Parque de
Santa Cruz em 1920. Cliché do Sr. José Maria dos Santos,
gentilmente cedido ao A B C) |
O Parque de
Santa Cruz era um recinto ricamente arborizado onde os cónegos
regrantes de Santo Agostinho tinham o seu jogo da bola. As
suas obras são atribuídas ao reformador da Congregação dos
Crúzios, Gaspar da Encarnação, que foi ministro de D. João V.
Era uma dependência da chamada Quinta de Santa Cruz, que, em
1839, foi mandada pôr em praça pelo governo e comprada pelo
Desembargador António Joaquim Coutinho. |
Vendida no ano
seguinte ao negociante Frutuoso José da Silva, ficou por morte
deste pertencendo a seu filho, o Comendador José António Leite
Ribeiro. Em 1885, adquiriu-a a Câmara Municipal e nela se edificou
o Bairro de Santa Cruz, cujo alvitre já em 1872 era apresentado no
jornal “O Conimbricense”, de 14 de Fevereiro.
Ficou o jogo da
bola com o seu parque, mas sujeito a variadas orientações, que,
por vezes, comprometem a sua conservação, encarada não somente
pelo critério histórico, mas também pelo que encerrava de belo e
útil.
Sendo
visitado em 1886 pelo antigo Bibliotecário da Sociedade de
Geografia, Borges de Figueiredo e pelo americano Apollos
Robison, refere-se o primeiro, no seu livro Coimbra Antiga
e Moderna, ao estado deplorável em que encontraram a
cascata que forma o fundo do jogo da bola, e julgam os
visitantes o lindo retiro condenado a desaparecer. |
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Parque de Santa Cruz em 1920. Cliché do Sr.
José Maria dos Santos, gentilmente cedido ao A B C) |
Dezenas de anos
são decorridos, e, realmente, ainda lhe não foi dispensada a
atenção que merece, tendo-se por vezes produzido alterações na sua
feição característica e por outras lançado ao mais completo
abandono.
Sendo hoje um
recinto aberto e mal guardado, tudo ali se destrói. Desapareceram
os bancos primitivos, e, dos que os substituíram, só restos
existem, como acontece com os buxos que orlavam todas as ruas e
com a magnífica e apertada vedação de cedros de ramos
entrelaçados, que circundava o tanque central, e que, em 1881, “O
Conimbricense”, rectificando uma local dum jornal da capital,
afirmava que nada haveria no país que a pudesse igualar.
Desapareceram muitos azulejos dos muros da escadaria que liga o
jogo da bola com a fonte situada na parte mais elevada do parque e
conhecida pela Sereia, e outros encontram-se despedaçados, assim
como imensas peças de cantaria, e, presentemente, até a água
desapareceu, que era em abundância, o que está comprometendo a
existência de arbustos e plantas herbáceas. Não será difícil
descobrir o critério que presidiu à escolha da primitiva flora do
parque. Povoado com belos cedros de folhas escamiformes e com
exemplares da flora mediterrânea, caracterizada por árvores
dicotiledóneas de folhas espessas e persistentes, pretenderam os
cónegos regrantes livrar o recinto da impertinência duma constante
queda de folhas, incompatível com o fim a que o destinavam e que
modificaria por completo o seu aspecto. Pois são choupos, plátanos
e tílias, as árvores que ali se têm plantado, e que, começando
nesta época a despir as folhas sobre canteiros de difícil limpeza,
os transformam em verdadeiros monturos.
Na parte que
confina com a Rua Lourenço Azevedo praticou-se um vasto terrapleno
destinado aos jogos desportivos da Academia. Joga-se ali com
frequência o foot-ball, mas estudantes poucas vezes ali se vêem;
nem este jogo será o preferido por alunos de cursos superiores. A
algazarra inerente ao jogo, as nuvens de poeira que ali se
levantam, o vestuário que se exibe, tudo mostra claramente que não
é no interior das cidades que tal jogo se deve praticar, e muito
menos no local que para tal fim se apropriou. Em dias de certame a
multidão distribui-se pelo parque e não há ramo ou arbusto que
prejudique a observação, ou dificulte uma passagem, que não seja
de pronto condenado a desaparecer. Uma das originalidades da
cidade de Berlim é ter um extenso parque interior (Thiergarten)
com árvores seculares, e que por tal forma têm sido respeitadas,
que, quando se estabeleceu uma linha de eléctricos na rua
principal, deram-lhe um importante desvio para que algumas árvores
não fossem prejudicadas.
Dada a
tendência para Coimbra se desenvolver para os lados da Cumeada,
Montes Claros, Matadouro e Penedo da Saudade, o Parque de Santa
Cruz ficará no centro da cidade, o que lhe beneficia
extraordinariamente a sua estética.
Continuará
sendo o melhor refúgio para quem necessite de alguns momentos de
repouso, ou afastar-se do bulício das ruas. Raros serão os
sanatórios estrangeiros, (que com este nome não passam de hotéis
para descanso) que tenham uma dependência tão apropriada ao seu
fim.
Os últimos
festivais ali realizados, se tiveram todos os inconvenientes a que
o Conselho de Arte e Arqueologia se refere no seu protesto,
dirigido à Câmara Municipal e distribuído pela cidade, tiveram
também a vantagem de fazer sair da indiferença grande parte culta
de Coimbra, no propósito de mostrar que o Parque de Santa Cruz só
poderá ser considerado inútil, como são todas as coisas por quem
lhe não saiba reconhecer o seu valor, julgando urgente tirá-lo do
abandono em que se encontra e procurando restituir-lhe quanto
possível o seu aspecto primitivo, que em nada se coaduna com os
fins para que o têm desviado. A isso se propunha em 1917 o ilustre
professor da Escola Superior de Farmácia, Sr. Vicente Seiça, como
se observa pelo relatório publicado no jornal “A Província”,
relativo à sua estada numa vereação que só durante dez dias esteve
à frente do município de Coimbra e é ainda com este intuito que ao
mesmo professor sugeri a ideia da organização dum grupo de amigos
do Parque de Santa Cruz, que não poderia ter tido melhor
acolhimento, e, na verdade, a população de Coimbra é das que
melhor poderá compreender o valor dum recinto daquela natureza, no
seu primitivo aspecto.
Não sendo uma
parte das câmaras municipais preenchida por técnicos de carreira,
como sucede nalguns países, mas sim todos eleitos por um critério
político, difícil será que as sucessivas vereações dispensem ao
Parque as atenções que ele merece, dentro da mesma orientação.
Critérios diferentes fazem e desfazem, e o Parque continuará
perdendo o aspecto primitivo e toda a sua beleza. E como se não
trata dum vulgar jardim municipal, para o que em geral bastam os
zelos de qualquer jardineiro, precisaria estar dependente duma
colectividade, que pelas suas funções ou conhecimentos especiais
fosse garantia da sua restauração e conservação.
É grande a
corrente intelectual que pretende salvar o antigo Parque. Tem
hoje, portanto a Câmara Municipal muito quem a auxilie para uma
solução que dê todas as garantias futuras sobre a sua conservação,
o que certamente se obterá com uma serena conjugação de esforços.
GOMES DE SOUSA
In: Revista “ABC”,
Ano I, N.º 20, Lisboa, 25 de Novembro de 1920. |