Alberto Barros, A desconfiança não pode travar a luta contra a doença, in: "PÚBLICO". Ano XIII, n.º 4685, 19/01/2003, pág. 3.

A desconfiança não pode travar a luta contra a doença


A OPINIÃO DE ALBERTO BARROS

Os riscos de desvios perversos que os avanços científicos comportam não devem ser a imagem mais forte que chega à sociedade e ao poder legislativo.


A evolução científica e téc­nica registada na biologia da reprodução, com uma rapidez simultaneamente maravilhosa e alarmante, tem provocado na so­ciedade sentimentos de esperança, entusiasmo e aplauso, mas também de medo e desconfiança. O paradigma desta situação é a clonagem, que demons­tra a possibilidade de uma célula somática (do grego “soma”— corpo) adul­ta, diferenciada, readquirira totipotencialidade de uma célula embrionária, após a integração num ovócito previamente destituído do seu nú­cleo, destruindo o conceito consolidadíssimo de que uma célula diferenciada (isto é, uma célula “especialista” numa determinada função) não poderia regressará indiferenciação.

Se do ponto de vista da evolução do conhe­cimento (da “pureza científica”) a importância positiva deste passo é inquestionável, já algumas notícias (ou acontecimentos) posteriores assumem um significado bem distinto.

Os anúncios da intenção e da prática da clonagem reprodutiva constituem manifestações de imprudência e de irresponsabilidade, pela ausência de argumentos científicos que sustentem a segurança desta prática. Pelo contrário, as preocupações teóricas suscitadas pela utilização de uma célula somática “envelhecida”, que acumulou sucessivas alterações ao nível da sua informação genética, têm-se concretizado, total ou parcialmente, nos animais clonados (envelhecimento precoce, maior risco de malformações, doenças degenerativas e cancro, ...).

Por outro lado, se o objectivo da clonagem é obter uma copia do próprio indivíduo é importante esclarecer que, se nem o “eu” é totalmente reproduzível (pois a nossa constituição genética sofre alterações ao longo da vida), muito menos a “circunstância” o será, pelo que a interacção genoma (totalidade da informação genética)! ambiente gerará um resultado distinto.

Perspectiva diferente merece a designada clonagem terapêutica, exactamente porque a possibilidade técnica de fazer regressar uma célula so­mática adulta à indiferenciação embrionária abre um potencial enorme no aumento da eficácia dos transplantes de tecidos e órgãos e no tratamento de muitas doenças graves, nomeadamente do sistema nervoso. Isto através da possibilidade de — sobretudo após o conhecimento do genoma humano ultrapassar o nível anatómico, estrutu­ral, e atingir o plano do entendimento funcional — orientar a diferenciação (“especialização”) das células, ou introduzir um gene especifico, no sentido terapêutico desejado.

Esta prática, por cumprir fielmente um dos escopos fundamentais da medicina —tratar os doentes —, não deve ser coarctada, embora os respectivos projectos de investigação devam ser criteriosamente definidos.

Os riscos inevitáveis de desvios perversos que todos os avanços científicos e técnicos comportam não devem constituir a imagem mais forte que chega à sociedade e, sobretudo, ao poder legislativo. Este tem a responsabilidade de não se deixar envolver por posições ético-filosóficas excessivas que, prevalecendo, poderão resultar na indignidade de não fazermos o que será possível para diminuir a doença, não no sentido negativo e pejorativo da manipulação perseguindo a eugenia, mas com a nobreza de quem tem como obrigação fazer com que as próximas gerações possam ter menos doenças e menos graves.. PROF. CATEDRÁTICO DE GENÉTICA, FACULDADE DE MEDICINA DO PORTO

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Inserido em 20-04-2018