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A CAPELA REDONDA

por Frederico de Moura


A «Capela Redonda» com a sua cobertura adventícia.

QUEM entra em Vagos vindo do lado da Serra, topa à esquerda com uma capelinha encolhida à sombra rota de uma velha árvore, esclerosada e decrépita, onde uns ramos teimosos insistem em reverdescer, projectando na cal branca das paredes manchas movediças. Capela e árvore ajustam-se perfeitamente: uma com as paredes fendidas de alto a baixo exibe as agressões que o tempo lhe foi produzindo ao longo de quatro séculos, outra estadeando as deformações gotosas do seu tronco meio seco meio seco e retorcido lá tem ganas para dar seiva a uns ramos indecisos que resistem corajosamente à nortada rija que vem encanada pela depressão do Rio Boco fustigar-lhe as folhas desgrenhadas.

A capelita é de traça redonda, e ergue-se do chão como um cilindro, sugerindo, vista de longe, uma habitação castreja caiadinha de fresco e, se bem que encolhida na sua humildade, sem atavios nem corroborações arquitectónicas que lhe dêem nobreza, fica bem na paisagem e merece respeito. De junto dela desfruta-se um panorama almofadado de um verde-relva recortado por um braço macio de rio que borda nas margens meandros subtis. O povo chama-lhe a «Capela Redonda» ou a «Capela do Mártir» e vai lá às vezes acender uma lamparina no altar ou contemplar o Santo através dum postigo gradeado que existe à direita do portal.


A pequena construção tinha um telhado saboroso, que lembrava uma cobertura de palhota, mas onde a telha encanudada de indústria caseira, profusa de nuances que lhe vinham da irregularidade da cozedura e dos agravos das intempéries, ficava bem, não permitindo substituições. Sucede, no entanto, que, há dias, vieram uns homens que resolveram fazer no pequenino templo obras de restauro, que se impunham e que eram de agradecer, se essas obras não fossem tocar, nem ao de leve, na pureza impoluta daquela humildade arquitectónica. A verdade é que, ao que parece, não sucedeu assim, e o telhado — tão pitoresco e com tanto interesse — foi barbaramente substituído por um capacete oitavado de cimento, que lembra um funil invertido, dando à capelita redonda um ar de coreto, capaz de arrepiar o sentido estético dum crocodilo.

A pobre capelinha sofreu o ultraje resignadamente, aceitou a tampa inverosímil sem aumentar a barriga da parede a ameaçar uma ruína vingativa, aceitou a cobertura cinzenta sem um protesto controlável, porque os agressores, a título de prémio de consolação, puseram-lhe no cocuruto o pilarzito de pedra que rematava o telhado.

Tenho esperanças de que a coisa não fique assim e de que o bom-senso venha a repor as telhas humildes no lugar onde o cimento não tem cabida, deixando a pobre «Capelão Redonda» vestida de acordo com a sua idade, em sincronismo com a sua anciania, guardando o respeito com que é preciso tratar a velhice.

Sempre que vejo um pinta-monos de broxa em punho para investir com uma imagem — às vezes de feitura popular e de policromia ingénua — ou com um trolha munido de um balde de cal em face de uma cantaria lavrada, queimada pelo sol dos tempos, tenho um estremeção de pavor à ideia, que me assalta, de que a túnica vai ficar borrada com uma cor violenta e indiscreta e de que o moreno quente da cantaria vai ficar anemiado e lívido pela cal esparrinhada em profusão; e, do mesmo modo, quando o carpinteiro remendão investe com o arcaz de sacristia ou com os balaústres de um coro, empunhando a plaina niveladora e achatante, que, tudo arrasa, ou com a serra degoladora e cega, que tudo rutila, sem sombra de vacilação.
 

/ pág. 6 / Desta vez, foi a traça ingénua da «Capela Redonda» que sofreu o ultraje, foi a encolhida e tímida construção que aguentou em silêncio a modernização aviltante e resignadamente se deixou espoliar do seu telhado saboroso, aparecendo de cabeça rapada ao lado da sua velha companhia vegetal.

Os estorninhos, não sei se por lhes faltarem as telhas onde se agasalhavam, se por serem mais sensíveis à beleza do que os homens, entraram numa lamentação de funeral, esvoaçando aturdidos à roda do ignóbil funil e entoando a sua marcha fúnebre molhada de lágrimas.

Esperemos que o choro magoado das aves acorde os homens para o bom-gosto e para o bom-senso, já que, à prosa que aí fica, não é lícito atribuir qualidades de aliciação despertadora nem estímulos que conduzam ao respeito da beleza.

VAGOS, 12 de Novembro de 1957

Frederico de Moura 
In: “Litoral”, 30 de Novembro de 1957, Ano IV, N.º 165, pp. 1 e 6.

Era assim a «Capela Redonda» - Desenho de SILVÉRIO DA CONCEIÇÃO.

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20-04-2018