A Quinta da Torre **

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Uma liteira deteve-se junto das magníficas portas de madeira maciça do palacete. Os machos resfolegavam, deitando baforadas que aqueciam aquele fim de tarde, já as ave-marias tinham troado na capela de Nossa Senhora das Dores.

Abril tinha-se anunciado com zumbidos de invernia. As nortadas cravejavam os espectros deambulantes, pouco prevenidos para estas intempéries repentinas. Cosidos às paredes, outros, recolhiam-se no abrigo insípido das paredes regeladas, com as goteiras incessantes a humedecer o gabão.

Um criado de libré assomou à porta, que se entreabriu com esforço, deixando esgueirar-se uma tosca luz para o lajedo molhado.

O liteireiro já se azafamava a descarregar os baús, à custa de impropérios que lhe saíam numa verve desenfreada, por causa daquela enfadonha chuva que lhe apagara o archote.

Mateus abriu, então, a porta da carruagem, depois de, mansamente, ter corrido as cortinas.

Era um magnífico homem, com um porte hercúleo e com uma tez que recolhia aos antepassados de África. Quando os aldeões o viram pela primeira vez, estalavam nos jornais os cabeçalhos a anunciar a independência do Brasil, sua terra natal, ficaram assombrados, parecia-lhes uma visão de Satã, por isso dedilhavam o peito, vezes sem conta, com o sinal da cruz. Mas com o tempo, Verdemilho habituou-se àquele negro bonacheirão, que insistia em parar e os cumprimentar num sotaque exótico. Agora, já eram eles que se pugnavam para serem sempre os primeiros a dar-lhe os bons-dias e ficarem, depois, estarrecidos a ouvi-lo contar histórias misteriosas do sertão, por entre respingos de saliva que lhe saltavam, inebriados de aguardente, pela gruta dos incisivos superiores.

Ora, vamos lá, menino, que os vovós estão à espera de vossemecê.

José Maria, a custo, lá fez tenção de colocar o seu pezinho direito no degrau almofadado da liteira. Mas logo mudou de ideias, estava uma frialdade inóspita. Não queria sair, pronto! Então Mateus, na sua habitual paciência, aconchegou-o na sua manta, arrebatou-o para os seus braços fortes e, com a mão direita, reconfortou-lhe a cabeça no calor do seu peito. O menino abraçou-se-lhe conformado, de olhar embargado, enquanto o bom Mateus dava saltinhos por entre as poças que se haviam formado.

José Maria Eça de Queirós, praticamente a fazer os cinco anos, tinha vivido até então em Vila do Conde, em casa de uma ama, Ana Leal de Barros. A sua mãe, Dona Carolina Augusta, havia-se enamorado do Dr. José Maria Teixeira de Queirós, na altura delegado do procurador régio em Ponte de Lima. O certo é que Dona Carolina acaba por engravidar ainda solteira. Houve falatório em Viana, para mais alguém da estirpe Pereira d’ Eça, família que se distinguira nas armas. Assim, a rapariga, na coragem imberbe dos seus dezanove anos, compôs a saia impecavelmente engomada e, com as mãos entrelaçadas sobre o ventre túmido, mas de porte imperturbável, rumou até à Póvoa de Varzim, para aí, sob o marulhar da lua alta, unir os seus brados de mãe ao choro de uma criança. Relutante, afaga as roupinhas de José Maria, beija-o na testa enrugada e deixa-lhe na quentura da pele macia uma lágrima de despedida.

Ana segurou, com uma ternura desmedida, que o coração não podia comportar, aquele pequerrucho. Nos seus braços morenos de pernambucana, aquelas roupas brancas assemelhavam-se a um querubim, que ela ia criar, sob orientação do avô paterno, o desembargador Queirós.

José Maria ia agora viver para casa dos avós paternos, em Verdemilho, e isso deixava-o inseguro. Tinha-se afeiçoado a Ana de tal maneira que, quando ela partiu para o Céu, conforme lhe contou o desembargador Queirós, esforçando-se por ser convincente na história que congeminou, ele fez prometer ao avô que um dia a iriam visitar e lhe levariam gerberas coloridas, como ela gostava.

