Tarde de
domingo com sol
Inverno.
Tarde soalheira, algum tanto ventosa. Ao ruído do vento,
misturam-se, esbatidos, os sons enrolados de sinos, crianças
tagarelas, de jovens, comentando risos de meninas que passam. O
trabalhar seco dos automóveis após o arranque é o «leit-motiv»
duma sinfonia inacabada.
Não
olhava a janela; tão pouco a televisão, imagens fugidias de um
qualquer filme Disney, vagamente azul, vagamente preto,
vagamente ouro. Alguém parecia martelar a fogo a cadência do
relógio antigo, generosidade dos mais velhos, desiludidos de
mudar o devir. Dezassete horas.
«…mais
servira, se não fora / Para tão longo amor tão curta a vida!»
Amor:
espírito de serviço, fraternidade, solidariedade, tão
ignaramente confundido com escravidão, mentira, sabe-se lá
porquê, como não se sabe das razões que me levaram a recordar
um dos que soube, como ninguém, cantar a maior dor humana –
existir, com a consciência de não passar dum pobre ser, «vil
bicho da terra tão pequeno!»!
Há
histórias de amor e de serviço colhidas nos textos bíblicos,
histórias de perseverança quando alguém tem em mira alcançar
um qualquer objectivo. No poema que soou na memória no fim da
tarde de sol, um pastor da antiga Mesopotâmia, região onde ontem,
como hoje, só se ouve ecos de crimes contra a humanidade,
frutos de uma guerra sem quartel, um jovem viu a segunda filha
de Labão, Raquel, uma loura de tez queimada pela canícula do
deserto, e à sombra dos oásis onde o pastor parava para deixar
o gado do patrão beber, deu por si a sonhar. E na altura de
receber o fruto do seu suor e da sua lealdade de servo bom e
fiel, «julgando que a tinha merecida» atreve-se a pedi-la em
casamento. Labão, porém, tinha de casar primeiro a filha mais
velha, porque assim mandavam os costumes, e o servidor recebe a
sua paga: Lia, e não Raquel.
Eis
se vê o pastor apostado em não desistir de alcançar o seu
sonho e a pôr todos os seus afectos e brios a servir outros
sete anos para finalmente ser digno de ter a amada como esposa.
Alcançado
o objectivo amoroso, os textos contam-nos que a sua vida não
foi um conto de fadas: foi apenas vida. Mas esses pormenores não
interessaram ao poeta. Como não interessa ao vulgo o que se
passa nessas regiões longínquas de história milenar. Contudo
até está na onda o lenço/turbante à Arafat, quanto mais não
seja bem enrodilhado à volta dos pescoços deles, e mesmo
delas. Nem evocam violência, nem talvez amor. Simples
artefactos duma geração conflituosa e libertária, que se
interessa muito pouco com os problemas alheios. Auto-suficiente e
egoísta. E ignorante, tão ignorante que não reconhece a
polissemia da palavra amor e sente-se como que alérgica aos
seus muitos e variados conceitos. Como entender o homem e poeta
que se deixou enamorar pelo texto bíblico?
Perseverar
também é palavra vagamente reconhecida pelas actuais gerações.
Sacrifício e dor são aberrações para a sociedade consumista.
Ilusões / desilusões – «confettis» carnavalescos de terça-feira
de Entrudo. Que sensibilidades tão alheias à carga lírica e
dramática de um poema que respira vida envolta numa maviosidade
tão profunda?
E
na tarde do domingo de sol, vibra no ar uma melodia que não
parece pertencer já ao novo milénio.
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