Sangue de monstro corre-me nas
veias
Estávamos
no final do segundo período. Faltavam apenas três dias para entrarmos nas férias
da Páscoa e alunos e professores encontravam-se muito excitados com as
actividades que iriam decorrer nesses dias.
Todos
os anos os professores davam temas para a Área-Escola e os alunos de cada turma
escolhiam o que mais lhes agradava. Este ano, os temas da minha escola eram:
“A comunicação e as novas tecnologias” e “Os 150 anos do ensino liceal
em Aveiro e os 50 anos deste edifício”. O 8º D, a minha turma, preferiu
fazer a Área-Escola sobre o segundo tema.
O
meu nome é Vera e o meu primo Zeca, de 6 anos, chama-me prima Vera. Desde que
veio morar em Aveiro que todos os meus amigos me tratam por Primavera. A princípio
não gostava muito que me chamassem assim, mas depois acabei por me habituar.
Em
Aveiro, não há nada de muito interessante para fazer. Nunca acontece nada de
fantástico, excepto quando o polícia Tino foi atrás de um caniche a pensar
que era um ladrão. Foi tema de conversa durante meses e todos se riam com o seu
erro, até o próprio Tino! Penso que Aveiro é igual a muitas outras cidades:
aventuras a sério… só nos livros!
Quando
não estou em aulas, e não há nada para fazer, adoro assustar o meu priminho
Zeca. Conto-lhe histórias de monstros assustadores até que ele me implore que
pare. E estou sempre a troçar dele, fingindo que vejo monstros em todo o lado!
Coitado do meu primo!...Consigo que ele fique de cabelos em pé, com os dentes a
bater. E isso dá-me bastante gozo! O único problema é que ele vai contar tudo
à minha mãe e eu apanho sempre o mesmo raspanete. Já perdi a conta das vezes
que prometi não o assustar mais, mas adoro contar histórias de monstros e ele
é um alvo demasiado fácil! A minha mãe diz que quando tiver idade vou ser
escritora. E o meu pai que ando numa fase em que estou obcecada por monstros.
Mas, na verdade, é só uma fase porque estou a passar na minha vida, não é?
Todos
dizem que sou uma excelente contadora de histórias, mas ninguém acredita
nelas: só mesmo o meu primo Zeca!
Penso
que foi por isso que ninguém acreditou em mim no dia em que vi um monstro de
verdade!... e penso que foi por isso que ninguém acreditou em mim senão quando
já era demasiado tarde e o monstro já estava dentro da minha própria casa…
Mas
o melhor é não contar o fim da minha história e começar pelo princípio.
Estava
uma manhã ensolarada e o meu primo Zeca brincava ao pé de uma árvore enorme
que fica bem no centro do nosso jardim. Dirigi-me para a sala, supostamente para
ver o meu programa de televisão preferido. Aliás o que me faz levantar cedo e
bem-humorada da cama, aos domingos, é aquele programa. É um programa de crianças,
é verdade, mas é muito divertido! Tem monstros, tem mistério, tem
aventura…que mais posso eu querer? Mas, de repente, toda a minha felicidade e
o meu bom humor foram por água abaixo como se uma nuvem negra pairasse por cima
da minha cabeça. Lembrei-me de que a televisão se tinha avariado e de que o
meu pai não fazia tenção de a arranjar para que eu e o meu primo não passássemos
horas a fio em frente dela.
Regressei
então ao jardim, sentei-me junto da grande árvore e comecei a meter-me com o
priminho.
—
Já te contei aquela história do monstro “Come-dedos” cá de Aveiro?
—
Co-co-come-dedos? – perguntou ele, já
a olhar para mim com um olhar assustado.
—
Sim. Já te contei?
Não,
mas tu prometeste à tia que não me contavas mais histórias de monstros!
Vou-me embora!
—
Esta é diferente! É verdadeira! – dentro de mim ria-ma às gargalhadas, mas,
por fora, a minha expressão era séria. Não podia deixar que ele soubesse que
era mentira.
