— «Havia uma altura em que
reinava a paz. Antes dos reis, antes das guerras. O sol brilhava mais do que
nunca, mais dourado do que o ouro. A brisa do vento balançava alegremente as
flores, as intermináveis sinfonias dos pássaros ouviam-se vindas de cima das
árvores. Tudo estava limpo. Imensidões de espécies de animais corriam na erva
fresca. Tudo era suave, tudo era mágico.».
— Por favor, pára de ler
isso, Rafa! — Disse o António.
— Qual é o problema de ler um
livro? — Perguntou o Rafael.
— O Tó tem razão — afirmou a
Mariana. — Já estamos fartos de te ouvir. Não sabes ler nada mais engraçado?
Os três amigos estavam no
parque que ficava junto às suas casas. Naquele dia quente de Verão, estar com os
amigos era óptimo. Contavam-se piadas, punha-se a conversa em dia e era bom para
descontrair, porque estar sempre metido em casa em frente da televisão ou do
computador não era nada fixe num dia tão bom como aquele.
— Que acham deste dia, hem? —
Perguntou o Rafael. — Eu acho um espectáculo, não há nada melhor do que o Verão!
— Tens razão — concordou o
António. — No Verão não há daqueles dias cinzentos em que temos de ficar em casa
fechados como se fossemos escravos.
— Temos de aproveitar estes
dias de férias em que não fazemos nada. Daqui a alguns dias já estamos em aulas
outra vez — disse a Mariana.
— Pois é. Já só falta uma
semana — lembrou o António.
— Vejam as coisas pelo lado
bom — animou o Rafael. — Ainda temos alguns dias de férias e a escola para onde
vamos é outra. Vamos para o sétimo ano, lembram-se? Vamos conhecer malta nova e
tudo, pá!
— Pois é! — Disse outra vez o
António. — Bem, é melhor ir andando para casa. A minha mãe deve estar à minha
espera.
— Eu também. — Disse a
Mariana.
— Até amanhã. — Despediu-se o
Rafael.
O António gostava muito dos
seus dois amigos. Tinham andado nas mesmas escolas desde o primeiro ano e viviam
os três na mesma rua. Do outro lado dessa rua havia um parque para onde iam aos
fins-de-semana ou nas férias, e falavam uns com os outros. Estavam na última
semana das férias do Verão, a última antes do regresso às aulas, que trazia uma
novidade para eles. Os amigos iam iniciar o sétimo ano e mudar para uma outra
escola, assim como outros alunos. Iam fazer novas amizades. Iam ter novos
professores e o António não sabia se o Rafael e a Mariana iriam continuar a ser
os seus dois melhores amigos.
À hora do jantar, a mãe do
António serviu a sopa e perguntou:
— Então, António, tudo
preparado para o novo ano de aulas que aí vem?
— Tem de ser! Este ano vai
ser a matar! — Respondeu o António.
— Óptimo! — Disse a mãe. —
Olha, já vieram as listas com os livros para a tua escola. Vamos comprá-los
depois de amanhã, porque amanhã tenho de arrumar algumas coisas.
— Está bem! — Respondeu o
António.
No dia seguinte, o António
foi ter com os seus dois amigos ao parque junto da sua casa. Entretanto, o
Rafael perguntou ao António:
— Já recebeste a lista com os
livros para a escola?
— Já. Recebi-a ontem. —
Respondeu o António.
— Eu também — disse a
Mariana. — Podemos combinar quando é que os vamos comprar para podermos ir todos
juntos.
— A minha mãe disse que ia
comigo amanhã. — Respondeu o António.
— Tudo bem! — Disse a
Mariana. — Por mim, tudo bem. De certeza que os meus pais vão concordar em ir
amanhã. E tu, Rafa?
— Na boa! — Respondeu. —
Amanhã podem contar comigo que eu estou lá.
— Então, até amanhã. — Disse
o António. — Tchau!
— Até amanhã!
Todos os anos, os três
amigos, o António, o Rafael e a Mariana, iam com os seus pais a uma livraria que
ficava na baixa da cidade onde viviam. Para o António, isso era óptimo. O
António gostava de partilhar momentos da sua vida com os amigos. Na maior parte
das vezes, enquanto os pais arranjavam os livros, o António podia ir para algum
sítio com os seus amigos e pôr a conversa em dia, porque, apesar de viverem os
três na mesma rua, não se viam todos os dias.
No dia seguinte, o António
foi com os pais à baixa para comprar os livros. Quando chegaram, o António
sacudiu os ombros e disse:
— Bem, vou andar por aí a ver
se encontro os meus amigos. Até logo!
Começou a vaguear pela baixa,
a parar aqui e ali, a ver algumas montras. Até que, passada já uma quantidade
considerável de tempo, ouviu um par de vozes familiares a chamá-lo pelo nome.
Voltou-se e viu o Rafael e a Mariana, com expressões alegres, sentados numa
esplanada. Foi ter com eles e sentou-se numa cadeira vazia na mesa dos amigos.
— Onde é que vocês os dois
estiveram? Há séculos que andava à vossa procura!
Olhou para os outros dois e,
numa fracção de segundo, viu-os trocarem olhares. Não gostou nada disso. Achou
que eles lhe estavam a omitir alguma coisa e ficou preocupado, mas tentou
esconder a preocupação e continuou:
— Vamos voltar para a
livraria. Os nossos pais já se devem ter despachado.
Depois de uma nova troca de
olhares, o Rafael e a Mariana disseram:
— Está bem!
— Bora lá!
