Magia. Mundano. Monótono.
Música. Melodia. Menta. Maquilhagem. Manga.
Adoro fazer o que faço.
Adoro o cheiro a maquilhagem, o cheiro dos bastidores. Adoro os pincéis de todos
os tamanhos e feitios, as purpurinas brilhantes, as lacas, os lápis de texturas
cremosas, as escovas. Adoro as imensas luzes dos toucadores, os bancos altos
cromados e as paredes coloridas – ou às vezes brancas – do sítio onde trabalho.
Adoro pintar e desenhar.
Podia ter sido
estilista, se não tivesse desistido de estudar. A minha mestra sempre o disse.
Agora vivo na sombra das estrelas, iluminada pelos focos que se perfilam em cima
dos espelhos. Podia ter sido modelo se tivesse menos vinte quilos e menos dez
centímetros de ancas. Mas não sou. Às vezes dou por mim a pensar como teria sido
se tivesse seguido outro caminho.
Adoro o ritual
pós-espectáculo, a preparação, tudo sempre feito com o nervosismo habitual. As
horas e horas tensas, para que tudo fique perfeito e brilhe nos dois ou três
minutos em que aparece lá fora. Gostava de saber como é a vida em cima do palco,
em cima da passerelle, debaixo dos holofotes. Em vez disso, sei como é a vida
por detrás deles.
Era um dia especial.
Era o dia da apresentação das novas tendências Primavera-Verão em Paris. Eu fora
contratada para maquilhar os modelos e estava nervosa. Podia ser o início de uma
grande carreira. Ou não.
As luzes brilhavam
ainda mais intensamente que o habitual e os espelhos, dispostos a toda a volta
do enorme salão onde se maquilhavam os modelos, aumentavam a sensação de
infinito, mas reflectiam tons quentes e reconfortantes. Os bancos altos tinham
estofo de pele e eram duros, não muito confortáveis, o que não me agradou muito.
Os bancos são uma coisa importante. Estava calor, apesar do ar condicionado
ligado. Característico do pós-espectáculo.
Olhei em volta,
inebriada por todo aquele conjunto de sensações. Preferia as paredes brancas de
um cabeleireiro onde trabalhara, há alguns anos, que eram frescas e harmoniosas,
adornadas por compridos quadros pintados a pastel. Ali era tudo um misto de
magia e medo, mas com uma estranha tonalidade alaranjada.
Enquanto os outros se
iam instalando, dei uma vista de olhos ao que a estilista nos tinha pedido, que,
por excentricidade desta, estava ilustrado e explicado em várias folhas de papel
de arroz, presas por um fio de seda. A própria tinha entregue um a cada
esteticista, proferindo vários conselhos e dicas: “Linhas curvas, cores quentes
e brilhantes”. Não me parecia muito difícil o trabalho.
Organizei os diversos
pincéis e os boiões coloridos em cima da mesinha que me estava destinada. Dispus
várias latas com os mais variados conteúdos a um canto e fui, a pouco e pouco,
cobrindo todo o meu espaço.
As modelos começaram a
chegar. Já não havia muito tempo. Uma ruiva com unhas pintadas a condizer e duas
loiras esqueléticas arranjavam-lhes o cabelo. Outras três pintavam unhas. Eu
fiquei com as bases. Não é das coisas que mais gosto de fazer, mas é uma grande
oportunidade. Afinal, em todas as carreiras, temos de começar por baixo.
Os olhos ficaram, como
era de esperar, para as mais experientes e pelas quais a estilista tinha maior
confiança. Tinha de estar tudo perfeito. Esperei vir a ser uma delas, um dia.
Adoro pintar olhos, com todas aquelas cores e pincéis, com brilhantes, usando
penas, usando pétalas... há tantas misturas de cores e de sensações possíveis!
Olhares frios, sedutores, inocentes, pacíficos, descontraídos, culpados,
desinteressados ou abstraídos... É uma arte! Arte de transformar e aperfeiçoar o
espelho da alma.
Parecendo que não,
maquilhar e vestir são as coisas mais demoradas do espectáculo. Dois minutos
para cada conjunto na passerelle e o desfile final não igualam as horas
gastas com a preparação. É disso que gosto no meu trabalho. Sem mim não havia
desfile. Sinto que sou necessária.
Estava tudo a correr às
mil maravilhas. Demasiado bem. As pinturas ficaram perfeitas. Ou pelo menos
esperava eu. Que tinha a estilista dito? Cores quentes e brilhantes? Mas nos
desenhos as cores eram leves e frágeis... Fiz o que ela dissera, esperando não
cometer nenhum erro. Afinal os desenhos eram como ela tinha descrito, só as
cores é que pareciam um pouco trocadas. Azul claro, rosa claro... E as cores
quentes? Não havia tempo. As dos olhos já estavam a ficar irritadas com a minha
demora. Perguntei à outra rapariga que estava a fazer o mesmo que eu como o
devia fazer, mas ela só falava francês. Nunca fui muito boa a francês, por isso
limitei-me a despachar tudo e a rezar para que desse bem.
O meu grande erro.
Se eu tivesse visto a
capa do livrinho! Se eu tivesse prestado atenção a tudo!
Mas não se pode voltar
atrás... O mal estava feito.
As dos olhos nem
repararam nos meus erros. Estavam mais preocupadas em fazer um trabalho
perfeito. Dei uma espreitadela ao livro da minha colega e reparei que era
diferente do meu! Catástrofe!
Fui ao encontro das dos
olhos, apressada, mas as modelos já estavam a desfilar! Horror! Despedida logo
no primeiro dia!
A princípio ninguém
reparou; mas quando a estilista olhou bem para as modelos, foi o fim...
Algumas modelos tinham
já passado pela passerelle e a estilista, não querendo fazer um escândalo
que ainda piorasse o estado das coisas, deixou o desfile continuar. Impaciente,
procurou o responsável por tudo aquilo... E claro, encontrou-me.
Senti-me pequenina,
enquanto ela abria caminho para mim, muito irritada. Podia ter sido como ela,
pensei outra vez, e estar nesse momento a discutir com alguém inferior. Afastei
esses pensamentos.
Não houve tempo para
dizer nada. O desfile estava a chegar ao fim e estava na altura de a estilista
aparecer radiante na passerelle, acompanhada pelas suas modelos. Ela ficou a
meio de uma frase, com a boca aberta, quando a chamaram.
Eu tremia da cabeça aos
pés durante os últimos segundos, mas, para minha surpresa, quando a estilista
voltou estava muito mais alegre. Fiquei seriamente confusa. E ela sorria, com um
sorriso bastante plástico, proporcionado pela cor do batom: #CC0000 – framboesa
a puxar para o vermelho.
“Fomos esplêndidas!
Eles adoraram! Adoraram o contraste das cores! Adoraram a maquilhagem! Os
contrastes de tecidos! As rendas! Os tons claros misturados com tons fortes!”
As palavras ecoavam nas
paredes da minha cabeça. O meu erro colossal tornara-se num sucesso... e nem uma
palavra de agradecimento!
Foi nesse momento que
decidi abrir a minha própria empresa, o meu próprio negócio. Criei uma marca de
maquilhagem. Agora sou um sucesso. Ainda melhor que esta estilista, melhor do
que eu alguma vez sonharia. Tudo à conta dos meus novos batons hidratantes
extra-volume #CCCC99 – cor de burro quando foge e #AAA300 – arco-íris platinado.
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