Mateus ajoelhou-se para que o menino se perfilasse. Era uma sala de entrada impressionante, com as suas tapeçarias, o chão de mármore e plantas de ornamentação. À esquerda, um banco corrido e do lado oposto um bengaleiro de carvalho lavrado. Em frente, uma escada em madeira, um pouco inclinada, e um corredor ao lado, guarnecido com retratos de família. De candeeiro na mão, o criado encaminhou-se na direcção do corredor, que agora se iluminava sob as passadas macilentas do criado. Mais atrás, seguia José Maria, de olhar curioso, com Mateus firme. Bastaram alguns passos para se vislumbrar uma porta à direita, donde rumorejavam vozes imperceptíveis misturadas com uma suave fragrância a limão. 

 O pequeno José Maria, impecavelmente aprumado com o seu lacinho e sapatinho de verniz, estancou junto ao aro da porta, irresoluto, temendo olhar aqueles anciãos. Já conhecia o avô, que o tinha ido visitar a Vila do Conde, a casa da Ana, mas intimidava-se com a senhora que o ladeava.

Então, o menino fez uma boa viagem? — perguntou o avô, esboçando um sorriso.

Sim, avô! — respondeu com pouca firmeza, de olhar fixado no chão.

Ora dê cá um grande abraço a este seu velho avô.

A avó, Dona Teodora Joaquina, admirava o neto com uma satisfação desbragada. Os seus olhos toldavam-se, tamanha era a felicidade de, pela primeira vez, poder abraçar aquele netinho querido.

— Agora, dê um grande abraço à avó e dois repenicados beijinhos, pois a avó quer-lhe muito, ouviu? — disse o avô, com voz firme.

— Venha cá, minha jóia, meu menino lindo, riqueza da avó — proferiu a avó, cada vez mais lavada em lágrimas.

Mateus, mais atrás, acomodava-se, também, com a companhia de Rosa, sua esposa.

A avó Teodora, de joelhos no soalho, não se cansava de beijocar o neto e de lhe apertar as duas bochechinhas carnudas, já rubras dos apertões. Por fim, teve de ser o avô Queirós a interceder, diplomaticamente, pelo macerado neto, enquanto este limpava, aflito, com as mangas da casaca, a saliva que lhe empastava a cara ebúrnea.

— Parece que a avó tem ali uns bolinhos de limão! E se os fôssemos provar?

Toda a gente estava feliz naquela casa. Parecia que tudo rebrilhava perante a passagem daquela criança. E assim era, há muito que a avó Teodora queria ter aquele rebento junto de si. Se não o teve mais cedo, foi porque o desembargador Queirós, rijo de ânimo, nunca o permitiu.

  A vida não tinha sido fácil para os avós. Os Queirós eram, há várias gerações, homens de leis, habituados à balança imparcial da justiça terrena. Joaquim José de Queirós tinha jurado defender, acima de tudo, a liberdade do homem, o direito igualitário, a honra da palavra. Recém formado, embarca para o Brasil, aonde foi colocado como juiz. Abraçada a si, vai uma camponesa, Teodora Joaquina, a mulher por quem se apaixonou, indiferente a divisões sociais estranhas às leis do coração. Encostada à amurada do navio, esta mulher de labuta reparte um pão pelos vários filhos. Em terras de Vera Cruz, trocam alianças eternas, amando-se inteiramente. Destas bodas, nasce José Maria de Almeida Teixeira de Queirós, o pai de Eça.

Com a Revolução Liberal em Portugal, o avô regressa, animado pelo clima efervescente que então se vivia. Decide, pois, mandar edificar a Quinta da Torre, em 1822, para onde vai viver com a família, depois de terminada a sua construção.

Mandou que se fizessem obras de vulto, para dar à casa a imponência que merecia a família Queirós. Utilizaram-se as melhores madeiras nos caixilhos das janelas, aplicaram-se cantarias em pedra calcária, cobriu-se a casa com telha lusa. Por cima do arco da porta rectangular, foi colocado o brasão da família.  A alvenaria foi, também, alvo de grande esmero, o que fez com que o solar impusesse a sua majestade na vila, habituada a casas geralmente baixas, toscas e humildes.

