Cromos do litoral

Crónica de Luísa Schmidt  Imagens de Sofia Miguel Rosa
In: Rev. "Única" - "Expresso", nº 1640, 13/12/2003, pp. 94-98 

Duas zonas altamente sensíveis da costa são alvo de megaprojectos urbanísticos.

Facto 1: O litoral português encontra-se sujeito a violenta erosão. Sobretudo em algumas zonas onde o recuo da linha de costa chega a atingir cinco metros por ano.

Facto 2: À vulnerabilidade da nossa costa tem correspondido uma acelerada concentração populacional de todos os tipos — urbanísticos, industriais e turísticos — acompanhada por um conjunto de actividades que fragilizam mais ainda o litoral: extracção de areias, construção de estradas, descarga de esgotos...

Facto 3: Toda a tendência do ordenamento do território das últimas décadas não nos podia ser mais desfavorável perante o futuro que nos espera: um interior abandonado, presa fácil de incêndios; e um litoral apinhado de gente, justamente onde as fragilidades e riscos ambientais são maiores.

Facto 4: Em consequência das alterações climáticas, a subida do nível das águas do mar põe hoje em risco 67% da costa portuguesa, com destaque para a zona entre a foz do Douro e a Nazaré; e, no Algarve, entre o Ancão e o Guadiana (ver mapa).

Pois é justamente para essas duas áreas — onde a erosão ataca, a costa recua e o nível do mar sobe — que não param de se propor à aprovação novas e pesadas construções. A pergunta é inevitável: como é possível perante condições tão adversas e consensuais, serem sequer aventadas enormidades como as que se preparam de norte a sul para o litoral português?

Os casos concretos são eloquentes, estão longe de serem poucos, e têm em comum situarem-se em locais de enorme fragilidade. Vejamos apenas dois. 

O CASO DA MARINA DA BARRA NA RIA DE AVEIRO

A Ria de Aveiro é uma zona classificada por inúmeras figuras jurídicas nacionais e internacionais. É Reserva Ecológica Nacional (REN), é Zona de Protecção Especial (ZPE) no âmbito da Directiva das Aves, está abrangida pela Directiva Habitats, é Sítio de Rede Natura 2000. Só não é ainda área protegida por causa da enorme carga de poluição industrial que recebeu durante décadas. Contudo, devido ao processo de desindustrialização e a alguma modernização e melhoria no sistema de esgotos, até está proposta para o estatuto de área protegida.

Ora, exactamente neste meio, mais frágil do que uma renda de bilros antiga, pretende-se agora instalar um complexo imobiliário de dimensões colossais. Tão grande que, já não bastando a terra e as margens, vai mesmo ria adentro. Parece absurdo mas é real. São 58 hectares de sapal roubados literalmente à ria, através de um aterro, nos quais se quer instalar 130 moradias, 420 apartamentos, dois hotéis, estacionamento para 1756 carros e uma marina para 850 barcos.

Os impactos são óbvios: destrói diversidade biológica, aumenta a pressão humana quase para o dobro (em tudo o que isso implica de abastecimento de água, de rede de esgotos, de pressão no cordão dunar, de pressão rodoviária, etc.), hipoteca a paisagem no canal de Mira e faz uma inaceitável privatização de domínio público.

O historial deste projecto é eloquente. Apresentado em 1992, numa primeira versão mais reduzida, começa por ser chumbado por uma comissão de avaliação do impacto ambiental, a qual viabilizou apenas uma marina e respectivas infra-estruturas desde que sofressem uma redução de 50%. Dez anos mais tarde, a pretensão volta à carga nos mesmos moldes e o então ministro do Ambiente, Isaltino Morais, voltou a recomendar a sua reformulação.

Mas a experiência ensina aos promotores que um erro hoje pode ser um sucesso amanhã. É só questão de teimar. E assim foi. O projecto, agora de novo apresentado, é idêntico aos anteriores, contraria todos os planos, estudos e leis aprovados e em vigor. O Plano Regional de Ordenamento do Território do Centro Litoral (PROTCL), aprovado em 1996, opõe-se explicitamente ao «alastramento de novos centros urbanos naquela faixa costeira», dando prioridade à recuperação e requalificação do urbano existente. Em 1999, O Plano de Ordenamento da Orla Costeira (POOC) sublinha a excessiva ocupação da Barra de Aveiro durante o Verão e alerta para a necessidade de a proteger.

Existe ainda um Plano Intermunicipal das Margens da Ria, que consagra estratégias de animação, prevendo postos de amarração para barcos, mas tudo numa dimensão restrita. Uma marina não tem de trazer sempre a reboque o carrossel imobiliário do costume.

