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Inês Santana Oliveira
(
10º Ano - Secª J. Estêvão)

Magia


 

Magia. Mundano. Monótono. Música. Melodia. Menta. Maquilhagem. Manga.

Adoro fazer o que faço. Adoro o cheiro a maquilhagem, o cheiro dos bastidores. Adoro os pincéis de todos os tamanhos e feitios, as purpurinas brilhantes, as lacas, os lápis de texturas cremosas, as escovas. Adoro as imensas luzes dos toucadores, os bancos altos cromados e as paredes coloridas – ou às vezes brancas – do sítio onde trabalho. Adoro pintar e desenhar.

Podia ter sido estilista, se não tivesse desistido de estudar. A minha mestra sempre o disse. Agora vivo na sombra das estrelas, iluminada pelos focos que se perfilam em cima dos espelhos. Podia ter sido modelo se tivesse menos vinte quilos e menos dez centímetros de ancas. Mas não sou. Às vezes dou por mim a pensar como teria sido se tivesse seguido outro caminho.

Adoro o ritual pós-espectáculo, a preparação, tudo sempre feito com o nervosismo habitual. As horas e horas tensas, para que tudo fique perfeito e brilhe nos dois ou três minutos em que aparece lá fora. Gostava de saber como é a vida em cima do palco, em cima da passerelle, debaixo dos holofotes. Em vez disso, sei como é a vida por detrás deles.

Era um dia especial. Era o dia da apresentação das novas tendências Primavera-Verão em Paris. Eu fora contratada para maquilhar os modelos e estava nervosa. Podia ser o início de uma grande carreira. Ou não.

As luzes brilhavam ainda mais intensamente que o habitual e os espelhos, dispostos a toda a volta do enorme salão onde se maquilhavam os modelos, aumentavam a sensação de infinito, mas reflectiam tons quentes e reconfortantes. Os bancos altos tinham estofo de pele e eram duros, não muito confortáveis, o que não me agradou muito. Os bancos são uma coisa importante. Estava calor, apesar do ar condicionado ligado. Característico do pós-espectáculo.

Olhei em volta, inebriada por todo aquele conjunto de sensações. Preferia as paredes brancas de um cabeleireiro onde trabalhara, há alguns anos, que eram frescas e harmoniosas, adornadas por compridos quadros pintados a pastel. Ali era tudo um misto de magia e medo, mas com uma estranha tonalidade alaranjada.

Enquanto os outros se iam instalando, dei uma vista de olhos ao que a estilista nos tinha pedido, que, por excentricidade desta, estava ilustrado e explicado em várias folhas de papel de arroz, presas por um fio de seda. A própria tinha entregue um a cada esteticista, proferindo vários conselhos e dicas: “Linhas curvas, cores quentes e brilhantes”. Não me parecia muito difícil o trabalho.

Organizei os diversos pincéis e os boiões coloridos em cima da mesinha que me estava destinada. Dispus várias latas com os mais variados conteúdos a um canto e fui, a pouco e pouco, cobrindo todo o meu espaço.

As modelos começaram a chegar. Já não havia muito tempo. Uma ruiva com unhas pintadas a condizer e duas loiras esqueléticas arranjavam-lhes o cabelo. Outras três pintavam unhas. Eu fiquei com as bases. Não é das coisas que mais gosto de fazer, mas é uma grande oportunidade. Afinal, em todas as carreiras, temos de começar por baixo.

Os olhos ficaram, como era de esperar, para as mais experientes e pelas quais a estilista tinha maior confiança. Tinha de estar tudo perfeito. Esperei vir a ser uma delas, um dia. Adoro pintar olhos, com todas aquelas cores e pincéis, com brilhantes, usando penas, usando pétalas... há tantas misturas de cores e de sensações possíveis! Olhares frios, sedutores, inocentes, pacíficos, descontraídos, culpados, desinteressados ou abstraídos... É uma arte! Arte de transformar e aperfeiçoar o espelho da alma.

Parecendo que não, maquilhar e vestir são as coisas mais demoradas do espectáculo. Dois minutos para cada conjunto na passerelle e o desfile final não igualam as horas gastas com a preparação. É disso que gosto no meu trabalho. Sem mim não havia desfile. Sinto que sou necessária.

Estava tudo a correr às mil maravilhas. Demasiado bem. As pinturas ficaram perfeitas. Ou pelo menos esperava eu. Que tinha a estilista dito? Cores quentes e brilhantes? Mas nos desenhos as cores eram leves e frágeis... Fiz o que ela dissera, esperando não cometer nenhum erro. Afinal os desenhos eram como ela tinha descrito, só as cores é que pareciam um pouco trocadas. Azul claro, rosa claro... E as cores quentes? Não havia tempo. As dos olhos já estavam a ficar irritadas com a minha demora. Perguntei à outra rapariga que estava a fazer o mesmo que eu como o devia fazer, mas ela só falava francês. Nunca fui muito boa a francês, por isso limitei-me a despachar tudo e a rezar para que desse bem.

O meu grande erro.

Se eu tivesse visto a capa do livrinho! Se eu tivesse prestado atenção a tudo!

Mas não se pode voltar atrás... O mal estava feito.

As dos olhos nem repararam nos meus erros. Estavam mais preocupadas em fazer um trabalho perfeito. Dei uma espreitadela ao livro da minha colega e reparei que era diferente do meu! Catástrofe!

Fui ao encontro das dos olhos, apressada, mas as modelos já estavam a desfilar! Horror! Despedida logo no primeiro dia!

A princípio ninguém reparou; mas quando a estilista olhou bem para as modelos, foi o fim...

Algumas modelos tinham já passado pela passerelle e a estilista, não querendo fazer um escândalo que ainda piorasse o estado das coisas, deixou o desfile continuar. Impaciente, procurou o responsável por tudo aquilo... E claro, encontrou-me.

Senti-me pequenina, enquanto ela abria caminho para mim, muito irritada. Podia ter sido como ela, pensei outra vez, e estar nesse momento a discutir com alguém inferior. Afastei esses pensamentos.

Não houve tempo para dizer nada. O desfile estava a chegar ao fim e estava na altura de a estilista aparecer radiante na passerelle, acompanhada pelas suas modelos. Ela ficou a meio de uma frase, com a boca aberta, quando a chamaram.

Eu tremia da cabeça aos pés durante os últimos segundos, mas, para minha surpresa, quando a estilista voltou estava muito mais alegre. Fiquei seriamente confusa. E ela sorria, com um sorriso bastante plástico, proporcionado pela cor do batom: #CC0000 – framboesa a puxar para o vermelho.

“Fomos esplêndidas! Eles adoraram! Adoraram o contraste das cores! Adoraram a maquilhagem! Os contrastes de tecidos! As rendas! Os tons claros misturados com tons fortes!”

As palavras ecoavam nas paredes da minha cabeça. O meu erro colossal tornara-se num sucesso... e nem uma palavra de agradecimento!

Foi nesse momento que decidi abrir a minha própria empresa, o meu próprio negócio. Criei uma marca de maquilhagem. Agora sou um sucesso. Ainda melhor que esta estilista, melhor do que eu alguma vez sonharia. Tudo à conta dos meus novos batons hidratantes extra-volume #CCCC99 – cor de burro quando foge e #AAA300 – arco-íris platinado.

 

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