BONDADE
HERÓICA
Duas
palavras, apenas. Mas duas palavras muito sinceras e muito
sentidas pelo herói e pelo amigo.
Pelo herói,
que o foi, nesta terra e neste país, entre os maiores. Pelo
amigo, em quem sempre reconheci extremos de imerecida
dedicação e uma sinceridade sem limites.
Em Arrais
Ançã, conjugavam-se, admiravelmente, duas personalidades, que
eram, todavia, no fundo, muito distintas: a alma de um herói
e a alma de uma criança. E foi, sem dúvida, esta superior
dualidade espiritual que fez de um humilde e obscuro pescador
o homem extraordinário, que, em esforçada e destemida luta
com as vagas alterosas de um mar indómito, conseguiu arrancar
à morte mais de noventa náufragos, para os lançar, depois, com
rude mas enternecedora humildade, nos braços carinhosamente
acolhedores da família angustiada!
Arrais Ançã
era um bom. E quem existirá, aí, que não conhecesse e não
tivesse sentido, ao menos uma vez, a extrema e tocante bondade
do nosso grande e gloriosíssimo Arrais? Mas, quem melhor
sentiu e conheceu de Ançã a alma compadecida e boa, foram
aqueles velhos e desprotegidos pescadores que dele receberam
generosamente, conforto de palavras, conforto de agasalho e
de pão...
Repitamo-lo: Arrais Ançã era um bom. E, foi sempre, desde
moço, tão largamente acentuada a sua bondade de coração, que o
Destino, querendo reservá-lo para os mais altos feitos
marítimos, logo o foi dotando com o arcaboiço e corpulência de
gigante. Para que os seus músculos de aço pudessem servir
pronta e admiravelmente os seus elevados sentimentos de
humanitarismo, traduzidos, mais tarde, por actos da mais
audaciosa e extraordinária bravura, roubando às fúrias do mar
alteroso, esbravejante e enraivecido, muitos dos seus
semelhantes!
Em Arrais
Ançã, como aliás em todos os verdadeiros heróis, o coração era
o centro e o fulcro da sua mais portentosa energia. E era
ainda o seu coração quem gritava, na iminência do perigo, a
primeira voz de comando, à qual sempre correspondiam os mais
altos e inexcedíveis feitos de heroísmo e de bravura. E, por
isso, podemos seguramente afirmar que foi com o coração que o
velho Arrais, afinal, dominou e venceu o mar!... E o mar
então, sempre vencido, ululante de fúria e de vingança, um
dia, traiçoeiramente, rouba-lhe um filho...
E, pela
primeira vez, o velho e gloriosíssimo Arrais ficou vencido!
Américo
Teles |