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Heidegger e a instauração de uma poética da palavra

A reflexão heideggeriana sobre a linguagem não é jamais uma mera perspectivação da relação possivelmente patenteada entre a linguagem e a realidade, sobre a propriedade ou impropriedade da mesma para descrever as coisas, nem tão-só uma reflexão sobre um "aspecto" do estar-aí do homem.

É, ao invés, a forma mais eminente da experiência e da expressão da própria realidade, já que é na linguagem que se dá a abertura do Mundo, que se dá o ser das coisas e, por isso, o verdadeiro modo de perscrutação daquilo que se afirma como existente só pode ser atingido através do auscultar do significado primordial das palavras.

As coisas não são fundamentalmente coisas presentes no mundo-exterior, mas na palavra que as nomeia originariamente e as torna acessíveis, até mesmo na presença espácio-temporal. As coisas são, no sentido do recolectante "fazer-morar", só na linguagem que, como veremos adiante, é essencialmente Poesia: eis como deveremos entender a afirmação segundo a qual é a palavra que "torna coisa" (be-dinget), a coisa (Ding).

Se quisermos compreender, precisamente, este modo de ser da coisa na palavra devemos pensar, antes de mais, no gosto heideggeriano pela etimologia que é justamente uma maneira de remontar, através das vicissitudes e das conexões das palavras, às dimensões autênticas, ontológicas, da coisa, em si mesma, nomeada.

A figura etimológica, a escavação do significado a partir das raízes verbais e da história das palavras é, na sua mais plena acepção, uma "emergência", um "des-ocultamento", um movimento para a luz. Qualquer investigação séria sobre o ente deve adoptar, como ponto de vista, as considerações linguísticas, em virtude da linguagem se apresentar, na sua mais radical essencialidade, como a chave que abre a porta do des-velamento do Ser, do Homem e do Mundo.

A palavra é um caminho (Weg), ou melhor, o caminho privilegiado que nos permite pensar, através do depoimento existencial que transmite, o Ser do ente, quer dizer, o Ser daquilo que realmente é, amiúde obnubilado no nosso discurso quotidiano, no seio do qual as palavras perderam o seu referente primordial, remetendo umas para as outras e não mais para o Ser.

Deparamo-nos, todos os dias, com Discursos vazios de conteúdo, pois o modo de significação do que é, emaranha-se na sequência mais ou menos lógica, no encadeamento de um conjunto de fonemas mais ou menos articulados, mas que perderam de vista a sua veraz significação ontológica. É indubitável que as coisas só são, realmente, enquanto se dão na proximidade do próprio Ser, tomado como aquilo que funda e abre toda a abertura histórica, embora ele-mesmo não se reduza a uma tal abertura.

Perspectivando à luz da tese heideggeriana as vivências quotidianas do "homo superfulus", que habita cada vez mais o homem destas duas últimas décadas, não podemos deixar de afirmar, peremptoriamente, que a palavra e a linguagem jamais são invólucros onde as coisas podem ser empacotadas para o comércio daqueles que as utilizam; não se podem consumir do mesmo modo que os triviais produtos que esta sociedade consumista nos apresenta e nos daquilo que realmente é, amiúde obnubilado no nosso discurso quotidiano, no seio do qual as palavras perderam o seu referente primordial, remetendo umas para as outras e não mais para o Ser.

Deparamo-nos, todos os dias, com Discursos vazios de conteúdo, pois o modo de significação do que é, emaranha-se na sequência mais ou menos lógica, no encadeamento de um conjunto de fonemas mais ou menos articulados, mas que perderam de vista a sua veraz significação ontológica. É indubitável que as coisas só são, realmente, enquanto se dão na proximidade do próprio Ser, tomado como aquilo que funda e abre toda a abertura histórica, embora ele-mesmo não se reduza a uma tal abertura.