—
Aconteceu mesmo nesta casa ao lado.
—
Na casa da senhora Serafina? Aquela velhota?
Eu
sabia que, ao começar a história, ele não descolava de mim.
—
Sim, essa mesma. Lembras-te daquela piscina minúscula de plástico onde os
netos dela costumam nadar?
—
O André e a Joana? O que é que eles têm a ver com o monstro “Come-dedos”?
—
Numa tarde de Verão, eles estavam a brincar na piscina e a Joana tinha os pés
de fora. Sentiu uma coisa viscosa e quente nos dedos, mas pensou que fosse o cão
da avó a brincar com ela. Primeiro sentiu cócegas, depois começou a doer um
bocadinho, mas o problema era que a dor estava cada vez mais intensa. E a ficar
mesmo muito forte! Tentou enxotar o suposto cão, mas, subitamente, a dor parou.
—
E o que é que aconteceu?
Tinha
parado a história só para ouvir aquela pergunta.
—
Olhou para o pé esquerdo e já não tinha dedos.
—
Mas não viu o monstro?
—
Não. Ele difunde-se muito bem nas coisas.
—
Oh! Que horror!
—
Olha, o monstro “Come-dedos”
apanhou-me! Não tenho dedos!
Ele
olhou para os meus dedos descalços e…
—
Aaaaaaiiiii!...
…e
fugiu como um tolo para casa! Era demasiado medroso para se ter apercebido que
tinha enterrado os dedos na terra. Nem era preciso contar uma história: bastava
uma que tivesse um monstro no meio que ele ficava logo assustado.
Mal
a minha mãe se levantou da cama, e viu o Zeca embrulhado numa manta, olhou para
mim de uma maneira tão penetrante que parecia querer arrancar-me toda a verdade
mesmo antes de eu falar.
—
Vera… – começou ela na sua
típica voz de quando está furiosa. – Vera, quantas vezes te pedi para não
assustares o teu primo? Quantas vezes te pedi para o encorajares em vez de o
pores a tremer? Queres que continue o sermão ou que arranje um gravador para não
estar sempre a repetir o mesmo?
—
É melhor! – concordou o Zeca.
– Ela nunca se vai cansar desses estúpidos monstros. Ao menos a tia não
esgotava a voz!
É
mesmo do meu primo!... Sempre a dizer disparates!
—
Vera, vem ajudar-me a pôr a
mesa – ordenou a minha mãe. – Mas, primeiro, vai pôr ordem no teu quarto.
Parece uma selva!
A
minha mãe é muito simpática, embora eu ainda não tenha dado isso a entender,
mas quando o assunto de que se trata são monstros torna-se uma fera!
Fui
para o meu quarto. E, para grande surpresa minha, estava lá o Zeca! Ficara tão
impressionado com a sua patetice que me veio perguntar:
—
Primavera…
—
Que queres?
—
É
verdade que a voz se pode esgotar? – perguntou ele, com receio.
Automaticamente,
tive uma ideia: lá vai outra história aterradora!
—
Esgotar não pode, mas podem
roubá-la. E sabes qual é a causa disso?
—
Qual? – interrogou ele, já a
ficar pálido, e com os olhos muito abertos.
—
O “Suga.vozes” –
disse-lhe, num sussurro.
—
Um monstro?
—
Sim. O “Suga-vozes” é um monstro que adora sugar vozes. Gosta delas fortes
e graves, ou fracas e fininhas assim como a tua. Lembras-te daquele senhor que
vive ao fundo da rua?...Aquele que é mudo!
—
Quem? O senhor Matias?
—
Exactamente esse! Adivinha
porque é que ele é mudo.
—
Foi o monstro “Suga-vozes”?
– perguntou, com os olhos esbugalhados.
—
Boa!
—
Mas como?
—
Bem… Foi há já alguns verões
atrás. O senhor Matias estava sempre a implicar com tudo e com todos. Punha uma
voz forte e segura e desatava a berrar com toda a gente que encontrava na rua. O
monstro “Suga-vozes” gostou tanto da sua voz que a sugou e ficou com ela só
para ele. E o senhor Matias ficou como tu o conheces agora… mudo!
