Conheci Pedro Vilhena por ocasião da
mostra do "Postal Antigo de Aveiro", iniciativa da ADERAV, no Salão
Cultural da Câmara. A exposição reuniu, em esforço e entusiasmo
uníssonos, elementos da direcção, associados e não associados de níveis
etários os mais diversos, e deu lugar a encontros diários de cariz
verdadeiramente popular: levou ao Salão Cultural gentes da "beira-mar" e
meninos das escolas e professores, além de proverbiais figuras em
destaque da intelectualidade do burgo.
Alongado na distância o saber de
defeitos na apresentação desta mostra, o evento fortuito fez o aveirense
de raiz e o residente,
–
ou o simples curioso, se não o estudioso do
património, – apinhar-se e alongar-se em frente dos expositores e
arrastar consigo familiares e amigos com quem eram trocados pareceres
saudosos, entusiastas, ou desencantados. Havia quem sacasse de carteiras
mais ou menos ensebadas, — ou elegantes, dos bolsos interiores dos
casacos, de bolsos avolumados de sobretudos, relíquias amarelecidas que
eram comparadas às expostas com admiração e orgulho. E foi neste
ambiente, ora calmo, ora quase febril, que Pedro Vilhena e, no suceder
dos dias, amigos e conhecidos entraram na tertúlia dos novos sonhadores
de tesouros perdidos. De tarde, porque ta esperar a esposa, e à noite,
quase sempre acompanhado desta, aparecia e connosco colaborava na tarefa
de acolhimento aos visitantes, com o natural entusiasmo pelo postal e
pela troca de impressões que este suscitava, coleccionador que era por
gosto próprio e herança natural, e misturava as suas recordações de
"menino da ria" e filho da cidade. E lá surgia a anedota que ilustrava
um evento ou uma figura – e a descoberta discreta de gosto e atitudes
comuns face ao mundo, que foram tecendo compreensão e amizade e
contribuíram, nos dois anos seguintes, para ajudar à coesão de grupos de
trabalho com Pedro Vilhena, agora um lhano elemento da direcção.
O senhor Vilhena,
– como com respeitoso
afecto era geralmente tratado,
– dum perigo sempre se defendeu: não
blasonava de intelectual. Pretendia ser apenas o homem que tão
entranhadamente trazia nos olhos enamorados o vidrado azul das águas
paradas das marinhas, os tons ora pardacentos, ora radiantes, agora
profundos, da ria de múltiplos abraços, poalha lodosa milenar que liga
vales e extensões de planícies cultivadas, de encontro adiado com o mar.
Era o amante dessa ria das nossas lágrimas saudosas com quem brincara tamanhinho, e continuara, pela vida fora, prisioneiro das velas dos
moliceiros que o vento fazia deslizar velozmente enfunando-as em
rabanadas de nortada, e procurava agarrar o pitoresco instante do
arabesco em movimento. Porém, cidadão do mundo, olhava o progresso de
olhos curiosos, apreciava-o, servia-se dele, atraído em permanência pelo
mundo exterior de todas as latitudes, pelo homem de todos os quadrantes
geográficos. Essa atitude exprimia a compreensão da nossa realidade de
europeus plantados "à beira-Atlântico", perdidos os olhos sonhadores nos
horizontes longínquos, herança atávica a que não fugimos. O aceitar do
progresso era, com Pedro Vilhena, amaro testemunho do progresso de
antanho.
Apareceu, um dia, com uma revista de
arqueologia industrial, edição de São Paulo, que um familiar lhe
enviara. A publicação continha belas fotografias de um imóvel fabril do
séc. XIX, algures, num estado brasileiro, preservado como riqueza que
uma nação com uma história recente não pretende arriscar-se a perder. O
pretexto motivado r provocava a censura sorridente, ou a alusão
diplomática à nossa realidade. E aproveitava-se para filosofar sobre
aquele jovem país da América Latina que inspirou o seu modernismo nas
raízes mais autênticas da sua cultura diversa, multiracial e
universalista, e a foto, de outrem, fora o ponto de partida e o de
chegada: belezas e riquezas da sua terra. E, insensivelmente, voltava-se
às praias, às festas da ria, da "beira-mar" e arredores; às pedras e aos
barcos, moliceiros orgulhosos, de proas vistosas, a apodrecer nas águas
lôbregas, negras do moliço que já não deixava respirar o achigã; nas
substâncias químicas que mataram espécies piscícolas, as ostras nas
praias vareiras, e vão matando os arrozais; nas garças do pantanal,
debandadas, e sem esperança de regresso; nas gaivinas e gaivotas,
"lenços a acenar" camonianos no horizonte cinza-esbranquiçado, ou
transparente e radioso, das manhãs finas de Primavera. Era o amor
evocado, entranhado, pela festa dos elementos, das gentes e da terra.
Eram reuniões animadas, porque o senhor Vilhena trouxera consigo
recordações, de olhar brilhando e voz solta, às vezes em agudos de
entusiasmo, — os óculos puxados para a testa, ou pendendo da mão
esquerda, discreto de gestos, fitando os interlocutores numa atitude
nunca displicente, mesmo quando o distraía o livro das facturas, ou
fazia rapidamente contas de cabeça, o que risonhamente lhe era invejado.
No aceitar do elogio, quando lhe era gabada a eficiência no somar das
magras contas da associação, havia vaidade sem malícia e brotavam
incontidos os sorrisos perante certos lapsos de memória que lhe eram
muito peculiares.
4 – Voltas da Vida (Pseudónimo Cagaréu) |
Foi gratificante conhecer Pedra Vilhena.
E é bom encontrar numa esquina da lembrança a sua afabilidade directa, o
seu ar dançado, nunca pachorrento, as suas breves inclinações
esvoaçantes de quem cumprimenta e passa. Paixões... os contrastes de
luz e sombra que perseguia como poemas. E a gastronomia: sabia como
ninguém quem fabricava os melhores doces de ovos, e a melhor
caldeirada. Inestimável "relações públicas", tanto conhecia os marnotos
ainda activos da "beira-mar", como o feliz possuidor de peças de arte
sacra que estudiosos do assunto confessavam ignorar.
A sua natural delicadeza inibia-o de
manifestar abertamente o desagrado. Atento à agitação, lançava, aqui e
ali, uma observação e, na hora da decisão, tomava-a de forma
independente, — às vezes surpreendente, — mas sem alardes. Sem alardes,
nas encruzilhadas defeituosas da cidade, um dia se perdeu. E quisemos
também recuperar Pedro Vilhena, o amigo e companheiro de interesses e
preocupações com o património, tornando-o resistente à desagregação no
tempo da nossa memória. |
Aveiro, Dezembro de 1988
Maria Helena Marques da Silva |