Perspectivando à luz da tese heideggeriana as vivências quotidianas do "homo superfulus", que habita cada vez mais o homem destas duas últimas décadas, não podemos deixar de afirmar, peremptoriamente, que a palavra e a linguagem jamais são invólucros onde as coisas podem ser empacotadas para o comércio daqueles que as utilizam; não se podem consumir do mesmo modo que os triviais produtos que esta sociedade consumista nos apresenta.

É definitivamente forçoso destruir a perspectiva metafísica: a linguagem não se torna significante a partir dos objectos compreendidos pelo pensamento e significados, em seguida, pelas palavras; são, antes, os objectos que adquirem a sua plena capacidade de significação a partir da linguagem falada.

O sentido do Discurso, que Heidegger define em Sein und Zeit (Ser e Tempo) como sendo " a articulação significativa da compreensão do ser-no-mundo (o homem) no sentimento de situação" (p.201), nunca é construído, mas sempre descoberto.

O mundo mostra-se-nos investido de significações utilitárias e poéticas. Daí que a linguagem seja tomada como uma leitura hermenêutica da experiência, expressão que assume uma vasta e originária significação ontológica, ao indicar a manifestação do carácter linguístico do Acontecimento do Ser.

O homem compreende sempre o Mundo no interior de um projecto interpretativo, cuja linguagem é a sua única justificação. Muito embora as coisas existam fora do gesto falado, o Mundo, esse horizonte inteligível que abre acesso aos entes, só existe, em sentido autêntico, na e pela interpretação efectuada pela e através da linguagem.

Apenas onde há linguagem há mundo, quer dizer, uma esfera em permanente transição de decisão e de obra, de acção e de responsabilidade, mas também de arbítrio e de confusão.

A análise existencial não é, definitivamente, senão um estudo do homem no universo do discurso. O "Da-sein" (ser-aí do homem) determina o modo como o próprio homem se interpreta como ente que fala e falar equivale a fazer surgir o ser do real: a linguagem é um modo do ser, uma estrutura da Ek-sistência. Porém, não é um existencial entre outros, mas o existencial fundamental no qual todos os outros ganham corpo. A linguagem não é somente uma possibilidade do "Da-sein”, mas uma determinação essencial do ser-homem, não obstante construir, a um tempo, a sua grandeza e a sua miséria.

O discurso do Mundo é, inextrincavelmente, uma palavra do Ser. E a Ek-sistência é o discurso que reflecte esta linguagem fundamental: "a linguagem é a casa do ser", na qual o homem habita e, deste modo, ek-siste, pertencendo à verdade do ser que ele próprio vigia.

Em Uterweges zur Sprache (Caminhos da Linguagem), Heidegger afasta toda a falsa interpretação desta metáfora, que aliás é muito mais do que uma simples metáfora: uma casa recolhe passivamente aqueles que abriga, enquanto a linguagem tem o poder efectivo de trazer à luz, de des-velar a essência do Ser e o ser do Homem.

A importância crucial conferida pelo filósofo à linguagem na citada passagem de Ueber den Humanismus (Carta Sobre o Humanismo) resulta justamente da firme convicção segundo a qual a linguagem é própria do homem, não apenas porque para além de todas as suas outras faculdades o homem também tem a genial capacidade de falar, de comunicar inteligivelmente através das palavras, mas sobretudo porque apenas por intermédio desta irredutível via, ele tem acesso privilegiado ao Ser. Eis o que urge recuperar face a este permanente esquecimento do da autenticidade da linguagem que conduz,

Segundo o mesmo princípio, a função da linguagem é deixar que o Ser seja. Porém, jamais poderemos obnubilar que não é mais o homem que determina o Ser, mas o ser que, através da linguagem, se revela ao homem e o determina.

Face à significação atribuída a este modo específico de revelação, o homem surge-nos apenas como o portador da linguagem – em virtude de a linguagem não radicar na essência do homem, mas manifestar uma essência histórico-ontológica fundamental, sendo segundo esta essência que ela é dita como a "casa do Ser" – e como tal tem a função, sendo ele o único, de mostrar o Ser por seu intermédio.

