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Parece
que aquela atmosfera fatídica que sempre rodeou o glorioso
escritor Camilo Castelo Branco, acentuando-se mais nos
últimos tempos da vida do fecundo romancista e que, por
uma estranha lei de hereditariedade, se transmitiu intacta
aos seus descendentes, tende a desaparecer.
Aos
netos do genial escritor foram disputados, no Tribunal do
Comércio, por alguns potentados da indústria livresca, os
direitos de algumas das suas melhores obras. |
Essas obras
enriqueceram muitos editores, com sucessivas edições, chegando
o «Amor de Perdição» a ter trinta e três, sem que os legítimos
descendentes de Camilo houvessem recebido qualquer
indemnização pelas obras publicadas.
Era, pois,
a herança fatídica que receberam do suicida de S. Miguel de
Seide, o seu único amparo. Porém, justiça parece que se fez,
porque o primeiro dos processos, em que se queria extorquir
aos descendentes do escritor os direitos da propriedade do
«Amor de Perdição», a obra mais lida de Camilo, foi julgada a
favor dos pobres réus, que só agora vão usufruir esse
direito...
A obra de
Camilo, as muitas pesquisas da sua vida, desse malogrado
solitário de S. Miguel de Seide, deu que comer a muitos, mas
aos seus descendentes, como que se a fatalidade cruel se
transmitisse, nada lhes deu de útil. De nenhum escritor
português se escreveu tanto, após a sua morte, como de Camilo.
A sua obra
vai sendo cada vez melhor compreendida, e ele cada vez mais
homenageado.
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Casa de
Camilo antes e depois do incêndio, aquando da escritura de
compra das ruínas em
17 de
Abril de 1916. |
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Há
tempos, ainda aquela fatalidade de que vínhamos falando
reduziu a sua tebaida, em Seide, a cinzas numa
quarta-feira triste, quando ninguém se encontrava perto
para apagar o incêndio, que tudo devorou, deixando apenas
as paredes de pé.
Pouco
tempo depois, mãos criminosas, desconhecidas, entraram no
jardim da casa e partiram a linda memória de granito que
D. Ana Plácido mandou erigir para comemorar a visita de
Castilho, Príncipe da Lira Portuguesa, de Tomás Ribeiro,
Eugénio de Castilho e José Cardoso Vieira de Castro. |
Logo se
organizou uma comissão de sinceros amigos do grande escritor,
com o fim de mandar reedificar a casa, onde Camilo escreveu o
melhor da sua obra, onde sofreu e morreu no desespero dum
sacrificado pela sorte.
Projectou-se que se instalaria no primeiro pavimento da
casa, que devia ser edificada obedecendo ao mesmo plano da
que ardeu, uma escola modelo, onde se ensinasse às
criancinhas a ler e escrever, para depois compreenderem a
magistral obra do fecundo escritor, que ali a sonhou e
escreveu em parte. |
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Casa onde
habitava o filho de Camilo, o Visconde de S. Miguel de
Seide. |
Nos
pavimentos superiores da casa deveria instalar-se o Museu
Camiliano, onde deveriam figurar em exposição os objectos mais
queridos do escritor, aqueles que usou em vida, e os que
assinalaram um facto ou uma data e, que, por um descuido da
fatalidade, em boa hora tinham sido retirados da casa que
ardeu para a que construiu seu filho Nuno, hoje habitada pelos
seus descendentes. Os aposentos mais habitados por Camilo, o
seu quarto de dormir, a sua sala de trabalho e, em geral,
todos os outros aposentos deveriam ser reedificados
semelhantemente aos que arderam.
No Museu
deveriam figurar todos os objectos que lhe pertenceram, desde
as penas com que escreveu a sua tão bela obra, à arma com que
pôs termo, num momento de desânimo, à cruciante existência,
tão cruelmente arrostada desde que se lhe apagou a luz dos
olhos. A ideia era interessantíssima, mas para a levar avante
muitas dificuldades surgiriam. Não as temeu uma alma forte e
genial, cheia de vontade de vencer e venceu-as. Refiro-me ao
ilustre fidalgo da Casa do Vinhal, o Sr. José de Menezes,
amigo muito dedicado de Camilo.
Assim é que
no dia 17 de Abril de 1916 se assinava a escritura de compra
das ruínas da casa do grande escritor, que hoje já se encontra
reedificada. A Comissão que levou ao fim tão interessante obra
reuniu no dia 7 do corrente no Salão Olímpia, em Famalicão,
para apresentar às pessoas gradas daquela terra o relatório da
Comissão, documento extenso, muito pormenorizado e
brilhantemente escrito pelo Sr. José de Menezes, ilustre
presidente da Comissão, que o apresentou e leu. Constatou-se
no relatório um déficit de três contos e oitocentos mil réis.
A Comissão
espera saldar esse déficit com um conto de réis prometido pelo
governo e com a venda de dois mil exemplares de um livro,
Camilo homenageado, interessante obra onde se publicam os
resumos de algumas centenas de cartas dirigidas a Camilo pelos
seus contemporâneos mais ilustres, além do relatório da
Comissão e de um belo escrito do Sr. José de Menezes acerca do
escritor, para o qual a Comissão conta com o auxílio dos
admiradores do grande romancista.
A Escola,
instalada nos baixos da casa reedificada, num magnifico e
espaçoso salão, belamente mobilado com todos os requisitos da
moderna pedagogia, vai funcionar muito em breve, devendo o
Museu ser inaugurado solenemente logo que a estrada que liga a
vila de Famalicão a Seide esteja construída, para o que se
espera o auxílio das entidades governamentais.
A obra da
Comissão é digna de todos os louvores. Essa homenagem póstuma
ao grande romancista tem a simpatia de todos os portugueses,
que admiram a grandiosa obra do grande escritor.
VELOSO DE
ARAÚJO |