Diana Luísa Matos Lopes



Sangue de monstro corre-me nas veias

Estávamos no final do segundo período. Faltavam apenas três dias para entrarmos nas férias da Páscoa e alunos e professores encontravam-se muito excitados com as actividades que iriam decorrer nesses dias.

Todos os anos os professores davam temas para a Área-Escola e os alunos de cada turma escolhiam o que mais lhes agradava. Este ano, os temas da minha escola eram: “A comunicação e as novas tecnologias” e “Os 150 anos do ensino liceal em Aveiro e os 50 anos deste edifício”. O 8º D, a minha turma, preferiu fazer a Área-Escola sobre o segundo tema.

O meu nome é Vera e o meu primo Zeca, de 6 anos, chama-me prima Vera. Desde que veio morar em Aveiro que todos os meus amigos me tratam por Primavera. A princípio não gostava muito que me chamassem assim, mas depois acabei por me habituar.

Em Aveiro, não há nada de muito interessante para fazer. Nunca acontece nada de fantástico, excepto quando o polícia Tino foi atrás de um caniche a pensar que era um ladrão. Foi tema de conversa durante meses e todos se riam com o seu erro, até o próprio Tino! Penso que Aveiro é igual a muitas outras cidades: aventuras a sério… só nos livros!

Quando não estou em aulas, e não há nada para fazer, adoro assustar o meu priminho Zeca. Conto-lhe histórias de monstros assustadores até que ele me implore que pare. E estou sempre a troçar dele, fingindo que vejo monstros em todo o lado! Coitado do meu primo!...Consigo que ele fique de cabelos em pé, com os dentes a bater. E isso dá-me bastante gozo! O único problema é que ele vai contar tudo à minha mãe e eu apanho sempre o mesmo raspanete. Já perdi a conta das vezes que prometi não o assustar mais, mas adoro contar histórias de monstros e ele é um alvo demasiado fácil! A minha mãe diz que quando tiver idade vou ser escritora. E o meu pai que ando numa fase em que estou obcecada por monstros. Mas, na verdade, é só uma fase porque estou a passar na minha vida, não é?

Todos dizem que sou uma excelente contadora de histórias, mas ninguém acredita nelas: só mesmo o meu primo Zeca!

Penso que foi por isso que ninguém acreditou em mim no dia em que vi um monstro de verdade!... e penso que foi por isso que ninguém acreditou em mim senão quando já era demasiado tarde e o monstro já estava dentro da minha própria casa…

Mas o melhor é não contar o fim da minha história e começar pelo princípio.

Estava uma manhã ensolarada e o meu primo Zeca brincava ao pé de uma árvore enorme que fica bem no centro do nosso jardim. Dirigi-me para a sala, supostamente para ver o meu programa de televisão preferido. Aliás o que me faz levantar cedo e bem-humorada da cama, aos domingos, é aquele programa. É um programa de crianças, é verdade, mas é muito divertido! Tem monstros, tem mistério, tem aventura…que mais posso eu querer? Mas, de repente, toda a minha felicidade e o meu bom humor foram por água abaixo como se uma nuvem negra pairasse por cima da minha cabeça. Lembrei-me de que a televisão se tinha avariado e de que o meu pai não fazia tenção de a arranjar para que eu e o meu primo não passássemos horas a fio em frente dela.

Regressei então ao jardim, sentei-me junto da grande árvore e comecei a meter-me com o priminho.

— Já te contei aquela história do monstro “Come-dedos” cá de Aveiro?

— Co-co-come-dedos? – perguntou ele,  já a olhar para mim com um olhar assustado.

— Sim. Já te contei?

Não, mas tu prometeste à tia que não me contavas mais histórias de monstros! Vou-me embora!

— Esta é diferente! É verdadeira! – dentro de mim ria-ma às gargalhadas, mas, por fora, a minha expressão era séria. Não podia deixar que ele soubesse que era mentira. 

— Aconteceu mesmo nesta casa ao lado.

— Na casa da senhora Serafina? Aquela velhota?

Eu sabia que, ao começar a história, ele não descolava de mim.

— Sim, essa mesma. Lembras-te daquela piscina minúscula de plástico onde os netos dela costumam nadar?

— O André e a Joana? O que é que eles têm a ver com o monstro “Come-dedos”?