Revelando esse extraordinário poder de manifestar a originalidade e primacialidade da Existência, de fazer advir o Ser à luz, de o desocultar, de o colocar na Não-latência e com ele a essência do homem, a linguagem afigura-se como a única morada onde o Ser pode ser realmente acolhido e posteriormente mostrado na sua nudez primordial.

A linguagem do Ser suporta a nossa linguagem de todos os dias: o Ser é o não-dito e o não-falado de que se alimenta a nossa palavra. O encontro com o para além das pelavas é possível porque o Ser, essa Alma da linguagem, é o lugar da nossa permanência.

A língua que nos faz comunicar com o Mundo e com os outros homens exprime sempre algo de diferente do que se diz, ou seja, exprime a s relações ocultas que a palavra mantém com o Ser, quer dizer, com aquilo que em si mesmo é e não necessita de nada para que seja.

A linguagem é um Acontecimento que, ao manifestar-se, produz a indicação e a língua. A palavra é a marca do Acontecimento interior à linguagem e a escrita o depósito da Tradição do Ser. Por isso, ao interrogar-se o Ser, a linguagem arranca constantemente a palavra ao peso significativo da Tradição e a escrita aos limites do signo para a fazer regressar à presença originária que permitiu a sua manifestação. Neste sentido, a linguagem reside na diferença interior à palavra do ser que se inscreve entre o Acontecimento o qual, ao mesmo tempo, desvela e oculta a letra ou a palavra que morre no limiar da coisa.

A ideia de uma linguagem transparente ao espírito é seguramente uma ilusão de representação. Há sempre para além uma Palavra essencial que o coloca na Presença, mas que não pode ser captada como palavra porque o Acontecimento do ser é a sua marca concomitantemente oculta e desvelada.

Se em Sein und Zeit a linguagem já ocupava uma posição peculiar, pois, como signo, revelava a própria estrutura ontológica da mundaneidade, nas obras posteriores, nomeadamente em Der Ursprung des Kunstwerkes e na conferência sobre Hölderlin und das Wesen der Dichtung, aparece-nos como o próprio modo do abrir-se na abertura do Ser, principalmente enquanto é pensada como poesia, essa arte originária da palavra.

Posto que a abertura do Mundo se dá sobretudo na linguagem, é nela que se pode perscrutar a autêntica inovação ontológica, uma vez que nos é dito que a "linguagem é poesia no sentido essencial", ou como Heidegger refere em Einführung in die Metaphysik, " a linguagem é poesia originária (Ur-dichtung) em que um povo diz o Ser" e, inversamente, a grande poesia, pela qual um povo entra na sua História, inicia a configuração da linguagem.

Dizer que a linguagem é poesia apenas, no sentido essencial, significa afirmar que o falar autêntico é criação, abertura, inovação ontológica, uma vez que nem todo o falar é criação, já que comummente se torna um mero instrumento de comunicação que se limita a articular e a desenvolver, a partir do seu próprio interior, a abertura já aberta.

Na linguagem essencial instituem-se os mundos históricos em que o estar-aí e o ente se relacionam entre si nos vários modos de presença humana no Mundo, o que faz da linguagem, tomada na sua dimensão poética, "o fundo que rege a História do homem", porque o que perdura fundaram-no os poetas e fundar o que permanece ou fundar o permanente significa desvelar o Ser para que o ente apareça, só por eles alcançado porque são os únicos capazes de nomear os Deuses e todas as coisas, naquilo que em si mesmas são.

O nomear do poeta não consiste, porém, em atribuir um nome a uma coisa anteriormente conhecida mas, ao invés, falando, o poeta celebra a palavra essencial e celebrando-a, o ente passa a ser nomeado no que é; através desta nomeação, torna-se conhecido enquanto é, pois a poesia é, na sua essência, a "fundação do Ser pela palavra" e esta fundação é doação livre.

Quando os Deuses são nomeados originariamente pelo poeta e a essência das coisas se torna palavra, a própria existência humana é inserida num contexto firme e é colocada sobre o terreno desta doação.

