Duas zonas
altamente sensíveis da costa são alvo de megaprojectos urbanísticos.
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Facto 1: O
litoral português encontra-se sujeito a violenta erosão.
Sobretudo em algumas zonas onde o recuo da linha de costa
chega a atingir cinco metros por ano.
Facto 2: À
vulnerabilidade da nossa costa tem correspondido uma acelerada
concentração populacional de todos os tipos — urbanísticos,
industriais e turísticos — acompanhada por um conjunto de
actividades que fragilizam mais ainda o litoral: extracção
de areias, construção de estradas, descarga de esgotos...
Facto 3:
Toda a tendência do ordenamento do território das últimas décadas
não nos podia ser mais desfavorável perante o futuro que nos
espera: um interior abandonado, presa fácil de incêndios; e
um litoral apinhado de gente, justamente onde as fragilidades
e riscos ambientais são maiores.
Facto 4: Em
consequência das alterações climáticas, a subida do nível
das águas do mar põe hoje em risco 67% da costa portuguesa,
com destaque para a zona entre a foz do Douro e a Nazaré; e,
no Algarve, entre o Ancão e o Guadiana (ver mapa).
Pois é
justamente para essas duas áreas — onde a erosão ataca, a
costa recua e o nível do mar sobe — que não param de se
propor à aprovação novas e pesadas construções. A
pergunta é inevitável: como é possível perante condições
tão adversas e consensuais, serem sequer aventadas
enormidades como as que se preparam de norte a sul para o
litoral português? |
Os casos
concretos são eloquentes, estão longe de serem poucos, e têm
em comum situarem-se em locais de enorme fragilidade. Vejamos
apenas dois.
O CASO DA
MARINA DA BARRA NA RIA DE AVEIRO
A Ria de
Aveiro é uma zona classificada por inúmeras figuras jurídicas
nacionais e internacionais. É Reserva Ecológica Nacional (REN),
é Zona de Protecção Especial (ZPE) no âmbito da Directiva
das Aves, está abrangida pela Directiva Habitats, é Sítio
de Rede Natura 2000. Só não é ainda área protegida por
causa da enorme carga de poluição industrial que recebeu
durante décadas. Contudo, devido ao processo de
desindustrialização e a alguma modernização e melhoria no
sistema de esgotos, até está proposta para o estatuto de área
protegida.
Ora,
exactamente neste meio, mais frágil do que uma renda de
bilros antiga, pretende-se agora instalar um complexo imobiliário
de dimensões colossais. Tão grande que, já não bastando a
terra e as margens, vai mesmo ria adentro. Parece absurdo mas
é real. São 58 hectares de sapal roubados literalmente à
ria, através de um aterro, nos quais se quer instalar 130
moradias, 420 apartamentos, dois hotéis, estacionamento para
1756 carros e uma marina para 850 barcos.
Os impactos
são óbvios: destrói diversidade biológica, aumenta a pressão
humana quase para o dobro (em tudo o que isso implica de
abastecimento de água, de rede de esgotos, de pressão no
cordão dunar, de pressão rodoviária, etc.), hipoteca a
paisagem no canal de Mira e faz uma inaceitável privatização
de domínio público.
O historial
deste projecto é eloquente. Apresentado em 1992, numa
primeira versão mais reduzida, começa por ser chumbado por
uma comissão de avaliação do impacto ambiental, a qual
viabilizou apenas uma marina e respectivas infra-estruturas
desde que sofressem uma redução de 50%. Dez anos mais tarde,
a pretensão volta à carga nos mesmos moldes e o então
ministro do Ambiente, Isaltino Morais, voltou a recomendar a
sua reformulação.
Mas a experiência
ensina aos promotores que um erro hoje pode ser um sucesso
amanhã. É só questão de teimar. E assim foi. O projecto,
agora de novo apresentado, é idêntico aos anteriores,
contraria todos os planos, estudos e leis aprovados e em
vigor. O Plano Regional de Ordenamento do Território do
Centro Litoral (PROTCL), aprovado em 1996, opõe-se
explicitamente ao «alastramento de novos centros urbanos
naquela faixa costeira», dando prioridade à recuperação e
requalificação do urbano existente. Em 1999, O Plano de
Ordenamento da Orla Costeira (POOC) sublinha a excessiva ocupação
da Barra de Aveiro durante o Verão e alerta para a
necessidade de a proteger.
Existe ainda
um Plano Intermunicipal das Margens da Ria, que consagra
estratégias de animação, prevendo postos de amarração
para barcos, mas tudo numa dimensão restrita. Uma marina não
tem de trazer sempre a reboque o carrossel imobiliário do
costume.
