Como tudo quanto existe à superfície da
Terra, e à semelhança do Convento de Mafra, tudo tem a sua história,
ainda que nem tudo entre no domínio da História, quando os historiadores
entendem não ser digno de ficar para a História. Este livro que
ora reproduzimos, se pudesse falar, teria muito que contar. Não este
exemplar em particular,
mas muito provavelmente algum irmão, serviu para que outros
pudessem contar a sua versão do memorial do Convento, pois que os dados
nele registados foram utilizados por alguém que os aproveitou para que
uma narradora «inculta», porque não sabia ler nem escrever, mas de
elevada cultura, por capacidades ocultas que só ela possuía. Mas estas
são outras conversas que agora não são para aqui chamadas, porque não é
da Blimunda que falamos; o
protagonista desta história é o exemplar que nos acompanhou durante três
semanas e que
tivemos de ressuscitar da humidade e escuridão de uma cave, onde
permaneceu
durante largos anos, não sei se tantos quantos durou a construção
do convento, mas certamente um elevadíssimo número, porque este, tal
como outros que lhe faziam companhia, se encontravam num deplorável
estado, digno de fazer dó a quem aprecia a companhia de bons livros.
Depois de todo o arrazoado preambular do
parágrafo anterior, vamos à história deste exemplar, um pequeno mas para
nós valioso livro, publicado em 1933, com as dimensões de 16,5x12
cm.
Certo dia dos começos deste ou finais do ano
anterior, já não posso precisar rigorosamente a data, porque os meus
neurónios já se encontram gastos devido a um ADN elevado (ADN =
Afastamento da Data de Nascimento), e, além do mais, a falta de rigor
cronológico não altera em nada o interesse deste verídica história,
entrou-me no café onde estava um amigo e colaborador deste espaço, onde
vou depositando para a comunidade alguns documentos com interesse.
Era ele, por que não dizer o seu nome e para que fique para a História, o amigo e colaborador meu homónimo, quase parecido nos
registos escritos do baptismo com o meu nome, mas com as palavras
trocadas, porque tem o José antes do Henrique; e, já agora, também com Neves, que só tem no
nome. Ao contrário de mim, que as tenho abundantemente no cabelo, que
perdeu o doirado acastanhado com a passagem do tempo, as Neves dele são
só no nome, porque na cabeça apenas lhe restam alguns vestígios do
cabelo.
Pois é! Entra-me no café o amigo José
Henrique Neves e diz-me:
– Professor, está interessado nuns livros
antigos?
– Se são livros, antigos ou modernos, já
sabe que estou sempre interessado. Sempre me dei bem com eles e
continuam a ser para mim uma excelente companhia, apesar das novas
tecnologias que, por mais avançadas que sejam, nunca os poderão
substituir. Onde é que encontrou esses livros?
– Uma familiar mudou-se do apartamento onde
vivia para um lar de terceira idade para professores. Desde há algum
tempo que tomo conta do apartamento em que ela vivia. Quase diariamente lá
vou, para abrir as janelas e ventilar a casa. Esta sua colega vai vender
o apartamento e necessita de esvaziá-lo. Ao entrar na cave, dei com uma
elevada quantidade de trastes e livros e revistas empilhados. Alguns
devem estar estragados pela humidade e anos decorridos. Quando abrimos
a porta, não se podia entrar. Era tal o grau de humidade e o cheiro
desagradável! Tivemos de comprar uma máscara para tapar a boca e o
nariz.
– Tivemos quem? Não foi só o amigo Henrique
Neves? Ou foi com mais alguém?
– Tive de pedir ajuda a amigos. Mas agora,
depois de arejada a cave, já se lá pode entrar sem problemas. Quer lá ir
comigo e ver o que poderá interessar-lhe? É a cinquenta metros daqui,
num apartamento em frente ao Grin's.
Arrumei a tralha: o computador e os livros
na pasta. Saímos do Convívio. Andámos cinquenta metros. Contornámos o
quarteirão. Em menos de cinco minutos estávamos em frente ao edifício.