A quinta estava espaçosa e linda. A fachada impunha-se ao viajante, que parava boquiaberto, a admirar as suas inúmeras janelas amplas, que o sol das tardes de Verão aproveitava para se espraiar indolentemente. No seu interior, então, sobressaíam as arcas de madeiras exóticas, os quadros de família, os cortinados a condizer, as loiças da Companhia das Índias, a maciça mesa de pau-preto ou as peças delicadas que começavam a ser produzidas na fábrica da Vista Alegre. Os jardins, demais, eram um repasto para os sentidos. O parque, muito aprazível, adornava-se com renques de acácias, pinheiros mansos e frondosos plátanos, debaixo dos quais se podiam encontrar duas mesas redondas de granito, para o repouso dos calores estivais. Em redor, estendiam-se canteiros pintalgados de variadíssimos matizes. Havia roseiras de todas as cores, coroas, malmequeres, copos de leite, crisântemos, gerberas, jacintos, ... Junto à casa, do lado nascente, perto de um grande tanque, sobressaía uma escadaria de pedra, com corrimões de ferro entrelaçados por ramos de buganvília. No centro do quintalejo, um fontanário, ladeado por camélias. O desembargador costumava dizer, quando, depois do almoço, se embrenhava nas leituras debaixo do grande plátano, que aquele era um retalho do paraíso inicial. A esposa não achava muita piada ao gracejo, por pudico catolicismo, mas o certo é que o obreiro daquele éden era bem terreno e chamava-se Mateus. Tinha o dom de dar vida a tudo o que tocasse. O mito não foi criado em Verdemilho, já o trazia consigo do Brasil, onde as suas mãos se haviam calejado com a lida do campo, debaixo do calor tórrido. O solo, depois, também ajudava bastante, constituído por uma terra preta assaz macia e leve. Por último, tinha água em abundância na quinta, o que permitia trazer sempre as plantas em fresquidão.

Mas nem sempre o Dr. Queirós conheceu dias de descanso. D. Miguel regressa de Viena em 1828 e proclama-se monarca absoluto, revogando a carta constitucional e dissolvendo, de imediato, as câmaras. Ora, como deputado que era, jamais poderia aceitar tal ultraje à monarquia constitucional. Por isso, regressou a Verdemilho, onde liderou a revolução liberal de 16 de Maio de 1828. Contudo, a revolução fracassou. Restava a retirada em direcção à Galiza, sempre a acompanhar as tropas como um igual, e depois o embarque até Plymouth, onde os esperavam miseráveis barracões como tecto. Sentenciado à morte em Portugal, viveu no exílio, primeiro em Inglaterra, depois na Bélgica. Acompanharam-no no desterro José Estêvão, Mendes Leite e Almeida Garrett. Só regressa à sua terra querida um pouco antes de ser assinada a Convenção de Évora-Monte, em 1834. A partir daqui, será desembargador da Relação do Porto e, no governo de Saldanha, em 1847, ministro da Justiça.

O jantar em casa dos avós tinha sido animado. O José Maria já se soltava mais, apesar do rigor que o avô exigia à mesa: nunca falar com comida na boca, não levantar os talheres enquanto se fala, não bater com os mesmos no prato, etc., etc. Naquela mesa da sala de jantar, tão grande, ele sentia-se distante de todos. O avô era brincalhão, mas muito comedido quanto a, como dizia, «libertinagens». A avó, depois daquela sessão em que o amarfanhou e lambuzou todo, deglutia com vagar o lombo assado e bebericava, de vez em quando, um pouco de água do Carocho. Para destoar desta atmosfera enfadonha, estava o alegre Mateus, que lhe fazia esgares de junto do loiceiro, revirando os olhos e pondo-lhe a língua de fora. 

Assim iam os dias do menino José Maria na Quinta da Torre, por entre correrias desenfreadas pela casa, quando o avô não estava, ou a ouvir as muitas histórias misteriosas que Mateus lhe contava, sentando o pequeno nos seus joelhos. Às vezes, também, fugia até à cozinha ampla para desapertar o avental de Rosa. Esta fingia que ficava muito zangada e ia atrás dele com uma grande colher de pau, que usava para calcar as couves, logo que as virava para a panela em fervura, praticamente cozidos o peixe e as batatas. Outras vezes, Rosa cantava-lhe cantigas de embalar, que aprendera nas duras sanzalas.