A poesia é, radicalmente falando, não um fenómeno de cultura nem a expressão de uma "alma natural", mas a obra suprema da linguagem, enquanto dada como projecto de iluminação na abertura, na clareira (Lichtung) do Ser. o Dizer do poeta é, por conseguinte, este mesmo projecto de iluminação onde é dito como o ente chega à abertura. Este Dizer, que em si mesmo é Poema, nomeia o Mundo e a Terra assim como o espaço de jogo do seu combate. Precisamente por isso, cada língua é o surgimento do Dizer no qual, para um povo, se abre historicamente o seu Mundo e onde é salvaguardada a veracidade da Terra no seu oferecimento original.

Dizendo o que é o ente na radicalidade do seu Ser, a Poesia instaura-o; e tal instauração possui o carácter de ser um dom fundado e inicial, rebatendo toda a familiaridade da aparência. Fundando poeticamente tudo o que é, o homem funda-se a si mesmo. Compreendemos, assim, porque é que o "Dasein" (o homem) é poético (dichtrich) e em que sentido é dito que " de um modo poético habita o homem sobre esta terra". Habitar poeticamente significa: estar na presença dos Deuses e ser tocado pela proximidade das coisa.

O fundamento do "ser-aí" (Da-sein) humano é, pois, poético, como o próprio acontecer da linguagem primordial que é poesia como fundação do Ser. Se compreendermos esta essência da Poesia dada como linguagem primordial de um povo, historicamente concebido, pela qual ele diz o seu ser, percebemos, ao mesmo tempo, que a essencialidade da linguagem tem que ser compreendida a partir da essência da Poesia, tal como a essência da Poesia é compreendida a partir da essência da Linguagem.

Tomada a partir desta perspectiva, a linguagem a linguagem não é apenas criação e inovação ontológica, como já se havia referido, mas fundamentalmente a sede, o lugar do acontecimento do Ser como o abrir-se das aberturas históricas em que está lançado o "Da-sein".

É a linguagem que "rege o nosso estar-aí" e, por esta razão, dependendo dela de um modo umbilicalmente profundo:" a linguagem não é mais um instrumento disponível para o homem, mas aquele acontecimento que dispõe da maior possibilidade de ser homem". Enquanto tal apropria-se de nós, na medida em que com as suas estruturas, delimita, desde o início, o campo da nossa possível experiência do Mundo.

Só na linguagem as coisas nos podem aparecer e só no modo como ela as faz aparecer; é a palavra que proporciona o ser da coisa e todo o falar concreto, autêntico, pressupõe que a linguagem já tenha aberto o Mundo e que também, a nós, nos tenha colocado nele.

Toda a problematização da linguagem e, em rigor, todo o seu uso ôntico, requer que ela já nos tenha falado. A linguagem é, acima de tudo e originariamente, mais do que uma faculdade de que dispomos; é um "dirigir-se a nós", sem o qual não poderíamos falar. Se isto significa, antes de mais, que todo o falar autêntico é fundamentalmente uma escrita, não quer dizer, no entanto, que o homem seja um ouvinte passivo, uma vez que a linguagem não é, acidentalmente, um "dirigir-se a nós". Pelo contrário, é nesse "dirigir-se a nós", que somos os seus ouvintes e respondedores privilegiados, que consiste a sua própria essência.

A linguagem, afirma Heidegger em Sein und Zeit, " tem necessidade da fala humana, embora não seja um produto da nossa actividade linguística". É anúncio, apelo, mensagem e nós, homens, somos usados por ela como "mensageiros da voz do Ser". A linguagem não se dá senão no falar do "Da-sein" e, todavia, é verdade que tal falar encontra já delimitadas as suas possibilidades e os seus contornos na própria linguagem, ainda que não como uma estrutura rígida que o obrigue, mas como um apelo a que responde.

É neste sentido que devemos entender porque é que retoma do "poeta do poeta" (Hölderlin) a caracterização do homem como Diálogo, porque é que o ser do homem se funda na linguagem e porque é que só acontece verdadeiramente no Diálogo.

                                                                                  Isabel Rosete

 

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