O Bispo
português representado na Capela Sistina, auxiliando o
"Príncipe Perfeito", veio a Aveiro tentar que Joana deixasse o
convento.
|
|
|
Roma – Capela Sistina – D.
Garcia de Meneses, no «Sermão da Montanha» (Pormenor da
pintura de Cosimo Rosselli – fins do sé. XV.) |
|
|
Museu de Aveiro – D. Garcia de
Meneses e o Príncipe D. João com a Princesa Santa Joana no
Mosteiro de Jesus (séc. XVII). |
|
|
|
A Princesa
D. Joana, que em 1472 veio para Aveiro, ficando a viver no
Mosteiro de Jesus, em 25 de Janeiro de 1475, com a tomada do
hábito dominicano, iniciou o noviciado com o fim de se
preparar para a profissão religiosa na Ordem dos Pregadores.
Ao ser conhecido o facto, logo se avolumaram os protestos
contra a sua resolução. O próprio Príncipe D. João, seu irmão,
que mantinha como um dos seus projectos políticos um possível
casamento da irmã com algum príncipe estrangeiro, deslocou-se
às terras do Vouga, com alguns fidalgos, entre os quais o
bispo de Évora, D. Garcia de Meneses. Também este, cortesão e
diplomara, se mostrava severo quanto ao procedimento da
Princesa e dispôs-se a apoiar D. João.
Chegado a
Aveiro, o "Príncipe Perfeito" entrou pela clausura conventual
e, com ele, o referido bispo. A prioresa, madre Brites Leitão,
como lhe competia, ouviu D. João que lhe afirmou ter agido
temerariamente ao investir o hábito a sua irmã e ao aceitá-la
como noviça; el-rei, seu pai, e ele não consentiam que ela
levasse adiante coisa tão errada. Com humildade, a prioresa
respondeu que ela e todas as irmãs consideravam a Princesa
como sua senhora e assim lhe obedeciam e a serviam. Por isso,
apenas haviam cumprido o desejo de D. Joana.
D. João não
se contentou com a resposta da superiora da Comunidade. Pediu
então que o levassem aos aposentos da irmã; esta veio ao seu
encontro e saudou-o com muita alegria. Em tom magoado mas
calmo, o irmão foi-lhe dizendo que o seu procedimento tinha
causado grande desgosto a el-rei, a ele e a todo o Reino, e
expôs-lhe as razões para interromper a vida claustral. A
Princesa, ouvindo tudo com muita atenção, não acedeu ao
pedido. Afirmou-lhe, respeitosa mas categoricamente, que
fossem todos muito certos de que o que tinha começado, com a
graça e a ajuda de Deus, por nenhuma coisa o havia de deixar;
se estava em Aveiro e no Mosteiro de Jesus, era com a
autorização de Suas Altezas... e ambos presumiam para que fim.
Perante a
persistência de D. Joana, o Príncipe chamou em seu reforço o
aludido bispo, que se tinha conservado a distância, e
contou-lhe o resultado da conversa; porque conhecia bem a sua
eloquência, solicitou-lhe que entrasse no debate para
patrocinar o seu ponto de vista. O "Príncipe Perfeito",
animado pelo prelado a teimar, voltou junto da irmã e tomou-a
pela mão; saindo da estância, foram os dois para as varandas
superiores do claustro, acompanhados pela prioresa e por
outras quatro religiosas, além de D. Garcia de Meneses. Porque
era preciso que ela desistisse da sua teimosia, D. João e o
bispo irritaram-se e começaram a falar ao mesmo tempo,
repetindo os mesmos argumentos e insistindo que despisse o
hábito.
A Princesa,
tudo ouvindo e sofrendo com inalterável serenidade,
respondeu-lhes, em palavras magoadas mas serenas, as quais
significaram uma humilhação dolorosa para os dois. Ao
rememorar este episódio em 1661, Frei Luís de Sousa, "filho do
Convento de Benfica", com o seu estilo próprio, escreveu que
ela aproveitou a oportunidade para advertir respeitosa mas
categoricamente o bispo de Évora de um modo que ele não
esperava, mostrando-lhe a sem-razão dos seus argumentos. D.
Joana não se limitou a refutar as razões do prelado, mas
increpou-o, tomando uma atitude de certo modo repreensiva da
maneira de proceder de um homem da Igreja. O bispo de Évora
não teve argumentos para contradizer a jovem Princesa.
De facto,
D. Garcia de Meneses não se notabilizou tanto no serviço
eclesiástico como em empresas bélicas e em conspirações
políticas, nas quais se envolveu. Em 1475-1476, acompanhou D.
Afonso V na inglória invasão de Castela e na desastrosa
batalha de Tora. Três anos depois, chefiou uma nova incursão
em Castela; atacado perto de Mérida, foi vencido, ferido e
preso. Em Agosto de 1481, comandou uma frota de vinte e três
navios e de dois mil homens que, por ordem do nosso Monarca,
foi em auxílio dos italianos contra os turcos invasores; a
armada atracou em Roma, perto da basílica de S. Paulo, onde o
Pontífice recebeu e abençoou a tripulação. O bispo de Évora
pronunciou, na ocasião, um tão douto e elegante discurso, em
latim, dissertando sobre a repreensível inércia dos príncipes
católicos e a escandalosa vida que levavam alguns prelados; as
suas palavras foram aplaudidas de tal forma que um dos
presentes, o humanista Pompónio Letto, terá perguntado: —
"Santo Padre, quem é este estrangeiro que fala tão bem?"
Porém, o prelado e os nossos compatriotas não chegaram a
intervir, por os turcos se terem rendido.
Em 1484, já
há dois anos regressado a Portugal, o bispo eborense
envolveu-se na conspiração do duque de Viseu contra D. João II.
Logo após a morte violenta do duque pelo Soberano, foi detido
e levado para o castelo de Palmela, onde o meteram numa
cisterna sem água; aí acabou por falecer, dizem que
empeçonhado. Com muito desgosto, a Princesa teve de suspender
o noviciado por motivo de saúde e a juízo de alguns médicos e
sacerdotes; mas nem por isso deixaria de se estimular num
esforço voluntário e de continuar numa intensa actividade
interior. "Esperava em Nosso Senhor de ser 'freira sem
profissão' naquela Casa e nela viver e morrer, sem sair nunca
para outro estado" — dissera antes a frei Antão de Santa Maria
de Neiva, provincial da Observância Dominicana em Portugal e
Castela.
Em Roma, a
aura de D. Garcia de Meneses fora tal que Cósimo Rosselli, na
altura empenhado na pintura dos seus quadros parietais na
famosa Capela Sistina, retratou-o no afresco do Sermão da
Montanha. Apresentando-se com singular realce, o bispo ouve
Tiago de Almeida, cavaleiro de Rodes, notabilizado pela
vitória do seu barco contra dois corsários. Um português, ao
entrar nesse espaço, se sobremaneira admira o génio artístico
de MigueI Ângelo Buonarroti, bem expresso no Juízo Final sobre
a parede do fundo e nas várias cenas bíblicas, nos profetas e
nas sibilas do tecto, não pode deixar de olhar para a figura
do bispo, destacado entre a multidão que ouve Jesus Cristo.
João
Gonçalves Gaspar |