A Afectividade
… e fecho os olhos, sorrio, choro. Em todo aquele imenso
preto de quando cerro as pálpebras, aparecem-me do fundo, como surgindo do
nada, pequenos ecos, pequenas cores, cheirinhos de hortelã, jasmim e canela. Ouço
uma harpa dedilhada, um boneco de corda. Sinto um sorriso. Provo o sal de uma lágrima.
Sinto debaixo de meus pés nus a frescura da erva matinal. E corro… Uma
torrente frenética, desenfreada, de sentidos passa diante de meus olhos
fechados. Quem ma pôs ali? Quem me deu a cheirar uma hortelã, percorreu comigo
prados verdes? Quem me disse que o mar não era somente azul? Quem me lembrou o
inocente dançar das ramagens? E os desenhos encantados marcados na areia
molhada?
Guardo
em segredo uma caixinha de cores, diluentes, pincéis, espátulas… que enriqueço
quando encontro alguém em quem pousar o meu olhar. Isso em qualquer sítio, na
rua, no autocarro, num café ou, simplesmente, onde alguém se lembre de pairar
aquando eu…Nas espontâneas marcas de um vidro embaciado…ou nos riscos a
giz… ou em páginas escritas a tinta d’alma… ou em sentimentos esculpidos,
pautados… que para sempre ecoam no meu ouvido. Delas conheço, principalmente,
as suas vontades, projectos e necessidades. Tudo isto me é dado – se bem que
de forma dúbia – quase sempre de maneira inconsciente: ou por passos sofridos
e pesados, por olhares, por palavras e expressões quase involuntárias e por
marcas sulcadas na alma…
Nalguns
casos, o meu olhar mais intenso remexe, revira, revolve, relaciona, rebusca, e
mais outros tantos “res” que transpiram uma forte e dinâmica relação. Ela
tem tanto de curiosidade como de loucura. Uma guerra nunca perdida. Um tactear
atrevido, quase infantil. Um olhar de soslaio… Uma dança frenética. Num
descobrir e achar, numa vontade de criar pontes comuns, geram-se alguns
conflitos e surpresas que nos fazem conhecer o outro, cada dia de maneira mais
completa e complexa.
Apenas
raramente a relação é espantosamente intrínseca. O sentir transpõe
barreiras físicas. A comunicação verbal é desnecessária. A relação é
constante, perpétua e mútua. O outro é mais importante que nós mesmos.
Conhecem-se os seus cantos, as coordenadas da sua alma, as inseguranças e
falhas, o esplendor da sua individualidade, o seu valor humano. Percebem-se
dores, entusiasmos, preocupações e sonhos como se fossem nossos. Encontro
nessas pessoas uma parte de mim, ou… talvez em mim as encontre. Vejo esboços
meus conhecidos, apenas com tonalidades diferentes… muitas vezes quase
imperceptíveis, que nem distingo. Conversa-se sobre quase tudo… (sei que
talvez não fosse de aceitar, mas temos sempre, inelutavelmente, os nossos
segredos e mistérios que, uns mais que outros, teimam em não deixar passar por
variadas razões. Mas também sei que muitos transparecem inconscientemente, num
alerta que não se quer dar, numa reacção menos pensada…) Fala-se do que
agita a alma. Encontram-se quase sempre os mesmos valores, mas, muitas vezes,
adquiridos e fundamentados de maneira diferente, de acordo com as vivências de
cada um. Por isso, as conversas são sempre um trazer para a alma caminhos mais
certos, objectivos mais firmes. Porém, apesar desta relação tão presente e
forte, existem sempre surpresas, construções… Nada já é garantido. As
expectativas são mais exigentes e, muitas vezes, os grandes choques são a este
nível, e eles quase sempre exteriorizam conflitos internos, não relacionais
como na maioria das vezes. São elas que fazem a grande parte do que sou, numa
ligação que nunca é passiva.
Estas
pessoas povoam o escuro dos meus olhos fechados. São grande parte do que guardo
na minha caixinha de cores, pincéis e tantas coisas mais. E guardo-as lá
sempre… São imagens riscadas por mãos prenhas de sentir. Sem necessidade de
as ter presentes, ou de ouvir o tom da sua voz, ou de poder alcançá-las com o
esticar da mão. Elas são muito mais do que aquilo que dizem, fazem ou pensam:
são aquilo que me deixam e aquilo que me levam.
Contemplar
a doçura dum olhar, dum recorte de sol, duma sombra alongada de passos
compassados, dum sorriso sem desculpa… Sentir que tudo o que está ao nosso
redor, e o que está depois e além, nos sussurra e faz adivinhar dias cheios de
luz, surpresas e atenções amimadas… Concentrar num rosto tão intenso
emaranhado de afectos é também traçar projectos comuns, caminhos partilhados,
conhecer o coração do outro. Este conhecimento, esta intimidade tira um pouco
do infantil egocentrismo. Compreender a partilha é crescer. Compreender os
afectos, respeitá-los no outro, é enriquecer.
Tudo
na vida parece ter um carácter de demasiada urgência… as nossas vivências
também… Mas eu preciso de tempo para ter a imagem de mim mesma e da sociedade
em que estou inserida. Saber ter um espírito sempre crítico é cada vez mais
um acto de inteligência. A mediatização dos sentimentos torna-se usual e
agressiva. Apaga-se muitas vezes toda a maravilha dos afectos, deturpam-se
valores (por consequência da sociedade em geral e das suas exigências),
tornam-se as relações afectivas muito fugazes e descartáveis. Felizmente, não
sou a única criatura desperta.
Sento-me
à sombra de uma tília e filho a luz, pestanejando. Concluo que tem de haver
cada vez mais diálogo e uma actividade crítica que filtre todos os valores que
a nós chegam de um modo alucinante, como que anestesiante. Quase imóveis,
assistimos a uma sociedade em que mais importa a posição do indivíduo perante
os olhos dos outros do que perante a sua própria consciência.
O
respeito do outro passa também pelo respeito para connosco. Mas será necessário
quebrar barreiras sociais? A mudança é necessária uma vez que a sociedade e
os seus valores estão bem longe das esperanças e desejos do Ser Humano… E se
é verdade que este anseia pela perfeição terá de haver sempre mudança. Não
me chocam dois amantes na ombreira do beijo, sentados num banco de jardim. Não
me choca se o rosto de um amor tiver duas faces de cor diferentes. Não me
chocam as diferenças de idade que se projectam num espelho de ternos afectos. Não
me chocarão muito mais coisas…. Mas, na maioria das vezes, as regras
convencionadas socialmente afastam os afectos da sua natural sinceridade,
naturalidade e verdade, tendo que estar espartilhados pelo que se convenciona
correcto aos olhos dos outros.
Os
mais velhos serão sempre os meus esteios, com as suas experiências… uma
conversa amena, um café… e as coisas passam a ter a sua justa medida e valor
quando confrontadas com a nossa própria consciência. Formar é descodificar
signos, partilhar, ouvir, confrontar, traçar possíveis caminhos. Caminhos que
só nós poderemos percorrer. Nada nos afectos deverá ser descartável como a
sociedade tantas vezes nos propõe! Observo os outros, e a fidelidade e dependência
tornam-se doces amarras sem serem prisões. Laços de afecto que nos prendem…
soltando o que de melhor existe em cada um de nós.
…
e fecho os olhos, sorrio, choro e reflicto…
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