Um projecto
como o que foi apresentado e levado a discussão pública não
deveria sequer ter sido aceite ou dado entrada em qualquer
departamento oficial. Pela simples razão que atinge uma zona
frágil em recuo e infringe descaradamente disposições
legais nacionais e internacionais. Será inevitável chumbá-lo
mais uma vez, mas podia-se ter poupado muita chatice, despesa
e tempo recusando-o liminarmente.
O CASO DOS
PROJECTOS DO ALGARVE
Outro caso
é o Algarve, que continua a ser o mais revoltante exemplo de
irracionalidade ambiental e da baixa cultura dos promotores
turísticos e imobiliários. Para exemplificar o actual
desbragamento, refiram-se só alguns dos projectos que se
preparam em zonas protegidas, muitos dos quais se julgavam já
enterrados.
Litoral do Algarve: novos
projectos voltam a não respeitar áreas de protecção
ambiental.
O projecto
Vila Sol Ancão, entre Vale de Lobo e a Quinta do Lago,
pretende dois campos de golfe, aldeamento e hotel numa zona de
duna e lagoa costeira. Tudo em pleno Parque Natural da Ria
Formosa e contra o Plano de Ordenamento da Orla Costeira (Vilamoura-Vila
Real de Santo António), o qual há mais de um ano está
pronto, discutido e à espera de ser aprovado. Imaginam-se as
razões...
O velho
empreendimento VerdeLago, em Altura (e em largura, porque a
extensão é enorme),
ressuscita os famigerados projectos estruturantes de 1995.
Aldeamento, moradias, hotel, campo de golfe... Quase tudo no
Parque da Ria Formosa e em Rede Natura.
O
empreendimento Almada de Ouro — com 2800 camas, campo de
golfe e porto de recreio, em Rede Natura e sobre o estuário
do Guadiana — teve uma aprovação altamente discutível,
depois de uma comissão de avaliação de impacto ambiental o
ter vetado e face aos resultados negativos do próprio estudo
de impacto ambiental.
É caso para
perguntar: se os técnicos do Instituto de Conservação da
Natureza (ICN) servem só para encher papel com letras e números,
por que não se entrega a protecção ambiental do país ao
clube dos promotores imobiliários?
E estes são
só alguns dos inúmeros projectos para o Algarve que já
deram entrada no enigmático CALPTE (Centro de Apoio ao
Licenciamento de Projectos Turísticos Estruturantes), uma
invenção recente para aligeirar processos.
Portugal tem
tido sempre uma atitude desleal para com o ambiente: gosta de
encostar a consciência à almofada legislativa e, enquanto
dorme, deixa que todos os interesses façam o que quiserem
fazer. Mesmo que isso custe estragar a nossa maior riqueza: o
capital ambiental português.
Tudo quanto
afecte ou não desenvolva a qualidade ambiental não só nos
mata a mina de ouro como asfixia o único broncodilatador da
economia asmática do país. Como é possível, então, que em
nome do turismo e do desenvolvimento se apresentem
requerimentos à Administração Pública pedindo licença
para atropelar o ambiente — e sobretudo quando se trata da
zona ambientalmente mais frágil de todo o país: o litoral?!
A moral de
todas estas histórias é a ganância do costume... Mas o
momento actual é especialmente perigoso e exige muita
lucidez: a crise económica deixou o país carente de
investimento e de acção. A opinião pública anseia pela
criação de qualquer coisa, seja ela o que for; e então se
prometer empregos...
A conservação
da Natureza — caso existisse e tivesse estratégia — bem
poderia criá-los, mas de conservação e conversação está
toda a gente farta e, agora que o dinheiro falta, parece que
até mesmo o «crime» volta a ser reconsiderado como uma saída.
Uma coisa é
certa: o litoral português anda a ser engolido pela erosão.
Os promotores imobiliários insistem em edificar sobre ele.
Será que têm dados diferentes dos cientistas? Não. Os prédios
são para vender a retalho, e quando todo aquele casario tiver
os «pés» dentro de água já não serão eles que terão de
clamar junto do Governo pelas caríssimas obras de protecção
costeira, de sempre limitada eficácia e altíssimo preço. Um
preço que todos cá vamos pagar, enquanto os promotores, no
seu «offshore»... lá vão, cantando e rindo.
Inaceitável
É inaceitável.
No momento em que o asfixiado litoral algarvio procura o
reequilíbrio com o seu interior rural — consagrado aliás por inúmeros projectos de
desenvolvimento local sustentável — eis que chega um
projecto a dar cabo de tudo isto.