Um projecto como o que foi apresentado e levado a discussão pública não deveria sequer ter sido aceite ou dado entrada em qualquer departamento oficial. Pela simples razão que atinge uma zona frágil em recuo e infringe descaradamente disposições legais nacionais e internacionais. Será inevitável chumbá-lo mais uma vez, mas podia-se ter poupado muita chatice, despesa e tempo recusando-o liminarmente.

O CASO DOS PROJECTOS DO ALGARVE

Outro caso é o Algarve, que continua a ser o mais revoltante exemplo de irracionalidade ambiental e da baixa cultura dos promotores turísticos e imobiliários. Para exemplificar o actual desbragamento, refiram-se só alguns dos projectos que se preparam em zonas protegidas, muitos dos quais se julgavam já enterrados.


Litoral do Algarve: novos projectos voltam a não respeitar áreas de protecção ambiental.

O projecto Vila Sol Ancão, entre Vale de Lobo e a Quinta do Lago, pretende dois campos de golfe, aldeamento e hotel numa zona de duna e lagoa costeira. Tudo em pleno Parque Natural da Ria Formosa e contra o Plano de Ordenamento da Orla Costeira (Vilamoura-Vila Real de Santo António), o qual há mais de um ano está pronto, discutido e à espera de ser aprovado. Imaginam-se as razões...

O velho empreendimento VerdeLago, em Altura (e em largura, porque a extensão é  enorme), ressuscita os famigerados projectos estruturantes de 1995. Aldeamento, moradias, hotel, campo de golfe... Quase tudo no Parque da Ria Formosa e em Rede Natura.

O empreendimento Almada de Ouro — com 2800 camas, campo de golfe e porto de recreio, em Rede Natura e sobre o estuário do Guadiana — teve uma aprovação altamente discutível, depois de uma comissão de avaliação de impacto ambiental o ter vetado e face aos resultados negativos do próprio estudo de impacto ambiental.

É caso para perguntar: se os técnicos do Instituto de Conservação da Natureza (ICN) servem só para encher papel com letras e números, por que não se entrega a protecção ambiental do país ao clube dos promotores imobiliários?

E estes são só alguns dos inúmeros projectos para o Algarve que já deram entrada no enigmático CALPTE (Centro de Apoio ao Licenciamento de Projectos Turísticos Estruturantes), uma invenção recente para aligeirar processos.

Portugal tem tido sempre uma atitude desleal para com o ambiente: gosta de encostar a consciência à almofada legislativa e, enquanto dorme, deixa que todos os interesses façam o que quiserem fazer. Mesmo que isso custe estragar a nossa maior riqueza: o capital ambiental português.

Tudo quanto afecte ou não desenvolva a qualidade ambiental não só nos mata a mina de ouro como asfixia o único broncodilatador da economia asmática do país. Como é possível, então, que em nome do turismo e do desenvolvimento se apresentem requerimentos à Administração Pública pedindo licença para atropelar o ambiente — e sobretudo quando se trata da zona ambientalmente mais frágil de todo o país: o litoral?!

A moral de todas estas histórias é a ganância do costume... Mas o momento actual é especialmente perigoso e exige muita lucidez: a crise económica deixou o país carente de investimento e de acção. A opinião pública anseia pela criação de qualquer coisa, seja ela o que for; e então se prometer empregos...

A conservação da Natureza — caso existisse e tivesse estratégia — bem poderia criá-los, mas de conservação e conversação está toda a gente farta e, agora que o dinheiro falta, parece que até mesmo o «crime» volta a ser reconsiderado como uma saída.

Uma coisa é certa: o litoral português anda a ser engolido pela erosão. Os promotores imobiliários insistem em edificar sobre ele. Será que têm dados diferentes dos cientistas? Não. Os prédios são para vender a retalho, e quando todo aquele casario tiver os «pés» dentro de água já não serão eles que terão de clamar junto do Governo pelas caríssimas obras de protecção costeira, de sempre limitada eficácia e altíssimo preço. Um preço que todos cá vamos pagar, enquanto os promotores, no seu «offshore»... lá vão, cantando e rindo.


Inaceitável

É inaceitável. No momento em que o asfixiado litoral algarvio procura o reequilíbrio com o seu interior rural — consagrado aliás por inúmeros projectos de desenvolvimento local sustentável — eis que chega um projecto a dar cabo de tudo isto.

