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Emanuel Verdade da Madalena
(
N.º 11 – 10º Ano)

In Memoriam


Apenas consigo respirar a tua vida. Sem ela o que será o meu ar?
Tu foste o mais próximo do céu que eu alcancei.
Tu foste o anjo que me levou ao paraíso.
E agora?
Onde foste?
Para onde foste?
Agora, já só me levas à loucura, ao inferno, e a anos de insónias.

 

In memoriam

“Os que estão vivos sabem que hão-de morrer, mas os mortos não sabem nada , nem recebem mais recompensa, porque a sua lembrança está esquecida.”
                                         Bíblia Sagrada, Eclesiastes: 9; 5

 

Ando perdido pelo mundo como folhas de Outono pelos campos, voando ao vento rápida e furiosamente, arrastando comigo restos de seres, poeira comum, folhas caídas, almas perdidas.

Mas não me perco com a obsessão de chegar ao céu ou ir à lua porque não existem montanhas pálidas como  neve, nem favos de mel, nem oceanos húmidos de obscenidades que me desviem de aproveitar a vida, de temer a morte e de desejar o teu amor.

Às vezes ainda penso em ti, na tua voz melodiosa, mas segura, que não mata, mas fere todos os que a ouvem solenemente, ainda recordo os teus olhos infinitos como duas esferas coloridas de ódio, de paixões, de vivências desesperadas e saborosas que me fitam o coração e arrependem o idiota e o falhado que há em mim, e ainda vejo o teu sorriso com a sua força hercúlea que me remove definitivamente do pesadelo de um coração vazio.

Sinto-me incompleto por te ter deixado fugir.

De dentro de mim e para mim surge uma desgraça profunda para sempre presente, perene, que me mata por dentro e não me dá descanso.

Nesta noite iluminada pela lua e pelas estrelas, quando sinto o vento na cara e nas mãos, escrevo-te às cegas, resgatando emoções perdidas no firmamento das ilusões do universo da alma, emergindo do mundo onde reina a podridão individual de cada um, e encontro um alento ao descobrir-te uma vez mais.

- o O o -

Os terrenos lamacentos da minha Frágil sanidade onde me encontro estão-me, lentamente, como os corvos, avançando com o bico numa carcaça morta, a roubar a pouca, mas firme, alegria que ainda me restava.

Outrora, já depois daquele dia, pensava que não irias morrer nunca, pesar de fisicamente já não estares presente, pensava que, apenas te lembrando como eras, a tua beleza, as tuas expressões de tristeza e apreensão, o teu sorriso verdadeiramente imortal me bastava para te manter viva.

Mas enganei-me…

Pensava que se eu te amasse com uma força imensa e uma vontade extrema nunca me abandonarias e eu nunca sentiria a tua falta.

Mas estava errado…

Apercebi-me, naquela tarde fria, já não estava a chover, mas a terra ainda cheirava a húmido e as poças de água reflectiam o sol, cegando os olhos de vez em quando.

O vento, que não era muito, chegava para fazer rodopiar um punhado de folhas castanhas, abandonadas e esquecidas por uma velha árvore que teimava em anunciar o seu fim.

O caminho não era longo, mas as pedras do passeio estavam de tal forma irregulares que era necessário uma pequena atenção para não cair, daqueles estados de alerta que temos em segundo plano do nosso pensamento e que, às vezes, sentimos, mas temos de esforçar para descobrir a origem: era assim, envolto num nevoeiro grande de ideias, que caminhava , perdido comigo mesmo, sentindo a atmosfera para me acalmar.

Foi então que, aproximando-me duma zona desta velha cidade onde andavam outros transeuntes, quem sabe, como eu, vi um mendigo como tantos outros que se vêem, infelizmente, por todo o lado a lutar contra a indiferença da sociedade na ânsia desesperada por um alento monetário que uns trocos inúteis podem trazer.

Uma senhora olhou o pobre ser, mas, ao contrário de todos os outros, sentiu pena do desgraçado e buscou no bolso do casaco algumas moedas perdidas. Felizmente para o homem, ela encontrou algum dinheiro que acabou por oferecer ao pedinte que respondeu um já ensaiado, mas não menos sincero: “Obrigado, e que Deus a ajude!”.

Quando assisti a essa cena parei de repente: o meu peito encheu-se do vácuo imenso que, por vezes, me invadia o corpo e comecei a correr para casa.

Não me importando com os transeuntes que me fitavam, corria rapidamente: queria ir para o meu lar, talvez fechar-me no quarto para pensar mais claramente.

Mas não cheguei a tempo: os pensamentos vieram até mim mais rápido do que eu fui a eles, e agora corríamos juntos, já sem aparente destino.

Quando uma pessoa ama espera sempre que a amem de volta assim como a senhora esboçou um sorriso quando lhe agradeceram o seu pequeno acto com uma pequena frase.

Era esta a ideia, cuidadosamente traduzida por palavras, que me ecoava nas têmporas e que parecia querer sair à força do meu peito.

Quando cheguei finalmente ao meu quarto, e olhei para a tua fotografia, compreendi que já nada iria ser como antes e nunca mais iria ser feliz agora que tinha percebido o porquê da angústia que sentia.

Nunca mais iria ver o meu amor retribuído depois daquele dia em que tu deixaste o mundo.

