Veloso de Araújo, A Casa de Camilo, Rev. "ABC", n.º ?, 1920, pp. 10 e 11.

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Parece que aquela atmosfera fatídica que sempre rodeou o glorioso escritor Camilo Castelo Branco, acentuando-se mais nos últimos tempos da vida do fecundo romancista e que, por uma estranha lei de hereditariedade, se transmitiu intacta aos seus descendentes, tende a desaparecer.

Aos netos do genial escritor foram disputados, no Tribunal do Comércio, por alguns potentados da indústria livresca, os direitos de algumas das suas melhores obras.

Essas obras enriqueceram muitos editores, com sucessivas edições, chegando o «Amor de Perdição» a ter trinta e três, sem que os legítimos descendentes de Camilo houvessem recebido qualquer indemnização pelas obras publicadas.

Era, pois, a herança fatídica que receberam do suicida de S. Miguel de Seide, o seu único amparo. Porém, justiça parece que se fez, porque o primeiro dos processos, em que se queria extorquir aos descendentes do escritor os direitos da propriedade do «Amor de Perdição», a obra mais lida de Camilo, foi julgada a favor dos pobres réus, que só agora vão usufruir esse direito...

A obra de Camilo, as muitas pesquisas da sua vida, desse malogrado solitário de S. Miguel de Seide, deu que comer a muitos, mas aos seus descendentes, como que se a fatalidade cruel se transmitisse, nada lhes deu de útil. De nenhum escritor português se escreveu tanto, após a sua morte, como de Camilo.

A sua obra vai sendo cada vez melhor compreendida, e ele cada vez mais homenageado.

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Casa de Camilo antes e depois do incêndio, aquando da escritura de compra das ruínas em 17 de Abril de 1916.

   
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Há tempos, ainda aquela fatalidade de que vínhamos falando reduziu a sua tebaida, em Seide, a cinzas numa quarta-feira triste, quando ninguém se encontrava perto para apagar o incêndio, que tudo devorou, deixando apenas as paredes de pé.

Pouco tempo depois, mãos criminosas, desconhecidas, entraram no jardim da casa e partiram a linda memória de granito que D. Ana Plácido mandou erigir para comemorar a visita de Castilho, Príncipe da Lira Portuguesa, de Tomás Ribeiro, Eugénio de Castilho e José Cardoso Vieira de Castro.

Logo se organizou uma comissão de sinceros amigos do grande escritor, com o fim de mandar reedificar a casa, onde Camilo escreveu o melhor da sua obra, onde sofreu e morreu no desespero dum sacrificado pela sorte.

Projectou-se que se instalaria no primeiro pavimento da casa, que devia ser edificada obedecendo ao mesmo plano da que ardeu, uma escola modelo, onde se ensinasse às criancinhas a ler e escrever, para depois compreenderem a magistral obra do fecundo escritor, que ali a sonhou e escreveu em parte.

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Casa onde habitava o filho de Camilo, o Visconde de S. Miguel de Seide.

Nos pavimentos superiores da casa deveria instalar-se o Museu Camiliano, onde deveriam figurar em exposição os objectos mais queridos do escritor, aqueles que usou em vida, e os que assinalaram um facto ou uma data e, que, por um descuido da fatalidade, em boa hora tinham sido retirados da casa que ardeu para a que construiu seu filho Nuno, hoje habitada pelos seus descendentes. Os aposentos mais habitados por Camilo, o seu quarto de dormir, a sua sala de trabalho e, em geral, todos os outros aposentos deveriam ser reedificados semelhantemente aos que arderam.

No Museu deveriam figurar todos os objectos que lhe pertenceram, desde as penas com que escreveu a sua tão bela obra, à arma com que pôs termo, num momento de desânimo, à cruciante existência, tão cruelmente arrostada desde que se lhe apagou a luz dos olhos. A ideia era interessantíssima, mas para a levar avante muitas dificuldades surgiriam. Não as temeu uma alma forte e genial, cheia de vontade de vencer e venceu-as. Refiro-me ao ilustre fidalgo da Casa do Vinhal, o Sr. José de Menezes, amigo muito dedicado de Camilo.

Assim é que no dia 17 de Abril de 1916 se assinava a escritura de compra das ruínas da casa do grande escritor, que hoje já se encontra reedificada. A Comissão que levou ao fim tão interessante obra reuniu no dia 7 do corrente no Salão Olímpia, em Famalicão, para apresentar às pessoas gradas daquela terra o relatório da Comissão, documento extenso, muito pormenorizado e brilhantemente escrito pelo Sr. José de Menezes, ilustre presidente da Comissão, que o apresentou e leu. Constatou-se no relatório um déficit de três contos e oitocentos mil réis.

A Comissão espera saldar esse déficit com um conto de réis prometido pelo governo e com a venda de dois mil exemplares de um livro, Camilo homenageado, interessante obra onde se publicam os resumos de algumas centenas de cartas dirigidas a Camilo pelos seus contemporâneos mais ilustres, além do relatório da Comissão e de um belo escrito do Sr. José de Menezes acerca do escritor, para o qual a Comissão conta com o auxílio dos admiradores do grande romancista.

A Escola, instalada nos baixos da casa reedificada, num magnifico e espaçoso salão, belamente mobilado com todos os requisitos da moderna pedagogia, vai funcionar muito em breve, devendo o Museu ser inaugurado solenemente logo que a estrada que liga a vila de Famalicão a Seide esteja construída, para o que se espera o auxílio das entidades governamentais.

A obra da Comissão é digna de todos os louvores. Essa homenagem póstuma ao grande romancista tem a simpatia de todos os portugueses, que admiram a grandiosa obra do grande escritor.

VELOSO DE ARAÚJO

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16-9-2009