— Numa tarde de Verão, eles estavam a brincar na piscina e a Joana tinha os pés de fora. Sentiu uma coisa viscosa e quente nos dedos, mas pensou que fosse o cão da avó a brincar com ela. Primeiro sentiu cócegas, depois começou a doer um bocadinho, mas o problema era que a dor estava cada vez mais intensa. E a ficar mesmo muito forte! Tentou enxotar o suposto cão, mas, subitamente, a dor parou.

— E o que é que aconteceu?

Tinha parado a história só para ouvir aquela pergunta.

— Olhou para o pé esquerdo e já não tinha dedos.

— Mas não viu o monstro?

— Não. Ele difunde-se muito bem nas coisas.

— Oh! Que horror!

Olha, o monstro “Come-dedos” apanhou-me! Não tenho dedos!

 Ele olhou para os meus dedos descalços e…

Aaaaaaiiiii!...

…e fugiu como um tolo para casa! Era demasiado medroso para se ter apercebido que tinha enterrado os dedos na terra. Nem era preciso contar uma história: bastava uma que tivesse um monstro no meio que ele ficava logo assustado.

Mal a minha mãe se levantou da cama, e viu o Zeca embrulhado numa manta, olhou para mim de uma maneira tão penetrante que parecia querer arrancar-me toda a verdade mesmo antes de eu falar.

Vera… – começou ela na sua típica voz de quando está furiosa. – Vera, quantas vezes te pedi para não assustares o teu primo? Quantas vezes te pedi para o encorajares em vez de o pores a tremer? Queres que continue o sermão ou que arranje um gravador para não estar sempre a repetir o mesmo?

É melhor! – concordou o Zeca. – Ela nunca se vai cansar desses estúpidos monstros. Ao menos a tia não esgotava a voz!

É mesmo do meu primo!... Sempre a dizer disparates!

Vera, vem ajudar-me a pôr a mesa – ordenou a minha mãe. – Mas, primeiro, vai pôr ordem no teu quarto. Parece uma selva!

A minha mãe é muito simpática, embora eu ainda não tenha dado isso a entender, mas quando o assunto de que se trata são monstros torna-se uma fera!

Fui para o meu quarto. E, para grande surpresa minha, estava lá o Zeca! Ficara tão impressionado com a sua patetice que me veio perguntar:

Primavera…

Que queres?

É verdade que a voz se pode esgotar? – perguntou ele, com receio.

Automaticamente, tive uma ideia: lá vai outra história aterradora!

Esgotar não pode, mas podem roubá-la. E sabes qual é a causa disso?

Qual? – interrogou ele, já a ficar pálido, e com os olhos muito abertos.

O “Suga.vozes” – disse-lhe, num sussurro.

Um monstro?

— Sim. O “Suga-vozes” é um monstro que adora sugar vozes. Gosta delas fortes e graves, ou fracas e fininhas assim como a tua. Lembras-te daquele senhor que vive ao fundo da rua?...Aquele que é mudo!

Quem? O senhor Matias?

Exactamente esse! Adivinha porque é que ele é mudo.

Foi o monstro “Suga-vozes”? – perguntou, com os olhos esbugalhados.

Boa!

Mas como?

Bem… Foi há já alguns verões atrás. O senhor Matias estava sempre a implicar com tudo e com todos. Punha uma voz forte e segura e desatava a berrar com toda a gente que encontrava na rua. O monstro “Suga-vozes” gostou tanto da sua voz que a sugou e ficou com ela só para ele. E o senhor Matias ficou como tu o conheces agora… mudo!

E achas que ele me pode mesmo tirar a voz? – perguntou o Zeca já a esmagar a minha almofada , tanto era o medo.

Claro! – disse eu, num sorriso rasgado, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Mas, para ele, foi a gota de água! Ficou tão branco, tão branco, que parecia estar à beira da morte! E, pela primeira vez, tive pena dele… Contei-lhe que era tudo mentira, que a história tinha sido inventada por mim, para ver se se sentia melhor, não fosse ele ficar gago de tanto medo! Dei-lhe um chocolate para ver se ficava corado e com forças. Quando voltou ao normal, comecei a rir-me, à socapa.

 És mesmo um tontinho! – disse-lhe. Mas, no segundo seguinte, pus uma cara muito séria: — Olha, ali… estás a ver?