Subimos as escadas para o hall de entrada. Descemos as escadas para a
cave. Breve hesitação, porque não dávamos com o interruptor. Acendemos a
luz. Demos com a porta. O meu quase homónimo meteu a chave na fechadura, deu a
volta e abriu a porta. Fomos atingidos por um odor picante, que nos
irritou a garganta e fez tossir. Uns apalpões na parede. Encontrámos o
interruptor. Acendeu-se a lâmpada. Na nossa frente, uma imagem
confrangedora: pilhas de jornais, revistas e livros, amontoados a um
canto, carregados de uma substância amarelada e bolorenta.
– Isto está num estado deplorável! –
exclamei.
– O que é que queria? Estão aqui fechados há
anos! E agora já não custa tanto aqui entrar. Já retirámos muita coisa
e o espaço foi ventilado. Só não mexemos nos livros. Não os quisemos pôr
no lixo sem que o professor lhes desse uma vista de olhos. Veja o que
lhe poderá interessar.
O aspecto era pouco convidativo a
mexer-lhes. Mas a curiosidade era superior. Fez-me vencer resistências.
Comecei a separá-los. Colecções completas de revistas publicadas na
década de 1910, todas encadernadas, mas com as capas a desfazerem-se e
as folhas de tal modo fragilizadas, que não ousei mexer-lhes com os
dedos.
– Há aqui material de muito valor, amigo
Henrique Neves. É pena que esteja neste estado. Nem sei se terá
recuperação.
– O professor separe o que lhe parecer
recuperável. Tenho o carro aqui ao lado. Arranjamos uns caixotes de
cartão e metemos o material na mala.
– Se eu levasse isto para casa, a mulher
moía-me a paciência. E com toda a razão! A solução é levar tudo para o
meu gabinete, na Secundária José Estêvão. Hei de descobrir a forma de
recuperar todo o material.
– Então vamos a isso. Separe o que lhe
interessa.
Aos poucos, com alguma relutância em
mexer-lhes – dariam jeito umas luvas de borracha que não possuía! –,
separei duas colecções completas mas em mau estado de uma revista que
desconhecia, publicada nos começos do século XX, o semanário "Branco e
Negro", dois exemplares iguais de um pequeno livro publicado em 1934 da
colecção «Monumentos de Portugal», duas colecções de uma revista de
cinema, do tempo em que ele ainda não falava, com as encadernações a
desfazerem-se aos bocados, uma curiosidade de índole militar destinada
ao «Zé tropa», de 1958, e
pouco mais.
– Os restantes, nem vale a pena
preocuparmo-nos. Estão num tal estado, com as folhas a desfazerem-se,
que não passam de cadáveres bolorentos. É tudo lixo. E vamos a ver se
consigo salvar o que vamos levar.
Ora os meus neurónios, que não estão
tão gastos quanto pensava há pouco, estão a devolver-me as imagens do dia em que
os livros entraram no meu gabinete. Estávamos em pleno inverno, nos
começos de Dezembro. Àquela hora do final do dia, já noite escura,
porque os dias de Inverno são pequenos, limitei-me a colocar a caixa de
cartão com as publicações maltratadas pelo tempo e humidade a um canto
da sala. Para adiantar o serviço dos dias seguintes, coloquei o
aquecimento no máximo e fechei a porta.
– A recuperação começará talvez na próxima
semana – disse eu para o amigo Henrique Neves. Estamos no fim da
semana, porque amanhã é Sábado e o fim de semana é para descansar. E
vamos lá a ver se para a semana consigo arranjar coragem para mexer
neles.
– O professor é que sabe. Eles agora são
seus!
A recuperação do material recolhido fez-se
aos poucos, por etapas, a partir da semana seguinte. Estávamos próximos
das férias de Natal. Coloquei cada exemplar no parapeito da ampla janela
que me ilumina durante o dia e lá os deixei a perder a
humidade. Quase diariamente, antes de começar o meu trabalho, tal um
médico que controla o estado do doente, ia vendo como
estavam os meus pacientes. A humidade estava a diminuir, ao mesmo tempo
que aumentava um bolor amarelado na superfície das capas e das lombadas.
Os doentes mantiveram-se em recuperação
durante semanas. Passaram as festividades do Natal. Acabaram-se as
férias. Novo período recomeçou, o segundo dos três que compõem o ano
lectivo. Munido de um pincel largo de
pelos macios, comprado numa loja das muitas chinesas que proliferam na
cidade de Aveiro, como em tantas outras localidades de Portugal, dei início à remoção dos bolores. Fora do gabinete,
evidentemente, fui
limpando cuidadosamente cada exemplar, com muito carinho, para que as
folhas se não desfizessem.