José Maria foi crescendo a ouvir as glórias deste avô de verve rija; a ouvir os versos que a avó Teodora lhe lia ao serão; a escutar as histórias fascinantes de um casal de negros. Raramente saía da quinta, a não ser para andar no carro de mão do tio marnoto, que o levava até às marinhas e lhe ensinava a faina. Às vezes brincava com miúdos da terra, todos descalços, por entre os milheirais, que se estendiam por campos até perder de vista. As terras de milho eram a riqueza daquela gente, que amava o campo, por isso aquele lhes dava do melhor cereal, o verde milho. Noutras ocasiões, o jovem Eça juntava-se aos jornaleiros e prosternava-se em cima de uns torrões, à sombra de um salgueiro, para se lambuzar com a sardinha gorda da Costa Nova, assada na brasa com ramos de loureiro e saboreada com um abonado naco de broa, humedecida pelo molho que escorria da sarda.

Havia alturas em que pensava nos pais. Não percebia a razão de não poder estar com eles. Nunca ninguém lhe explicou, convincentemente, o porquê. Ficava a folhear, tardes inteiras, os livros com estampas do avô, a imaginar terras para além do seu limitado mundo de criança. Mas sentia a falta dos irmãos.

Numa manhã de Junho, o avô, acordado pelo chilrar dos pardais, desceu a escadaria de pedra e desapareceu por entre o renque das acácias.

Foi um Mateus irreconhecível, de ombros descaídos, que trouxe a malfadada notícia a Dona Teodora. A senhora mal teve forças para definir as tarefas de incumbência. Mal se viu sozinha na sala, desembainharam-se as lágrimas constritas nos olhos, para lhe deixarem a alma seca, apenas preenchida com a solidão da vida.

O desembargador Queirós tinha, finalmente, soçobrado, depois de uma vida plena, recheada de hinos à liberdade. Foi no seu retalho do paraíso que encontrou a eterna liberdade dos heróis, ladeado por acácias, pinheiros mansos e plátanos. Ninguém, jamais, o conseguiu amordaçar, meter-lhe o baraço, içá-lo ao cadafalso, decepar-lhe a cabeça, para depois o seu corpo se resumir a um punhado de cinzas voláteis. Jamais quebrou, apenas caiu, quando quis, no seu tapete de flores, respondendo ao chamamento trinado dos pardais do seu quintal.

A Quinta da Torre, refeita das exéquias, de novo se erguia com as traquinadas do pequeno José Maria, que se esgueirava para o alto como um grou. Urgia ensiná-lo a ler e escrever, tarefas que exigiam conhecimentos de mestres habilitados. Mateus e Rosa mostraram-lhe como era a vida; a avó incutira-lhe o gosto pelas palavras; o avô o vigor, a robustez e a valentia. Coube ao padre António Gonçalves Bartolomeu ensinar-lhe as primeiras letras, que ele devorava com sagacidade.

— Avó, avó, conheces a história de Simão de Nântua? — gritava o José Maria por toda a casa.

Mas a avó, ao contrário de todos os outros dias, em que madrugava sempre, ainda não tinha saído do quarto. Naquele dia quente de Junho, tal como o amado esposo no afago do renque, preferiu não acordar. Sempre que se deitava, havia cinco anos, virava-se maquinalmente para o lado do seu Joaquim e estendia a mão direita para o chegar a si, corpo com corpo, amor com amor. Adormecia saciada com as boas-noites do adorado neto. Não poderia haver maior alegria na sua vida. Via-o crescer, de olhinhos inquiridores e pensamento aguçado. Naquela noite, quando Dona Teodora volveu a mão direita para o desembargador, encontrou os lençóis levemente quentes. Sabia que não era capaz de tornar a acordar.

Um duro golpe, este, para o pequeno José Maria. Toda a sua vida, pois, dez anos de vida, tinha visto pessoas a chegar e a partir. Toda a sua vida tinha sido, até ali, uma despedida. A mãe deixara-o, mal ele nasceu, aos cuidados de Ana. Quando já se afeiçoava a esta, o destino leva-lhe aquelas mãos que o embalaram vezes sem conta. Agora ali, em casa dos avós, onde tentava ser feliz, mais uma vez via partir quem amava. Sabia que nunca poderia levar as gerberas a Ana, como lhe tinha prometido o avô. Percebeu isso durante o funeral da avó, no cemitério do Outeirinho. As flores não vão para o Céu. Via-as lá, em jarras e jarrões, umas murchas outras secas. Onde caiu o avô, pelo contrário, as gerberas não tinham murchado, tinham dado mais flores; todos os anos, aliás, davam flores. Os homens põem pedra para esterilizar um rectângulo de terra que anseia por vida, por germinação. O Céu, sabia agora, era apenas um lugar de passagem, um reflexo do amor que se quer que continue, que não cesse. As sementes germinam na terra fecundada, não no mármore estéril.