O quê?

Ali! Não vês? Um monstro! Ali, na janela!

Onde? – perguntou ele, já a ficar outra vez assustado.

Vera! – chamou a minha mãe – Então, querida, não vens pôr a mesa?

Vou já, mãe!

Estavas a assustar-me outra vez, não era? – disse-me o Zeca.

Eu?! Claro que não. Estava ali um monstro a sério. Só que, agora, fugiu, porque ouviu a minha mãe!

Vera! – gritou a minha mãe – Então não vens pôr a mesa?!

Estou a ir! Estou a ir!

Desci as escadas à pressa e fui pôr a mesa.

Zequinha! – chamou de novo a minha mãe – Vai acordar o teu tio, que é um dorminhoco. Está bem, querido?

Está bem, tia!

Poucos minutos depois a mesa estava pronta e a comida nos pratos.

Mas por que é que eles demoram tanto a chegar?! – interrogou-se a minha mãe.  

Querida Vera, vai ao forno ver como está a sobremesa que eu vou chamá-los.

E quando a minha mãe entrou no quarto, para chamar o pai e o Zeca, nem imaginam o que viu!...os dois a dormir o mais profundo dos sonos, a meio do mais bonito sonho. Foi um sacrifício para os acordar! A minha mãe fartava-se de os abanar, mas nada! E sabem o que ela fez? Foi à cozinha buscar tachos e panelas e fez um chinfrim danado! Até os vizinhos, ainda a dormir, acordaram, sobressaltados. Um deles, meio ensonado, veio para a rua, em pijama, e pôs-se a berrar:

Fogo! Há fogo! Acudam! Socorro!

Eu não parava de me rir. Aquilo era uma autêntica anedota! Atirei-me ao chão com dores de tanto rir, mas, o pior, é que tinha perdido as forças e não me conseguia levantar. Ria-me cada vez mais, e mais. Era uma cena tão cómica que ultrapassava todas as anedotas do mundo! Mas, rapidamente, tudo voltou à paz: o meu pai levantou-se, o Zeca também e fomos almoçar. Depois do almoço, a Raquel telefonou-me para irmos montar a nossa Área-Escola nessa mesma tarde de domingo. Ia lá estar toda a turma, incluindo a nossa directora. Não havia hipótese…tinha mesmo de ir.

Está bem, eu vou. Às 3 horas em ponto, não é?

É, sim!

Vai ser uma seca, mas pronto… paciência!

Oh! Não vai nada! Até vai ser muito divertido, vais ver!

Pronto, pronto! Também não tenho outro remédio. Adeus!

Até às 3 horas. Por favor, não te esqueças!

Não te preocupes que eu lembro-me. Às 4 horas, certo?

NÃO!

Calma, Raquel! Estava só a brincar. Eu sei que é às 3 horas, não te preocupes!

Bem… se tu o dizes…Mas aparece!

Ai, que rapariga tão melga! Daqui a nada não vou mesmo!

Mas tens mesmo de ir! Ordens da directora de turma.

O. K., Raquel! Adeusinho!

Adeus!

Por incrível que pareça, a Raquel impressionava-me. Nunca vira ninguém tão irritante em toda a minha vida. Nunca sabia quando eu falava a sério ou a brincar. E assustava-se por tudo e por nada. Às vezes pensava até que ela e o Zeca deviam ser irmãos.

Às 3 horas em ponto apareci na escola. Já lá estava muita gente e, para espanto meu, levavam todos alguma coisa comestível. Parecia que iam dar uma festa!

Raquel, porque é que há aqui tanta coisa para comer? Vai fazer-se alguma festa?

Vai, sim!

Então e tu não me disseste nada?

Não?! Devo-me ter esquecido. Mas não te preocupes porque há muito para comer.

Mas porque é que vão dar uma festa? Não faz sentido! Ainda faltam 3 dias para acabarem as aulas.

Eu sei. Mas tu conheces a Patrícia…Quando tem uma ideia na cabeça, ninguém lha tira.

Pois é! Sei disso.

E como a directora de turma concordou…Mas vamos ao trabalho, que há muito que fazer na Área-Escola!

Mas quando é a festa?

Na hora do lanche. Quer dizer… digamos que é um lanche ajantarado.

