Entrevista a Alexandre Quintanilha, in revista "PÚBLICA", Dez. 2003

Entrevista a Alexandre Quintanilha

A Organização das Nações Unidas (ONU) decidiu recentemente adiar por mais dois anos a discussão da proposta do governo dos EUA para banir a clonagem. O que achou desta opção?

Acho bem. Ainda é cedo para tomar uma decisão. Esperemos que nestes dois anos, a questão da clonagem seja dessacralizada e desmontada em termos de riscos, perigos e benefícios.

Como?

Através de informação. As pessoas têm de compreender que os argumentos que são levantados não colhem quando nós fazemos perguntas realistas. E podemos discutir várias, o direito à identidade, o ser contra a natureza, o medo dos exércitos de clones.

Acha que são medos baseados na ignorância?

Não só. Isso é um argumento um bocado paternalista do ponto de vista dos cientistas. Pode também ter a ver com o mundo que não queremos que exista.

E, sendo um dos países que lidera esta investigação à volta da clonagem, como vê o facto da proposta de proibição partir precisamente dos EUA?

Não me admiro nada. O principal conselheiro do presidente Bush em questões de bioética tem vindo a pronunciar-se  contra a manipulação genética em humanos. Acha que o DNA é quase como a alma que andávamos à procura. É claro que é muito tentador dizer que eles são atrasados, mas também posso acreditar que eles adoptam uma determinada maneira de olhar para o mundo. Têm o direito de o fazer mas não de impor isso nem ao resto dos americanos nem ao resto do mundo.

Gostaria de ser clonado?

Não me importava de ser um clone. Como não me importava de ser africano, chinês, um bebé proveta…mas não quereria ser clonado.

Porquê?

Não me acho assim tão especial e também ainda não conheci ninguém que valesse a pena clonar. Todos tivemos enormes alegrias, enormes sofrimentos, perdemos pessoas ganhámos outras. Tudo isso cria a identidade. E que não está no ADN. As pessoas têm de perceber que clonar não significa criar alguém idêntico ou igual. Até o ADN é diferente. À medida que se envelhece cada uma das nossas células sofre milhares de alterações. O ADN de uma célula de um indivíduo aos 20 anos não é o mesmo do que tinha aos zero ou que vai ter aos 40.  

Mas o essencial permanece. A base é a mesma…

É. Há já crianças que nasceram nos Estados Unidos que têm ADN de duas mães e um do pai. Na minha percepção são clones. Foram buscar só um bocadinho do ADN mitocondrial mas, afinal, qual é a percentagem necessária para passar a ser um clone?

Para que poderia servir então a clonagem?

Posso dar dois exemplos. Um homem já com uma certa idade e que toda a sua família foi exterminada num campo de concentração. Os seus espermatozóides já não funcionam e desejaria deixar descendentes geneticamente relacionados com ele. Este homem teria alguma razão em pedir para ser clonado. Um outro exemplo é no caso de se tratar de um casal homossexual.

Seria abrir um precedente incrível…

Abre um mundo novo.

Um admirável mundo novo?

Ou assustador. Vai depender da maneira como isso for utilizado.

Quem é que vai controlar isso? Quem é que vai decidir se o homem que perdeu a família pode recorrer à clonagem?

Poderá ser uma coisa muito parecida com o que já existe na Holanda em relação à eutanásia. Precisa da opinião de três médicos. Podia ser um processo semelhante.

Uma junta médica?

Talvez. Um grupo de consulta, de aconselhamento. Mas que, no fim, se a tecnologia existisse, a decisão era dele. È como a questão do aborto.

Em Portugal, o aborto não é uma questão legal, a não ser em determinadas circunstâncias, mas toda a gente sabe que acontece. A clonagem pode acabar assim?

Provavelmente. Se continuar a ser proibida vai ser como tudo o resto. Em Portugal faz-se eutanásia, faz-se abortos. Não são poucos e até são fáceis. A clonagem vai existir num mercado paralelo se for proibida.

Por isso, aprova a clonagem reprodutiva…

Os motivos para fazer clonagem só são maus se o queremos não é um fim mas um meio. Cada ser é um fim em si. Não vejo diferença nenhuma em criar um ser novo por uma metodologia clássica ou outra., assistida ou não. Mas, para já, não sou a favor de uma liberalização da clonagem reprodutiva. Não por razões éticas mas por razões técnicas. A tecnologia ainda está muito longe de garantir algum tipo de qualidade. Podemos até chegar à conclusão de que a clonagem reprodutiva nos humanos não é possível ou que tem dificuldades que não podem ser ultrapassadas.

No caso da clonagem reprodutiva, essas duas pessoas que escolhem criar um ser novo não vão criar uma nova pessoa que mistura os genes dos dois, um filho, mas um “gémeo” idêntico de um deles…

Não tenho dúvidas que vai causar muitos transtornos. Como uma criança adoptada também pode causar numa família.

É a mesma coisa?

Não sei. Mas isso não quer dizer que um deve ser feito e o outro não. Estou convencido que o número de pessoas que se vai querer clonar vai ser infinitamente pequeno. Isto de um homem e uma mulher se juntarem para fazer filhos funciona em 90 por cento dos casos. Os outros 10 por cento podem adoptar, têm reprodução assistida…Quem é que vai querer clonar-se?