Pouco dormira durante a noite. Ali, de frente para o espelho, ajeitava o lacinho de seda junto ao pescoço esguio. Mateus já o esperava na sala de entrada, com a sua casaca dobrada sobre o braço direito. Odiava despedidas, havia de odiar sempre as despedidas. Na noite anterior despediu-se da criadagem e de Rosa.

— Adeus, Rosa, nunca deixes de cantar — pediu-lhe, com a boca colada ao seu ombro fofo e com os braços entrelaçados no seu tronco roliço.

— Adeus, meu querido, vou ter muitas saudades de ti — balbuciou Rosa, por entre um mar de soluços.

Foi até à janela despedir-se dos milheirais e, mais além, das salinas, com os seus  picos alvos a erguerem-se em direcção ao céu. Correu o reposteiro castanho-claro e dirigiu-se, resoluto, para as escadas de madeira que o iam levar até ao rés-do-chão.

— Vamos, menino, está-se fazendo tarde — exclamou o bom Mateus, mais sombrio do que impaciente. — Tem aqui um embrulho que a Rosa me mandou entregar, diz que são bolinhos de limão para o menino não ter nenhum ratinho durante a viagem até ao Porto.

Antes de galgar o anteparo da porta, deitou um derradeiro olhar em volta da sala. Ficou prostrado no retrato do avô Queirós, mandado pintar nos últimos anos de vida, enquanto ministro dos Negócios Eclesiásticos e Justiça. «Tantas medalhas, avô. Devem-te pesar ao peito, mas tu não te dobras nunca. Serei eu capaz de segurar cá dentro o nome Queirós?»

Desta vez não estava a chover. Os pardais agitavam as acácias ao saltarem de ramo em ramo, numa chilrada colossal. O Sol anunciava-se vindo de Oriente. Pela rua, os campónios despachavam-se para as lavras. Outros, puxavam parelhas de bois carregados de moliço, acabado de desembarcar dos moliceiros.

José Maria pôs o pé de fora. Não sentia nenhuma frialdade a bater-lhe nas faces ebúrneas, mas continuava relutante em abandonar a Torre, como outrora a liteira. Não tinha a ver com nortadas, tinha a ver com o embalo das barcaças, com as areias da Costa, com os pinhais da Gafanha, com a solidez ancestral das mulheres da Ria de Aveiro. Tinha a ver com estas gentes de labuta que o acolheram, com a seiva dos Queirós. Agora, esperava-o o Colégio da Lapa, como semi-interno.

Meteu o sapato de verniz no degrau macio da liteira, as mãos às laterais e impulsionou-se para dentro. A seguir veio Mateus, que fechou a portinhola da carruagem. Arremessou, depois, três rijas estocadas na madeira da liteira, para avisar o condutor que já podiam seguir.

O liteireiro mal conseguiu ouvir as pancadas, tamanho era o rol de vitupérios que bramia por causa de uma respeitável bosta onde tinha enfiado, incauto, uma das botas, imaculadamente engraxada. «Porcaria de vida!»

Hélder Teixeira

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** Nota – O texto que aqui é apresentado é, acima de tudo, um relato ficcional, sem apurados rigores históricos. Claro que os factos são reais, como se poderá verificar em diversas biografias queirosianas, mas os enquadramentos e descrições são da minha autoria, embora, mais uma vez, tenha procurado ser fiel ao retrato que se pode fazer desta zona. O meu verdadeiro interesse residiu na Quinta da Torre, onde Eça de Queirós viveu desde 1850 a 1855. Cruzei-me vezes sem conta com esta casa, que hoje definha e se vai desmoronando aos poucos. Não posso aceitar o seu triste fim. Por isso, gostava que este texto pudesse representar uma pequena escora rumo à reabilitação tão desejada. Penso que as gerberas, infelizmente, já secaram, mas acredito que as forças vivas não vão obrigar o pequeno Eça a dizer, novamente, adeus a mais um ente querido. Não se esqueçam, ele não gostava de despedidas.

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