Olha! Ali está a Sara… e a Sandra! As maninhas inseparáveis.

Boa! Vamos ter com elas.

A sara e a Sandra são irmãs gémeas. Iguaizinhas. Como duas gotas de água. Nunca, na vida, as vi separadas. Quando alguém se lhes quer referir chamam-lhes maninhas. Elas, a Raquel e eu andamos sempre juntas. Onde vai uma, vão todas!

Raquel, por onde começamos? – perguntei, para ver se despachava aquilo tudo.

 Olha, tu podes ir ao sótão buscar as carteiras que eram utilizadas há 50 anos. E as maninhas vêm ajudar-me a pôr as pesquisas que os grupos fizeram em ordem e a arrumar a sala. A turma vai ajudar-nos e…

 Então e eu? Vou ao sótão sozinha? – reclamei – Não é justo!

É claro que não vais ser a única a ir buscar as carteiras. Vai haver um grupo que vai contigo, mas, se quiseres, vai agora. Só trazes duas ou três. Depois vens ter connosco e também ajudas. Está bom assim?

Que remédio!

A Raquel era a delegada de turma e transmitia-nos exactamente o que a directora de turma nos tinha a dizer. Era por isso que, às vezes, parecia ser tão mandona, mas, na verdade, não era: apenas se limitava a fazer o seu trabalho, a realizar, a 100%, o cargo que a turma lhe dera.

Tens muita sorte por ires ao sótão, Primavera – confortaram-me as maninhas, em uníssono – Nós adorávamos ir contigo, mas há muita coisa para fazer aqui em baixo. Ao menos tenta divertir-te no sótão. Disseram-nos que lá em cima é tudo completamente diferente, como se estivesses noutro tempo, noutro lugar. Até o ambiente é diferente!

Bem… é melhor ir indo, quer queira, quer não!

Subi as escadas que davam para o sótão antes do grupo que estava destinado a fazê-lo, chegar para ver se me despachava. Não sabia porquê, mas, a cada degrau que subia, parava. Estava com receio não fazia ideia nenhuma de quê.

«Ora, Vera! Estás com medo? Que pensas tu encontrar lá em cima? Monstros? Fantasmas?», ralhei comigo mesma. E isso deu-me mais coragem. «Quem é que tem medo de monstros e fantasmas? O meu primo. Não eu!»

As escadas eram em caracol e muitíssimo estreitas. Devo ter demorado meia hora para chegar lá acima. Abri a porta e, de repente, ouvi um barulho vindo de baixo.

Foi a porta! A porta bateu! Alguém fechou a porta! – exclamei – Agora me lembro que não avisei ninguém que vim para aqui! Somente a Raquel e as maninhas é que sabem e nem lhes vai passar pela cabeça que estou aqui fechada. De certeza que pensam que estou a trabalhar, que me estou a divertir aqui em cima e que não faço tenção de voltar tão cedo!»

Tive vontade de gritar. O maior grito da minha vida! Mas, subitamente, fui envolvida por uma atmosfera estranha, sinistra. Muito esquisita, mesmo! Andava tudo à roda…

«Afinal o que disseram às maninhas era mesmo verdade. É tudo completamente diferente aqui em cima. Mas eu estou a começar a ficar tonta!»

E caí, redonda, no chão.

Bem, maninhas… já são 8,30 e tenho de ir para casa. Estou é preocupada com a Primavera. Não apareceu para nos ajudar e batemos à porta do sótão, mas ninguém respondeu.

Já deve ter-se ido embora! A esta hora deve estar a contar uma das suas mirabolantes histórias ao pobre do Zeca. Coitado do rapazinho! Teve azar em ter uma prima assim!

Riram-se as três à socapa.

Mas nós temos de ir embora não é, Sandra?

 É verdade. Ainda temos de acabar de ler um livro para entregar amanhã na biblioteca. E já lá vai um dia de atraso!

Adeus, Raquel! – despediram-se as maninhas em coro.

Adeus, maninhas!

Na minha casa, o ambiente também não era dos piores. Muito pelo contrário! O meu pai e o Zeca estavam a ver o futebol e a minha mãe a lavar a loiça do jantar.

Rosa! – chamou o meu pai – Onde está a Vera? Ainda não voltou?

Não! Avisou que não jantava porque ia haver uma festa na escola.