Com tudo liberto de
fungos, daqueles resíduos amarelentos e irritantes, empilhei os
exemplares em cima da tampa metálica que recobre os aparelhos de
reconversão de filmes, com que tenho recuperado para DVD os registos
fílmicos existentes na escola. A tampa metálica superior dos leitores de VHS tem ranhuras metálicas. Como os aparelhos se encontram
permanentemente em «stand-by», liberta-se deles um ligeiro calor, que
para o
nosso caso concreto funcionou perfeitamente como uma estufa de recuperação. Por
isso, os livros foram por mim empilhados por ordem crescente de tamanho, no
intervalo entre as duas ranhuras laterais, constituindo uma pirâmide
invertida, mais concretamente, uma espécie de mastaba bibliográfica. Os resultados
foram positivos. Ao fim de algum tempo de paciente
espera, os livros passaram de um estado deplorável a um estado
manuseável, ainda que necessitando sempre de algum cuidado.
A primeira recuperação é o exemplar que
agora está disponível na Internet, ou seja, o pequeno livro sobre a história do Convento de Mafra, da autoria de João Paulo Freire, «Da
Associação dos Archeólogos e do Instituto de Coimbra», e de
Carlos de Passos, «Da Academia de História de Madrid», publicado
em 1933 e impresso no Porto na «Litografia Nacional-Edições».
Proximamente, talvez os artigos do semanário "Branco e Negro"; mas só
aqueles que me pareçam apresentar maior interesse.
O que fizemos relativamente a esta versão
electrónica acerca do convento de Mafra?
Embora o original esteja em Times New Roman,
corpo 8 (ou talvez 6) e a um espaço,
tornando difícil a leitura, adoptámos na versão html o tipo de letra Arial
no tamanho 14 normal, com espaço duplo, para maior comodidade dos
leitores.
Aproveitámos os elementos decorativos
(tarjas e desenhos) das
páginas originais, mantendo-os nas mesmas posições relativas e mudámos as
notas de rodapé do final de cada página para o fim da página html,
dado que cada capítulo ocupa uma folha única, mantendo os indicadores de
mudança de página para correspondência com o original.
Salvo raras excepções, passámos o português para a forma actual, de
acordo com o correcto acordo ortográfico, sem ter em conta o
actual após 1990, que consideramos uma verdadeira aberração
e atentado ao nosso património linguístico.
Se viermos a conseguir os restantes 10
exemplares, talvez em alguma das nossas bibliotecas públicas, convertê-los-emos para html, para que esta valiosa e
interessante colecção fique acessível a toda a comunidade portuguesa.
Para facilidade de leitura das páginas nas
modernas tabletes, uma vez que nelas não existem as teclas [PgUp] e [PgDn]
e muito menos [Home] e [End], no final das páginas que tenham uma elevada quantidade de
informação, a tecla «Índice», em vez de remeter directamente para aquilo
que ela indica,
permite ao leitor ir para o início da página. Por sua vez, clicando no título do cabeçalho, acederá directamente à hierarquia superior, ou seja,
tem acesso ao índice de conteúdos.
A leitura horizontal, utilizando os botões de avanço ou recuo no final das páginas, permite
aceder às fotografias suplementares inseridas no meio da publicação, não indicadas no índice, quer na versão impressa, quer nesta
reconversão electrónica.
A visualização do apêndice fotográfico, com
40 imagens e uma vista panorâmica, apresenta dois tipos de leitura:
página a página, utilizando os botões de navegação horizontal, tal como
se estivéssemos a folhear o livro, e um desfile vertical das fotografias.
Este modo de visualização vertical é acedido através do ecrã colocado no canto superior direito da
página de apresentação.
O mais importante está referido. Esperemos que este trabalho de cerca de três
semanas seja do
inteiro agrado do leitor. Já agora, se encontrar alguma gralha, porque
este é bichinho difícil de erradicar, agradecemos a gentileza da
respectiva informação.
Aveiro, 27 de Maio de 2014
Henrique J. C. de Oliveira |