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           Da 
          aldeia de Mata do Rei, onde vivia, ao Registo Civil de Santarém, 
          António Cândido demorou cinco horas. Foi de mula, na altura o único 
          meio de transporte de que dispunha. O adolescente, com 15 ou 16 anos, 
          tinha recebido uma bicicleta do pai, mas, para aproveitar o presente, 
          precisava de tirar o bilhete de identidade (BI). «Naquela altura, era 
          necessário identificação para andar de bicicleta», explica à SÁBADO o 
          antigo moleiro, hoje com 92 anos. 
          Em Santarém, o processo foi rápido. 
          Apresentou a cédula de nascimento, pôs o dedo indicador direito num 
          papel, para deixar registada a impressão digital, e explicou por que 
          queria o documento. «O meu pai só o tirou já adulto. Precisou dele 
          para ter uma licença de carroça. Tinha uma azenha e um moinho de vento 
          para fazer farinha, que transportava para Santarém.» 
          Na época, 1936 ou 1937, os bilhetes 
          de identidade eram documentos mais detalhados do que são hoje. Além do 
          nome, data de nascimento, filiação, naturalidade, altura, impressão 
          digital e fotografia, o BI de António Cândido tinha indicações sobre 
          sinais particulares, cor da barba, do cabelo, dos olhos e da pele. O 
          formato também era diferente: em vez do cartão amarelo ainda hoje em 
          uso (embora em substituição gradual pelo cartão de cidadão), os 
          portugueses da primeira metade do século XX tinham uma caderneta 
          desdobrável. Era um documento de três páginas preenchido à mão. 
          
          
           No mês passado, o BI fez 99 anos. 
          Desde 1914 que é usado para provar a identidade dos cidadãos. Os 
          primeiros registos de identificação em Portugal são do século XVI. Em 
          pleno período dos Descobrimentos, os capitães das naus apontavam o 
          nome, alcunha, estado civil, filiação e naturalidade dos marinheiros. 
          Era uma forma de saberem quem levavam a bordo, embora não existisse 
          qualquer papel oficial. Só bastante mais tarde, na Primeira República, 
          surgiu essa necessidade: percebeu-se que era preciso ter um registo 
          dos cidadãos porque havia cada vez mais pessoas a viver nas cidades e 
          tornava-se difícil identificá-las quando morriam. 
          O INVESTIGADOR e antigo inspector da Polícia Judiciária, 
          Francisco Moita Flores, diz que foi esse problema de identificação dos 
          corpos que deu origem à palavra "morgue".
 
          «A palavra francesa morguer 
          significa observar com atenção. Na prisão de Paris, havia uma sala 
          enorme numa cave, com uma clarabóia com grades. Os presos iam para 
          essa sala e os guardas ficavam a olhar para eles para tentarem 
          memorizar as suas feições, caso fugissem ou reincidissem. Não havia 
          outro método de identificação», explica à SÁBADO. 
          Com o aparecimento do bilhete de 
          identidade em Portugal, em 1914, parte destes problemas de 
          reconhecimento acabaram: o documento tinha fotografia e impressão 
          digital. Mas não só: possuía também informações detalhadas sobre os 
          traços físicos. Um dos primeiros portugueses a tirar o BI foi o antigo 
          Presidente da República,  
          Manuel de Arriaga. 
          O documento, que data de 
          1914, 
          e que hoje pertence ao espólio do Museu da Presidência da República, 
          tinha três páginas. Indicava que o líder republicano vivia no Palácio 
          de Belém, tinha uma cicatriz na cabeça, do lado direito, cabelo e 
          barba de cor branca. Estas informações eram ainda complementadas com 
          duas fotografias, uma de perfil e outra de frente, que ocupavam a 
          parte central da caderneta amarelada. Por baixo das imagens, está a 
          data em que foram tiradas: 1911. 
            
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          Desde que foi criado oficialmente e 
              até 2007 (ano em que começou a ser substituído pelo cartão de 
              cidadão), o bilhete de identidade sofreu várias mudanças. De um 
              cartão com três páginas cheio de detalhes sobre a aparência 
              física, passou a documento plastificado com menos informação, mas 
              mais difícil de ser copiado. |  |  |  
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              Fernando Pessoa 
              O documento de 
              identificação estava em português e inglês. 
              Curiosidade 
              O poeta trabalhava na área do comércio e é com essa profissão que 
              aparece identificado. Tirou-o em 1928, um ano depois de ser 
              obrigatório para todos. |  
          Em 1952, por exemplo, chegou mesmo 
          a haver uma versão diferente para as pessoas que viviam nas então 
          províncias ultra-marinas: em vez de só se recolher a impressão digital 
          do dedo indicador, punham-se as dos 10 dedos. 
          Nos primeiros tempos, o BI não 
          servia para verificar oficialmente a identidade dos cidadãos. Só em 
          1919a lei estabeleceu que o documento podia servir como prova. Se, por 
          exemplo, alguém duvidasse do nome verdadeiro de uma pessoa, era 
          preciso levar duas testemunhas que atestassem no Registo Civil a 
          veracidade da informação. Nessa época, o BI português tinha uma 
          validade de cinco anos e era um dos mais modernos da Europa. O 
          director do Arquivo de Identificação da Catalunha chegou a andar que o 
          iria copiar por o considerar um dos mais bem feitos da época.
 