Então… mas ela ainda não voltou?

Não te preocupes! Deve ter ido dormir a casa de uma amiga. Falou-me nessa possibilidade e disse para não nos preocuparmos. Sabes como é, nestas ocasiões!

Bem… se é assim, vou-me deitar. Vem tu também, Zeca, que já é um pouco tarde.

Eu também já lá vou ter – disse a minha mãe.

Eram dez horas da noite quando dei por mim. Não sabia onde estava, nem o que estava ali a fazer àquela hora da noite. Levantei-me e, como que por magia, lembrei-me de tudo. A luz estava apagada e, como era tudo muito escuro, acendi-a. Porém há muito tempo que não mudavam as lâmpadas e a luz era muito fraca. Era quase como se não a tivesse acendido. Esperei que os meus olhos se habituassem ao escuro para encontrar a porta. De repente, ouvi um grito brutal vindo do nada!... Desatei a correr o mais rápido que as minhas pernas o permitiam. Era a primeira vez que sentia o medo que o Zeca tinha quando lhe contava as minhas histórias. Só havia uma diferença: é que, desta vez, era tudo real! Correr, correr e correr – era a única coisa em que a minha mente se fixava. Por conta desse pensamento ia tropeçando em tudo o que se encontrava à minha frente, até que caí em cima dum boneco monstro de 4 cm. de altura.

«Mas… o que é isto? Um boneco vivo? Um monstro de verdade! E está a crescer!»

Olhei para o meu relógio digital que brilha no escuro. Era meia-noite em ponto. O monstro ficou com o dobro do meu tamanho. Queria correr, mas as minhas pernas ficaram petrificadas… Até que fiquei mesmo decidida a sair dali. Corri em direcção à porta e… eis a chave! Tinha estado no chão, do lado de dentro, aquele tempo todo. Quando bateram a porta a chave caíra! Peguei nela apressadamente e fugi para casa. Virei-me para trás e vi o horrível monstro a seguir-me. Não tinha voltado a fechar a porta!... Como é que eu me tinha esquecido? Nunca tinha desejado tanto ter-me lembrado de uma coisa!

Demorei certo tempo a chegar a casa. «A minha casa! Está mesmo ali, ao virar da esquina!»

Estou salva! – deixei escapar.

Mas o monstro continuava a seguir-me. Estava cada vez mais perto. Bati na porta de minha casa com toda a força que tinha.

PAI! PAI! MÃE! ABRAM! – gritei.

Mas que se passa? – perguntou o meu pai, ainda meio a dormir, abrindo-me a porta.

Que estás aqui a fazer a esta hora? São 3 e meia da manhã!

Eu sei, pai. Eu sei… – consegui dizer – Mas, por favor, deixa-me passar!

Entrei e bati com a porta na cara do monstro. Olhei para o lugar onde estava o meu pai e… já não estava lá. Tinha voltado para a cama. Ele não o tinha visto, ao monstro! Entrei no quarto dos meus pais e a única coisa que consegui dizer foi:

UM MONSTRO! EU VI! EU VI! EU VI UM MONSTRO!!!

VERA – gritaram os meus pais em uníssono – TU QUERES MATAR-NOS DE SUSTO?

 Mas, pai… mãe! Está um monstro lá fora! Ele veio atrás de mim. É verdade!

Vera, — disse a minha mãe calmamente – tu sabes que horas são, não sabes?

São cinco e meia da manhã.

Muito bem! – continuou a minha mãe – E achas que é uma boa hora para nos vires acordar? Não devias estar em casa de uma amiga tua?...

Não!

VERA! NÃO É HORA DE CONTARES HISTÓRIAS MALUCAS! – berrou o meu pai.

Mas… mas é verdade!

Vai-te deitar! E vê se paras de contar histórias idiotas.

E fui para o meu quarto, triste e assustada. Ninguém acreditava em mim.

«Ei! Talvez o Zeca!... Ele vai acreditar!»

E fui ao quarto dele. Abanei-o, sacudi-o e nada! Se houvesse um sismo nem dava por isso! Dei-lhe um estalo.

Finalmente! – disse-lhe eu.

Ai! Que queres tu a esta hora da noite?... Deixa-me dormir!

Espera, Zeca! Tenho uma coisa para te contar!

