nas mores alegrias mais
tristeza.»
É no terceiro verso que
Camões começa a espalhar toques de aguarela com requintes de
delicadeza. É «o manso caminhar» das ribeiras, na sua aliança
de suavidade vinda do epíteto manso com o verbo caminhar,
deslocado do domínio aplicável a seres animados, a pôr-nos
perante os olhos o leito estreito de pequeno regato, obrigado
pelos meandros, a uma doce lentidão. Depois, vem o «rouco som do
mar» trazendo na sua harmonia imitativa o bramido das águas a
quebrarem junto à barreira, ao passo que «o esconder do sol
pejos outeiros», mediante a circunstância no plural, vai graduando
temporariamente o pôr do sol, com reforço do «recolher dos gados
derradeiros» com valor expressivo no adjectivo.
Toda esta lentidão é coroada
pela «branda guerra» das nuvens que, na oposição do substantivo
com o adjectivo, torna quase subtil o entrechocar que a dança ligeira
provoca. A expressão «pelo ar» não permite, também, que a acção
se detenha ou alcance um limite temporal, mas prolonga-a
indefinidamente, com um recorte lânguido e vago que interpreta
bem a melancolia da nossa paisagem.
Não poderemos assinalar
pinturas fortes, decisivas, com manchas de cor, com rigor de
traçado, nascidas da paleta de um realista. Aqui, a sua
visualização chega até nós mediante a estranha veia artística do
Poeta e o nosso poder de captação e
compreensão. À medida que fomos fixando o soneto, foi
surgindo a aguarela, rica de suavidade, de tonalidades doces de
sol-pôr, com sombras de castanheiros, amenidades de regato e,
por pano de fundo, o mar longínquo com as nuvens quase esfumadas
a ondearem lentamente e a enquadrarem toda a cena da recolha dos
gados.
Aliando-se a esta maneira de
pintar com tons quase desvanecidos, outra técnica possui o nosso
Poeta, apreendida por ele no contacto com a própria natureza
que, segundo diz, possui:
«... estranha subtileza de
pintura,
Que matiza, em uma hora, de
mil cores,
O céu, a terra, as flores,
monte e prado!»
Foi essa mesma subtileza que
resolveu explorar, para oferecer, como
/ XVIII / prémio, aos navegantes cansados
um repouso merecido, reunindo, para isso, o que de mais belo
conhecia e imaginando uma ilha, segundo ele, «alegre e deleitosa» juncadinha
de ninfas a tentarem uma assinatura de Ticiano.
É fora de dúvida que ela
corresponde à nossa ideia, não nos deixando insatisfeitos nem
pelo colorido, nem pela harmonia. O mesmo poderemos dizer da
paisagem esboçada na célebre canção ditada por mágoas, sentidas junto do cabo
Guardafui, e que lembra a Hernâni Cidade um «esboço a carvão»
pelas tintas escuras que apresenta.
É possível que se trate de uma
paisagem oriental; o que, porém, sentimos como verdadeiro é a
unidade da descrição e do estado moral do Poeta. Intensifica-se a
dureza da paisagem com o céu vasto sem uma ave a dulcificar-lhe o
infinito, com a terra deserta sem uma fera a dar-lhe vida, com os
rochedo mudos, sem uma fonte a brotar. E é precisamente na notação
do que lhe falta que esse monte ganha tons mais carregados,
conduzindo-nos ao amargo acabrunhamento que tenta revelar.
De resto, todas as mais telas,
descritivas de belezas naturais, se apresentam mais ou menos
filiadas nos clássicos, embora fácil nos seja surpreender em todas
elas as características que temos vindo assinalando como próprias
da lira camoniana. Mas, porque elas são frequentes, omitimos
referências às fontes a deixarem transparecer as «alvas pedras»,
ao murmurar das ondas, às manchas cromáticas dos lírios roxos, das
brancas rosas ou dos mirtos, para irmos tentar, numa nota final,
sintetizar algo do que dissemos.
Parece-nos termos tido ocasião
de ver que a realidade física e psicológica são bem transmitidas
pelo Poeta, não sob forma directa, mas sob um traçado sugestivo, a
destinar, assim, a sua poesia a um escol que, para a sentir
integralmente, carece de possuir, acima de tudo, sensibilidade.
A adjectivação entrevista,
embora de acentuado cunho clássico, mostra-se original pelo lugar
que ocupa na frase e pelo valor expressivo aproveitado por Camões.
Também os verbos, o talhe da frase e as comparações contribuíram
para que as descrições fossem apreendidas e completadas pelo nosso
espírito.
Pelas grandes telas que fizemos
passar sob os nossos olhos, pelos rostos femininos, nimbados
de suavidade ou traçados a recortes mais ou menos nítidos, pelos
estados psicológicos que penetrámos, pelos quadros cheios de
movimento das batalhas ou pelo sugestivo das paisagens, poderemos
concluir que Camões pinta com expressividade e consegue fazer-nos
experimentar visualmente o que pretende que seja do nosso
conhecimento.
Por isso mesmo, evocando, no
dia de hoje, esta particularidade da poesia camoniana, quer-nos
parecer que a intenção não foi de todo má, havendo apenas a
ser-nos perdoada a sua realização.
Maria Luísa Sereno Cura
Mariano
Professora do 2º Grupo
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