—
E achas que ele me pode mesmo
tirar a voz? – perguntou o Zeca já a esmagar a minha almofada , tanto era o
medo.
—
Claro! – disse eu, num sorriso
rasgado, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Mas, para ele, foi a gota
de água! Ficou tão branco, tão branco, que parecia estar à beira da morte!
E, pela primeira vez, tive pena dele… Contei-lhe que era tudo mentira, que a
história tinha sido inventada por mim, para ver se se sentia melhor, não fosse
ele ficar gago de tanto medo! Dei-lhe um chocolate para ver se ficava corado e
com forças. Quando voltou ao normal, comecei a rir-me, à socapa.
—
És mesmo um tontinho! –
disse-lhe. Mas, no segundo seguinte, pus uma cara muito séria: — Olha, ali…
estás a ver?
—
O quê?
—
Ali! Não vês? Um monstro! Ali,
na janela!
—
Onde? – perguntou ele, já a
ficar outra vez assustado.
—
Vera! – chamou a minha mãe
– Então, querida, não vens pôr a mesa?
—
Vou já, mãe!
—
Estavas a assustar-me outra vez,
não era? – disse-me o Zeca.
—
Eu?! Claro que não. Estava ali
um monstro a sério. Só que, agora, fugiu, porque ouviu a minha mãe!
—
Vera! – gritou a minha mãe
– Então não vens pôr a mesa?!
—
Estou a ir! Estou a ir!
Desci
as escadas à pressa e fui pôr a mesa.
—
Zequinha! – chamou de novo a
minha mãe – Vai acordar o teu tio, que é um dorminhoco. Está bem, querido?
—
Está bem, tia!
Poucos
minutos depois a mesa estava pronta e a comida nos pratos.
—
Mas por que é que eles demoram
tanto a chegar?! – interrogou-se a minha mãe.
—
Querida
Vera, vai ao forno ver como está a sobremesa que eu vou chamá-los.
E
quando a minha mãe entrou no quarto, para chamar o pai e o Zeca, nem imaginam o
que viu!...os dois a dormir o mais profundo dos sonos, a meio do mais bonito
sonho. Foi um sacrifício para os acordar! A minha mãe fartava-se de os abanar,
mas nada! E sabem o que ela fez? Foi à cozinha buscar tachos e panelas e fez um
chinfrim danado! Até os vizinhos, ainda a dormir, acordaram, sobressaltados. Um
deles, meio ensonado, veio para a rua, em pijama, e pôs-se a berrar:
—
Fogo! Há fogo! Acudam! Socorro!
Eu
não parava de me rir. Aquilo era uma autêntica anedota! Atirei-me ao chão com
dores de tanto rir, mas, o pior, é que tinha perdido as forças e não me
conseguia levantar. Ria-me cada vez mais, e mais. Era uma cena tão cómica que
ultrapassava todas as anedotas do mundo! Mas, rapidamente, tudo voltou à paz: o
meu pai levantou-se, o Zeca também e fomos almoçar. Depois do almoço, a
Raquel telefonou-me para irmos montar a nossa Área-Escola nessa mesma tarde de
domingo. Ia lá estar toda a turma, incluindo a nossa directora. Não havia hipótese…tinha
mesmo de ir.
—
Está bem, eu vou. Às 3 horas
em ponto, não é?
—
É,
sim!
—
Vai ser uma seca, mas pronto…
paciência!
—
Oh! Não vai nada! Até vai ser
muito divertido, vais ver!
—
Pronto, pronto! Também não
tenho outro remédio. Adeus!
—
Até às 3 horas. Por favor, não
te esqueças!
—
Não te preocupes que eu
lembro-me. Às 4 horas, certo?
—
NÃO!
—
Calma, Raquel! Estava só a
brincar. Eu sei que é às 3 horas, não te preocupes!