O quê?! – disse, indignado – Vens acordar-me, a esta hora, para me assustares?!

Mas, Zeca… É verdade! Alguma vez te menti?

Já! Muitas vezes! Agora, sai! Deixa-me dormir! SAI!

E saí. Fui para o meu quarto e, de repente, a porta da rua cai no chão e faz um enorme barulho. Saltaram todos da cama. O monstro tinha entrado! O monstro estava em minha casa! Toda a família se levantou e foi até à sala. Lá estava ele! Enorme. Nojento. Viscoso.

Mas… o mais incrível aconteceu! Os primeiros raios de sol cobriram o monstro e ele diminuía, diminuía, diminuía… até que voltou a ser boneco. Peguei nele e parti-o em mil bocados.

Fui para a minha cama um pouco mais descansada para dormir as restantes horas e depois ir para a escola. Mas os meus pais e o Zeca ficaram na sala sem saberem exactamente o que tinha acontecido.

Eram 9 horas quando o despertador tocou e acordei. Tinha guardado os bocados do boneco partido numa caixinha do meu quarto. Desci as escadas e fui tomar um grande e delicioso pequeno-almoço. Depois fui para a escola. Estava decidida a não contar nada sobre o que tinha acontecido, havia umas horas atrás, a ninguém. E assim fiz.

O dia passou rapidamente. Fomos ver as várias salas reservadas à Área-Escola. Fomos depois à nossa sala e ficámos lá a tarde toda. Às 18,30 despedimo-nos e fomos para casa.

A minha mãe tinha-me preparado um delicioso lanche, talvez ainda melhor do que o pequeno-almoço. Sabia que eu não me devia sentir muito bem depois do que acontecera. A seguir àquele apetitoso lanche, fui para o meu quarto. Deitei-me e adormeci. Estava muito cansada… quase não tinha dormido nessa noite.

Às 20 horas a minha mãe veio chamar-me para o jantar. Não comi muito, pois ainda estava a fazer a digestão do lanche. Voltei de novo para a cama. Mas já não tinha sono.

Começou a chover. As nuvens negras iam-se aglomerando cada vez mais até que começou a trovejar. O barulho dos relâmpagos era tal que parecia que a casa tremia só de os ouvir. Era meia-noite e o relógio dava as doze badaladas. A tempestade continuava e eu ainda estava acordada. Subitamente ouvi um ruído. Vinha da caixa. Daquela caixinha onde tinha posto os bocados do monstro. Estava a mexer-se… até que abriu. Vi os bocados juntarem-se, formarem de novo aquele monstro horrível! Ele crescia, crescia, crescia… tal como da primeira vez. Eu estava aterrorizada: via-o aproximar-se de mim lentamente. Via-o preparar-se para me morder como se os segundos fossem minutos intermináveis…Então lembrei-me de que estava lua cheia. Instintivamente, apercebi-me que só à luz da lua cheia é que o monstro atacava. Mordeu-me. Senti uma dor aguda no ombro e, de seguida, a janela abriu-se de rompante. A chuva entrou e atingiu o monstro. O contacto com ela fê-lo evaporar-se. Evaporar-se para sempre.

Hoje estou à janela do meu quarto. Há lua cheia e são onze e meia da noite. O monstro sabia que me tinha transmitido a maldição quando me mordeu. Ao contrário do que tinha acontecido com ele, não fiquei pequena, nem sou boneca: sou eu mesma. Continuo a gostar de contar histórias de monstros, mas, à meia-noite, e só quando está lua cheia, eu cresço, cresço, cresço… Sinto a minha pele transformar-se numa coisa verde, viscosa, nojenta. Sinto a minha cara modificar-se por completo e os meus olhos tornam-se vermelhos. Vermelhos como sangue. Em vez de falar dou gritos, solto guinchos brutais. Não posso manter-me dentro de casa quando fico assim: torno-me selvagem. Mas, quando o sol nasce e me envolve nos seus raios, volto ao normal e fico de novo a Primavera que todos conhecem.

Só que… aviso-vos: nunca se aproximem de mim enquanto for monstro. É que faço coisas que nem me atrevo a dizer, pois fico incontrolável. Nem eu própria me consigo conter! Faltam apenas cinco minutos para a meia-noite e não quero acordar ninguém com os meus guinchos aterradores.

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