          Apesar de admirado, o documento 
          enfrentou resistências em Portugal quando, em 1926, se tomou 
          obrigatório para todos os funcionários públicos. Como as impressões 
          digitais e as fotografias eram até então usadas para identificar 
          presos e mortos, alguns trabalhadores ficaram irritados ao perceberem 
          que iriam ter um documento como os dos criminosos, com as mesmas 
          características. Chegaram mesmo, de acordo com o Diário de Notícias, a 
          enviar um grupo de representantes ao Senado. "Estavam alarmados", 
          dizia o jornal, porque, segundo a lei, deixariam de receber salário se 
          não tivessem o tal cartão. Além do mais, ainda tinham de pagar 50 
          escudos para a sua emissão. 
          Apesar da contestação, a polémica 
          lei do BI foi aprovada. "A ideia era cruzar o registo criminal com o 
          registo civil. O Estado queria ter um papel mais vigilante", explica à 
          SÁBADO Maria Rita Lino Garnel, investigadora do Centro de Estudos de 
          Sociologia da Universidade Nova de Lisboa. O Estado também pretendia 
          distanciar-se da Igreja e converter tanto o casamento, como o divórcio 
          ou a morte, em actos civis e não apenas religiosos. 
          UM ANO DEPOIS, em 1927, o cartão 
          tornou-se obrigatório para todas as profissões. O poeta Fernando 
          Pessoa, que então trabalhava no comércio, tirou-o a 28 de Agosto de 
          1928. O documento estava escrito, como determinava a lei, em três 
          línguas: português, francês e inglês. E tinha apenas uma fotografia do 
          escritor.
 
          Até se democratizarem, na década de 
          50-60, os bilhetes de identidade continham frequentemente informações 
          vagas e imprecisas. Quando, em 1930, com apenas 12 anos, Maria 
          Rosalina Pais tirou o seu cartão, os funcionários do Registo Civil 
          escreveram no espaço destinado à altura: "a crescer". A antiga 
          professora primária, hoje com 94 anos, precisou daquele documento para 
          se matricular no Liceu Filipa de Lencastre, em Lisboa. Na época, o 
          cartão só era necessário para circunstâncias específicas, como 
          estudar, trabalhar, viajar ou para qualquer acto público. "Por 
          exemplo, a minha mãe só o tirou aos 80 anos, quando o meu pai morreu, 
          para poder receber o subsídio", conta à SÁBADO. 
            
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          A antiga professora primária 
          recorda-se de que já naquele tempo o documento era valioso. "As 
          pessoas tinham muito medo de o perder, por isso guardavam-no com 
          cuidado." Além disso, tirar o bilhete de identidade era uma espécie de 
          "prova iniciática", acrescenta a historiadora Maria Rita Lino Garnel. 
          "Punha-se um vestido bonito, ia-se bem lavado e penteado." 
          
          24 ABRIL 2013 |  
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              As impressões digitais 
              começaram por ser utilizadas nos boletins de identificação dos 
              cadáveres. Ao lado, uma ficha de 1911. |  | 
        
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           1914 
          – Aparecem os primeiros cartões. Têm 
          
          três páginas 
          e, além do nome, filiação e naturalidade, incluem duas fotografias, 
          uma impressão digital i do dedo indicador, assinatura, e informações 
          sobre altura, cor da pele, olhos, cabelo, barba, sinais particulares e 
          residência. 
          
          
          1918 
          – Os bilhetes de identidade passam a ter apenas 
          
          
          uma foto. 
          Estão escritos em três línguas: português, francês e inglês. 
          
          
          1926 
          – Começam a ter espaço para registar alterações do nome do cônjuge e 
          do 
          
          estado civil. 
          Tornam-se obrigatórios para todos os funcionários públicos. 
          
          
           1957 
          – São reduzidos a duas páginas e impressos exclusivamente em língua 
          portuguesa. Emitem-se 
          
          dois modelos: 
          um para cidadãos nacionais, outro para estrangeiros. 
          
          
          1970 
          – Passam a ter apenas uma página e são 
          
          plastificados. 
          Um ano depois, começam a ser informatizados. Os documentos escritos à 
          mão são cada vez mais raros. 
          
          
          1986 
          – É obrigatório usar fotografias a cores nos bilhetes de identidade. 
          
          
          1992 
          – É introduzido o plástico à volta do cartão e uma 
          
          
          faixa de segurança 
          por cima da fotografia, que se encontra do lado direito. 
          
          
          2007 
          – O BI começa a ser gradualmente substituído pelo 
          
          
          cartão de cidadão. |