Não acha que está a considerar apenas o lado “bom”? O que alguns temem é a criação de exércitos de clones “maus”…

Há listas de espera de milhares de pessoas que querem clonar os seus animais de estimação. Isso será óptimo porque vão perceber que o clone do periquito, ou o cão ou o gato que morreu, não vai ser o mesmo animal. Quando essa mensagem passar, o desejo de fazer exércitos passa a ser não realizável. E não podemos esquecer que já é possível fazer exércitos. A clonagem cultural é a coisa mais poderosa que temos para fazer clones. No século passado tivemos um Estaline e um Hitler que mataram cem milhões de pessoas na Europa. Porque uns acreditavam que a raça ariana era a única e pura. Outros que a ditadura do proletariado é que ia salvar o mundo. Não foi necessário clonagem genética. Foi clonagem na cabeça. Estou muito mais preocupado com a clonagem cultural.

Quer dizer que já há milhares de clones da pior espécie?

Há. E da melhor também. Por exemplo, um dos grandes dramas em África são as crianças que foram educadas na guerra. O número de jovens que foi “clonado” para matar é muito significativo e perturbante. Vai demorar anos a reparar isso.

Com a clonagem genética seriam criados para isso, clonados à nascença…

Não sei o que é pior.

Na religião também há essa “clonagem cultural”? A questão da fé que une milhões de pessoas…

A fé tem a ver com clonagem mental. Porque se acredita sem questionar. O que é que há de melhor para definir clonagem cultural do que a fé? Todos acreditam na mesma coisa. A Igreja Católica durante a inquisição matou, exterminou… Hoje os mais agressivos serão os islâmicos que têm regras absolutamente desumanas.

E não tem medo que a clonagem reprodutiva possa ter os mesmos efeitos?

Aceitamos que os outros acreditem noutras coisas. É porque toleramos a clonagem cultural que eu acho que devíamos tolerar a clonagem genética. A manipulação da informação, a publicidade são formas de clonagem cultural. As duas formas de clonagem têm perigos. A eugenia ( aplicação racional das leis da genética à reprodução humana com o fim de obter melhoria das estirpes) já existe. O que são as quotas de imigrantes impostas pelos governos ou limpeza étnicas senão formas de eugenia?

Mas não será mais fácil fazer um clone cultural a partir de um clone genético? Para uma seita formar o exército?

Não sei. Já houve seitas que não necessitaram de clonagem genética para fazer isso. E o que é que a gente vai fazer? Proibir? Alguma vez o proibir funcionou?

Acha que, daqui a dois anos, a ONU irá aprovar a proposta de proibição?

Não acredito. Se calhar vão fazer mais uma moratória, mais dois ou três anos porque ainda não têm informação suficiente.

Há, portanto, que investir nesta descoberta?

Essa é outra questão. Há muitos outros problemas no mundo muito mais interessantes. Hoje 90 por cento do dinheiro que se investe em saúde é para tratar os problemas de dez por cento da população mundial.

Os verdadeiros problemas quais são?

A Sida, a malária, a tuberculose, a cólera, doenças cardiovasculares, as doenças de quem come a mais e de quem não tem nutrição suficiente. Comparando com estes problemas a clonagem não tem interesse nenhum.

MAS acredita-se que alguns destes problemas de saúde podem ser atenuados com a clonagem terapêutica…

A clonagem terapêutica pode vir a trazer resultados muito interessantes. Mas também aí eu imagino que vai ser para tratar dos problemas de apenas dez por cento da população do mundo. Na clonagem terapêutica alguns invocam o problema de estarmos a pegar numa célula que tem a potencialidade de vir a ser um embrião. Isso não é claro. Há mecanismos químicos de impedir isso. Acho curioso que as pessoas que estão nas clínicas de reprodução assistida  sejam muitas vezes completamente contra a clonagem.

Por que pode acabar por significar concorrência?

É isso mesmo. O andarmos a manipular a natureza pode voltar a levantar as questões sobre se temos o direito de andar a fazer a reprodução medicamente assistida. Quem é que nos dá esse direito? A questão da clonagem levanta essas questões todas outra vez.

Há quem argumente que a clonagem é algo contra a natureza…

Toda a medicina é contra a natureza. Porque é que se fazem transplantes? Porque se vacina alguém? Estamos a impedir que a natureza vá eliminando as pessoas que são mais fracas. Tudo isso é interferir com a natureza…

Outros, como referiu falam de um problema de dignidade…

Quando nasceu o primeiro bebé proveta também se discutiu isso. E agora há dezenas de milhares de meninos e meninas tubo de ensaio que ninguém trata de maneira diferente. A dignidade de qualquer ser humano depende da maneira como olhamos para ele. Não é uma coisa definida por ADN. Não há um gene da dignidade.

Acha que já existe, em algum lugar, um clone humano?

Não acredito. Os grupos que dizem que o fizeram não têm credibilidade científica. Mas o facto de não acreditar não quer dizer que não exista. 

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Inserido em 20-04-2018