- o O o -

Não se vê nada no reflexo de um espelho noutro igual além de algo que, ficando entre os dois, não está lá , mas que nós precisamos de acreditar e adorar.

Algo que nos confunde, que nos encontra, que nos perde e, talvez, quem sabe, nos ama…

Sempre acreditei que isso existiria apesar dos nomes que lhe dessem: uma força superior que nos controla e protege do mal era algo que, para mim, faria sentido existir.

Talvez fôssemos castigados de cada vez que fizéssemos algo de mal. Tudo bem. Mas agora, imbuído na minha mente, não consigo mais acreditar nisso quando não encontro nada que tenha feito de tão grave para me privar de amar e ser feliz.

Independentemente dos nomes, como já disse, mas também apesar das infinitas variedades de maneiras de apresentação, dos conjuntos de valores, ou das ideias que cada entidade divina possa ter, o conforto e a esperança que dão é sempre igual e, portanto, todos devem provir da mesma matéria, das mesmas necessidades humanas.

Esta revolta que sinto contra essas forças maiores é apenas provocada pela minha incompreensão de tudo o que se passou comigo e contigo, pela incompreensão dos motivos que levaram a isto tudo, à minha infelicidade, ao meu estado de quase insanidade mental, e à tua morte.

Contudo, que posso eu fazer? …quando já nem tenho algo para acreditar e já nem tenho nada para amar, o que posso fazer para me manter vivo e ter esperança?

- o O o -

Lentamente acordei… estava deitado com a cabeça no teu peito…

Tu ainda dormias e eu fiquei ali contigo, ao teu lado, a olhar a janela e o luar que iluminava o exterior.

Fiquei a ouvir o teu coração bater, lento, compassado…

Beijei-te nos lábios, no pescoço, afaguei-te os cabelos…

Continuei ali a ver-te respirar…Ainda me lembro de tudo como se estivesse a viver isso agora.

Mexeste ligeiramente a tua mão como para me procurar…

As tuas pálpebras comprimiram-se ao de leve…

Uma gota de suor aflorou na tua testa, deslizou e viajou para os teus olhos fechados…

E compreendi que a tua beleza,  impossível  de ser pintada, interpretada, adquiria mais vigor com a lua e as estrelas como cenário…

Tanta beleza em ti naquela noite, tanta beleza no mundo…

Parecia que não ia aguentar estar a presenciar tal visão, como se não devesse observar isso, como se fosse demasiadamente belo para poder ser visto.

Talvez fosse só um único sentimento, uma mistura de muitos outros, uma súbita clareza, uma angústia de felicidade. Não sei…

Só sei que ao recordar momentos como este vejo a minha salvação e a minha desgraça a caminharem a par, sorridentes e simpáticas uma com a outra, mas prontas a traírem-se mutuamente.

Esta noite estiveste comigo mesmo sem estares presente.

Talvez eu tenha estado mais em ti do que tu em mim. Não sei.

- o O o -

Já lá vai o tempo em que a chuva era pura…

Já lá vai o tempo em que a felicidade se vivia em vez de ser apenas lembrada…

Já lá vai o tempo em que eu te abraçava e te beijava…

Penso, para mim, que este desespero, esta angústia, acabou comigo de vez. Mas, como já tem acontecido por outras distintas vezes, apercebo-me do verdadeiro valor dos meus pensamentos e dou comigo enlutado por lutar contra o vencido.

Os rochedos feitos palavras prendem-me ao mundo fútil.

Não posso sair do cimo dos rochedos de onde vejo todas as encostas de horror e miséria.

O sonho que me mata ainda vive em mim…

O sonho que me mata viverá para sempre em cima dos olhos sem olhar.

No Inverno do mundo, na Primavera de alguém, no fim do nada, onde me encontro é onde me quero encontrar.

Já tendo compreendido que recordar não chega para tu viveres, apercebo-me, recordando-te e sonhando contigo, que estás a meu lado neste momento e isso chegará para que te continue a amar cada vez mais.

E isso chegará para que pelo menos eu viva…

Portanto suplico…

Suplicar a quem , ou a quê,  não interessa nem importa nada: apenas suplicar…

Suplicar mais uma vez para que possa passar a mão pelos teus cabelos e pelo teu pescoço quente.

Suplicar para voltares a sorrir, para que os teus olhos voltem a brilhar ao luar.

Suplicar para sair desta angústia, para encontrar outra vez algo que valha a pena.

Suplicar para que vivas outra vez e para que estendas , outra vez,  as mãos para dançarmos a vida e o amor.

E suplicar para que, por toda a eternidade, me ames mais do que a força desta súplica que faço.

 

Estava  de tal maneira envolto,  mais uma vez,  no horizonte subjectivo dos meus pensamentos que nem te senti entrar no meu quarto.

Vinhas com uma divinal beleza, como sempre, caminhando lenta e graciosamente para mim.

Os teus olhos pareciam sorrir para mim, mas não sorrias nem falavas: apenas caminhavas na minha direcção.

Deixei, por momentos, de olhar para ti e procurei a tua fotografia , mas tu viraste a  minha cara para ti com a mão direita.

E então, quando me beijaste longamente, e senti os teus lábios nos meus é que tudo fez sentido e tive a derradeira certeza  de que tu estavas ali.

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