A Rede Eléctrica
Nacional precisa de criar uma auto-estrada de «gigantones»
de alta tensão entre Tunes e Estói, para levar mais energia
para o Algarve. Mas por onde fazer passar esse trajecto de
grande impacto ambiental e paisagístico? Duas alternativas se
perfilavam: fazê-lo seguir ao longo da Via do Infante (a
proposta de traçado Sul), ou rasgar toda a paisagem e valor
ambiental da serra do Caldeirão, espezinhando sítios de Rede
Natura e violando o Plano Regional de Ordenamento do Território
do Algarve (PROTAL) (traçado Norte).
A escolha não
está ainda definitivamente tomada, e sabe-se que o Instituto
de Conservação da Natureza (ICN) e a Direcção Regional do
Ambiente do Algarve deram parecer negativo ao traçado Norte.
Teme-se, contudo, que o traçado venha a ser ditado pelas razões
do costume: os soberanos interesses dos aldeamentos do Baixo
Algarve já se organizaram para pressionar o Governo a pôr os
«gigantones» com mais de 50 metros de altura lá para as
brenhas da serra que julgam deserta ou habitada apenas por uns
aldeões rústicos.
É certo que
a decisão está adiada e foi pedido pela Direcção-Geral da
Energia um estudo económico sobre o caso. Mas de uma coisa não
há dúvida: não é estragando o bom que resta que se salva o
mau que existe.
NOTA: Deu
entrada no ICN um projecto para a Boca do Rio, entre Salema e
Burgau, em pleno Parque do Sudoeste Alentejano. É inaceitável
que chegue sequer a ser apresentado um projecto destes quando
o plano de ordenamento do Parque define o lugar como interdito
à construção. Pior ainda, que o projecto vá directamente
ao presidente do ICN, sem passar pelos técnicos.
ALERTA
A frágil
restinga de Tróia tem óbvios limites de carga de edificação
e conta já com algumas ilegalidades, como acontece na
Soltroia. O futuro daquele frágil areal continua suspenso do
mistério científico que é o estuário do Sado.
Foi em 1996
que o então ministro do Plano, João Cravinho, desencravou o
sarilho Torralta com a Sonae pelo preço de uma autorização
para que o grupo económico construísse ali mais do que o
consentido pelo Plano Regional de Ordenamento do Território
do Alentejo Litoral (PROTALi): ao todo 15 mil camas, ou seja,
sete vezes e meia o que já lá existia. As críticas choveram
e a apreensão foi grande entre técnicos e cientistas. A
Sonae, entretanto, garantiu todos os cuidados ambientais e
entregou o plano de urbanização a técnicos competentes, e a
avaliação de impacto ambiental a cientistas de renome.
Contudo,
quando de repente surge no concreto o actual Plano de Pormenor
para a UNOP1, o gato escondido mostrou o rabo de fora. À
revelia do Plano de Urbanização inicial, os índices de
construção acordados foram ultrapassados, incluindo edificações
em plena Reserva Ecológica Nacional (REN). Há de tudo:
implantam-se em cima das dunas blocos de apartamentos em banda
com quatro pisos de altura, ocupa-se domínio público marítimo
e escavam-se estacionamentos subterrâneos em zonas
insuficientemente conhecidas do ponto de vista geológico e
para as quais se recomendaria a mais elementar prudência.
Esta história
soa familiar. De início, tudo bem; chegam as obras e aqui vai
disto... Espera-se que o Estado não enfie mais uma vez o
barrete ao interesse público.
NOTA: Bem
podem as torres de Alcântara ser peças lindas desenhadas por
Siza Vieira. A questão é que não se põem prédios numa
cidade como quem põe cálices de vinho do Porto numa bandeja.
Já sabemos que a autarquia gosta de jogar e gosta de fazer «bluff».
Mas trata-se de uma cidade, e os cidadãos querem ver o jogo.
Não vamos largar esta «novela».
Aprovado
O Movimento
Pró-Criação da Reserva do Mindelo é um exemplo de persistência
a ser sublinhado. Quando as urbanizações pretendiam liquidar
definitivamente a zona, um grupo de cidadãos reagiu,
juntou-se, lutou e conduziu o processo de forma dinâmica,
levando-o até à Assembleia da República. Aí, apesar da
escrupulosa fundamentação científica dos argumentos, muita
gente se encolheu. Contudo, conseguiu-se que o projecto da
reserva se encaminhasse para um final feliz: a AR aprovou uma
resolução recomendando ao Governo que efectue estudos
indispensáveis, consulte as autoridades locais e faça um
plano de ordenamento. Ou seja, que crie a Reserva do Mindelo.
Agora que os estudos estão feitos e as autoridades locais já
manifestaram o seu empenho, só falta ao Governo portar-se à
altura.
NOTA: Referência
positiva para a nova equipa do Ministério da Ciência e do
Ensino Superior que repôs o acesso gratuito aos dados do
Instituto Nacional de Estatística (INE) para cientistas e
investigadores.
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