Enquanto caminhava para a
livraria com o Rafael e a Mariana, o António pensava naquele assunto tão
estranho. Era um bocado injusto que amigos de tão longa data ficassem assim
estranhos de repente. Por outro lado, tinha medo que eles descobrissem aquilo em
que pensava. Mesmo assim, continuou a caminhar como se nada fosse. Contudo,
queria investigar o assunto. Entretanto, os três amigos chegaram à livraria no
momento em que saíam de lá os seus pais. Como já se fazia tarde, o António, o
Rafael e a Mariana despediram-se uns dos outros e acompanharam os pais de volta
para suas casas.
O António passou os últimos
dias de férias a arrumar e a rever algumas coisas para a escola. Por isso, não
pôde sair para o parque para falar com os seus amigos, Rafael e Mariana. Mesmo
assim, espreitava regularmente pela janela, para saber se eles apareciam ou não
por lá. Como não os viu durante aqueles dias todos, não se preocupou muito com a
falta que lhes pudesse fazer. Naquela altura, estava mais preocupado em
preparar-se para o regresso às aulas. Ele queria mesmo sair-se bem naquele ano.
Quando chegou a véspera do
dia do começo das aulas, a mãe do António levou-o à escola para verem as listas
das turmas. O António já sabia que ia ficar com o Rafael e com a Mariana na
mesma turma, mas não sabia que não havia mais ninguém com o nome iniciado pelas
letras entre M e R, ficando o Rafael a seguir à Mariana na listagem dos alunos.
Foram então apresentados, juntamente com os outros colegas, à directora de
turma, que lhes forneceu informações e explicou as regras da escola. A turma
tinha vinte e quatro alunos. Um deles era o Carlos. Usava óculos, tinha cabelo
curto. Rapidamente simpatizou com o António. Um outro era o Francisco, que era
alto e muito engraçado. Havia ainda o Jorge, o Henrique, o Afonso e outros
rapazes e raparigas que não eram conhecidos do António até então.
No dia seguinte, começaram as
aulas. O António ficou sentado junto do Afonso. Este era um aluno um bocado
distraído, que lhe pedia ajuda regularmente, mas o António não se importava de
lhe explicar os exercícios. O Rafael ficou sentado ao pé da Mariana. À medida
que os dias passavam, eles começaram a ter um comportamento cada vez mais
estranho. Estavam sempre a conversar um com o outro nas aulas, o que já era
esquisito, uma vez que a Mariana costumava ser uma boa aluna e, agora, perdia-se
também em brincadeiras. Os professores chamavam-lhes várias vezes a atenção.
Para além disso, desapareciam misteriosamente em quase todos os intervalos. Já
praticamente nem falavam com o António e, quando o faziam, estavam sempre a
trocar olhares como se soubessem algo de muito importante que ele desconhecia. O
António não percebia o que se passava com eles e começou a ficar seriamente
preocupado com o assunto. Achava que o Rafael e a Mariana já não queriam ser
seus amigos. Por outro lado, a sua amizade com os novos colegas de turma
evoluía. Havia na turma uma rapariga chamada Luísa, que era muito estudiosa e
simpática. Havia outra rapariga, a Catarina, que já era amiga da Luísa, porque
vinham da mesma escola. Às vezes as duas ajudavam-no a resolver alguns
exercícios. Também fez amizades com o Eduardo e com o Diogo, que eram dois
outros alunos da turma com quem andava nos intervalos.
Quando chegou o
fim-de-semana, depois de acabar os trabalhos de casa, o António saiu para dar um
passeio pelo parque, onde ia regularmente. Preparava-se para atravessar a rua,
quando viu, sentados num banco do parque, o Rafael e a Mariana a beijarem-se
calorosamente. Fez-se luz no espírito do António! Agora percebia tudo. Todos
aqueles sinais misteriosos que o tinham atormentado nos últimos dias ganhavam
significado! O António voltou para casa, porque queria pensar melhor no assunto.
Percebia que eles quisessem passar mais tempo juntos, mas perguntava-se por que
razão os seus amigos já não falavam com ele. Porque é que não lhe tinham ao
menos contado que estavam juntos? Talvez já não quisessem a sua companhia. O
António ficou aborrecido. Fechou-se no quarto, deitou-se na cama e deixou-se
adormecer.
Na segunda-feira, antes da
primeira aula, o Rafael foi falar com o António:
— Ei, António! Tenho uma
coisa para te dizer.
— Vais contar-me a história
do teu namoro com a Mariana? — Interrompeu o António. — Não te preocupes, já
descobri. Não foram lá muito discretos quando estiveram no parque no sábado.
— Pensei que ficasses um
bocado abalado com a notícia. — Disse o Rafael.
— Fiquei um pouco chateado
por não me teres contado antes. — Respondeu o António. — Pensava que, por causa
disso, já não queriam falar comigo.
— 'Tás a ver? Estávamos um
bocado inseguros em relação à tua reacção! — Desabafou o Rafael.
— Não há problema nenhum.
Continuo a ser vosso amigo. — Respondeu o António.
— Fixe! A Mariana vai ficar
contente com isso! — Exclamou o Rafael.
A partir dessa altura, o
António, a Mariana e o Rafael passaram a ser os melhores amigos de sempre, como
já tinham sido antes. Voltaram a encontrar-se no parque frequentemente. Foram os
melhores alunos da turma e terminaram o ano com excelentes resultados. Mais
tarde tiraram o curso de Medicina. Um ano depois, o Rafael casou com a Mariana.
O António foi o primeiro a receber um convite para o casamento.
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