O olhar vazio para o invisível
E
uma
coisa
duas coisas
quatro coisas
vinte e três
coisas
novecentas e
uma coisas
três mil,
trezentas e sete coisas
oito milhões,
quinhentos e setenta e nove mil, quatrocentos e dezoito coisas
sete biliões,
trezentos e quarenta milhões, oitocentos e dezanove mil, cento e uma…
coisas
Era uma vez…
um
velho-de-sapatos-apertados. Este velho tinha milhares e milhares de mãos,
muitas, muitas mesmo. Todos os dias, levantava-se bem cedo e, ao abrir os olhos,
devagar, a custo, a primeira coisa que fazia era estendê-las muito, muito…
Elas faziam um barulho terrível, tão forte que acordava as nuvens e começava
a chover. As suas mãos fabricavam milhares e milhares de coisas que ele nunca
tinha visto antes Nem compreendia bem.
O
velho-de-sapatos-apertados tinha um rosto cor-de-cinza, curvadas as suas costas,
e as mãos, aquelas muitas mãos eram febris. Mas, por vezes, quando descobria
uma coisa nova, os seus grandes olhos brilhavam de euforia e ria, ria como o
vento e o frio. Dançava e pulava tanto que os seus sapatos pareciam encolher
mais. As mãos gritavam na sua linguagem, alto, muito alto. E as novas coisas
iam surgindo nos dias do velho-de-sapatos-apertados. Tinham sempre o mesmo nome,
esse nome que as mãos gritavam entorpecidas: “meu”. E, assim, o velho e as
suas mãos fabricavam mais e mais “meus”. Elas tinham-se tornado cada vez
maiores e, agora, tudo o que tomavam chamavam…
“meu”.
Um
dia, o vento e o frio trouxeram-lhe a humidade, a degradação e a podridão que
iam, rapidamente, deteriorando os seus inúmeros “meus” e, com eles, o medo
e a ansiedade para a alma do velho-de-sapatos-apertados por todas aquelas coisas
a que chamava
“meus”.
Para que não desaparecesse de noite o que de dia juntara, o velho via-se
obrigado a permanecer vigilante. O seu sono nunca era, por isso, verdadeiramente
profundo. Estava agora forçado a ter as mãos e o espírito constantemente
presos às pontas dos seus ”meus”.
Passou assim
muito tempo. O seu corpo, cansado, pedia-lhe repouso. O seu espírito definhava,
sumido e triste.
Parou um
pouco. Lá fora, ouviu o mexer das árvores, o calor de um canto jovial, o dançar
ao Domingo em plena luz… Ouviu vozes e sorrisos… O Sol estirava os seus
grandes raios brilhantes como um gato laranja numa ombreira. O vento e o frio
haviam desaparecido. Na rua, as pequenas poças de água cintilavam reflectindo
o Sol vaidoso e alegre. Os meninos saíam à rua contentes. Os sapos tornaram-se
azuis, as caudas abanavam os cães, as buganvílias cresciam gigantes. Tudo se
espreguiçava. O velho-de-sapatos-apertados ouviu o correr de uns pezitos descalços
e, estremunhado, viu, na sua janela, um menino com a carita toda esborrachada na
vidraça. Tinha as suas mãozitas brancas cor-de-esteva, pequeninas e cheias…
de Sol, espalmadas no vidro baço. O menino sorriu e fugiu.
O
velho-de-sapatos-apertados olhou o chão e lamentou as imensas coisas que ainda
tinha que fazer, e as outras tantas coisas para arrumar…e ordenar… e
velar…e catalogar… e…
*
- Abre os
olhos! O que é que vês?
- … Muita
coisa, sei lá!...
- Não sabes
o que vês?
- Sei! Só
estava a dizer que é muita coisa o que vejo… De vez em quando, fazes cada
pergunta…
- Porquê? Não
achas importante?
…
Não. Deves ver o mesmo que eu. Para que é que perguntas…?
*
emovere: pôr
em movimento, contém o termo “moção”; origem etimológica da palavra emoção.
Posso dizer,
então, que as emoções nos põem em movimento, nos fazem agir; que são o
motor dos nossos comportamentos e da nossa atitude perante o mundo, nós mesmos
e os outros. Mas os movimentos ou reacções gerados pelas emoções não se
situam somente no ambiente exterior. Muitos deles são produzidos dentro de nós
e constituem o nosso interior d’alma As nossas emoções são únicas e, por
isso, cada dia aumentamos a riqueza a que chamamos Humanidade.
São como
batutas de um maestro exigente que segue uma partitura inacabada.
Sim, somos música!
Concentra-te e escuta.
*
- Então
agora fecha os olhos…O que é que vês?
- … Vejo
negro…
- Tens a
certeza?
-
… NÃO!
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