A Rede Eléctrica Nacional precisa de criar uma auto-estrada de «gigantones» de alta tensão entre Tunes e Estói, para levar mais energia para o Algarve. Mas por onde fazer passar esse trajecto de grande impacto ambiental e paisagístico? Duas alternativas se perfilavam: fazê-lo seguir ao longo da Via do Infante (a proposta de traçado Sul), ou rasgar toda a paisagem e valor ambiental da serra do Caldeirão, espezinhando sítios de Rede Natura e violando o Plano Regional de Ordenamento do Território do Algarve (PROTAL) (traçado Norte).

A escolha não está ainda definitivamente tomada, e sabe-se que o Instituto de Conservação da Natureza (ICN) e a Direcção Regional do Ambiente do Algarve deram parecer negativo ao traçado Norte. Teme-se, contudo, que o traçado venha a ser ditado pelas razões do costume: os soberanos interesses dos aldeamentos do Baixo Algarve já se organizaram para pressionar o Governo a pôr os «gigantones» com mais de 50 metros de altura lá para as brenhas da serra que julgam deserta ou habitada apenas por uns aldeões rústicos.

É certo que a decisão está adiada e foi pedido pela Direcção-Geral da Energia um estudo económico sobre o caso. Mas de uma coisa não há dúvida: não é estragando o bom que resta que se salva o mau que existe.

NOTA: Deu entrada no ICN um projecto para a Boca do Rio, entre Salema e Burgau, em pleno Parque do Sudoeste Alentejano. É inaceitável que chegue sequer a ser apresentado um projecto destes quando o plano de ordenamento do Parque define o lugar como interdito à construção. Pior ainda, que o projecto vá directamente ao presidente do ICN, sem passar pelos técnicos.


ALERTA

A frágil restinga de Tróia tem óbvios limites de carga de edificação e conta já com algumas ilegalidades, como acontece na Soltroia. O futuro daquele frágil areal continua suspenso do mistério científico que é o estuário do Sado.

Foi em 1996 que o então ministro do Plano, João Cravinho, desencravou o sarilho Torralta com a Sonae pelo preço de uma autorização para que o grupo económico construísse ali mais do que o consentido pelo Plano Regional de Ordenamento do Território do Alentejo Litoral (PROTALi): ao todo 15 mil camas, ou seja, sete vezes e meia o que já lá existia. As críticas choveram e a apreensão foi grande entre técnicos e cientistas. A Sonae, entretanto, garantiu todos os cuidados ambientais e entregou o plano de urbanização a técnicos competentes, e a avaliação de impacto ambiental a cientistas de renome.

Contudo, quando de repente surge no concreto o actual Plano de Pormenor para a UNOP1, o gato escondido mostrou o rabo de fora. À revelia do Plano de Urbanização inicial, os índices de construção acordados foram ultrapassados, incluindo edificações em plena Reserva Ecológica Nacional (REN). Há de tudo: implantam-se em cima das dunas blocos de apartamentos em banda com quatro pisos de altura, ocupa-se domínio público marítimo e escavam-se estacionamentos subterrâneos em zonas insuficientemente conhecidas do ponto de vista geológico e para as quais se recomendaria a mais elementar prudência.

Esta história soa familiar. De início, tudo bem; chegam as obras e aqui vai disto... Espera-se que o Estado não enfie mais uma vez o barrete ao interesse público.

NOTA: Bem podem as torres de Alcântara ser peças lindas desenhadas por Siza Vieira. A questão é que não se põem prédios numa cidade como quem põe cálices de vinho do Porto numa bandeja. Já sabemos que a autarquia gosta de jogar e gosta de fazer «bluff». Mas trata-se de uma cidade, e os cidadãos querem ver o jogo. Não vamos largar esta «novela».


Aprovado

O Movimento Pró-Criação da Reserva do Mindelo é um exemplo de persistência a ser sublinhado. Quando as urbanizações pretendiam liquidar definitivamente a zona, um grupo de cidadãos reagiu, juntou-se, lutou e conduziu o processo de forma dinâmica, levando-o até à Assembleia da República. Aí, apesar da escrupulosa fundamentação científica dos argumentos, muita gente se encolheu. Contudo, conseguiu-se que o projecto da reserva se encaminhasse para um final feliz: a AR aprovou uma resolução recomendando ao Governo que efectue estudos indispensáveis, consulte as autoridades locais e faça um plano de ordenamento. Ou seja, que crie a Reserva do Mindelo. Agora que os estudos estão feitos e as autoridades locais já manifestaram o seu empenho, só falta ao Governo portar-se à altura.

NOTA: Referência positiva para a nova equipa do Ministério da Ciência e do Ensino Superior que repôs o acesso gratuito aos dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) para cientistas e investigadores.

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Actualizado em
20-04-2018