—
Bem… se tu o dizes…Mas
aparece!
—
Ai, que rapariga tão melga!
Daqui a nada não vou mesmo!
—
Mas tens mesmo de ir! Ordens da
directora de turma.
—
O.
K., Raquel! Adeusinho!
—
Adeus!
Por
incrível que pareça, a Raquel impressionava-me. Nunca vira ninguém tão
irritante em toda a minha vida. Nunca sabia quando eu falava a sério ou a
brincar. E assustava-se por tudo e por nada. Às vezes pensava até que ela e o
Zeca deviam ser irmãos.
Às
3 horas em ponto apareci na escola. Já lá estava muita gente e, para espanto
meu, levavam todos alguma coisa comestível. Parecia que iam dar uma festa!
—
Raquel, porque é que há aqui
tanta coisa para comer? Vai fazer-se alguma festa?
—
Vai, sim!
—
Então e tu não me disseste
nada?
—
Não?! Devo-me ter esquecido.
Mas não te preocupes porque há muito para comer.
—
Mas porque é que vão dar uma
festa? Não faz sentido! Ainda faltam 3 dias para acabarem as aulas.
—
Eu sei. Mas tu conheces a Patrícia…Quando
tem uma ideia na cabeça, ninguém lha tira.
—
Pois é! Sei disso.
—
E como a directora de turma
concordou…Mas vamos ao trabalho, que há muito que fazer na Área-Escola!
—
Mas quando é a festa?
—
Na hora do lanche. Quer dizer…
digamos que é um lanche ajantarado.
—
Olha! Ali está a Sara… e a
Sandra! As maninhas inseparáveis.
—
Boa! Vamos ter com elas.
A
sara e a Sandra são irmãs gémeas. Iguaizinhas. Como duas gotas de água.
Nunca, na vida, as vi separadas. Quando alguém se lhes quer referir chamam-lhes
maninhas. Elas, a Raquel e eu andamos sempre juntas. Onde vai uma, vão todas!
—
Raquel, por onde começamos? –
perguntei, para ver se despachava aquilo tudo.
—
Olha, tu podes ir ao sótão
buscar as carteiras que eram utilizadas há 50 anos. E as maninhas vêm
ajudar-me a pôr as pesquisas que os grupos fizeram em ordem e a arrumar a sala.
A turma vai ajudar-nos e…
—
Então e eu? Vou ao sótão
sozinha? – reclamei – Não é justo!
—
É
claro que não vais ser a única a ir buscar as carteiras. Vai haver um grupo
que vai contigo, mas, se quiseres, vai agora. Só trazes duas ou três. Depois
vens ter connosco e também ajudas. Está bom assim?
—
Que remédio!
A
Raquel era a delegada de turma e transmitia-nos exactamente o que a directora de
turma nos tinha a dizer. Era por isso que, às vezes, parecia ser tão mandona,
mas, na verdade, não era: apenas se limitava a fazer o seu trabalho, a
realizar, a 100%, o cargo que a turma lhe dera.
—
Tens muita sorte por ires ao sótão,
Primavera – confortaram-me as maninhas, em uníssono – Nós adorávamos ir
contigo, mas há muita coisa para fazer aqui em baixo. Ao menos tenta
divertir-te no sótão. Disseram-nos que lá em cima é tudo completamente
diferente, como se estivesses noutro tempo, noutro lugar. Até o ambiente é
diferente!
—
Bem… é melhor ir indo, quer
queira, quer não!
Subi
as escadas que davam para o sótão antes do grupo que estava destinado a fazê-lo,
chegar para ver se me despachava. Não sabia porquê, mas, a cada degrau que
subia, parava. Estava com receio não fazia ideia nenhuma de quê.
«Ora,
Vera! Estás com medo? Que pensas tu encontrar lá em cima? Monstros? Fantasmas?»,
ralhei comigo mesma. E isso deu-me mais coragem. «Quem é que tem medo de
monstros e fantasmas? O meu primo. Não eu!»
As
escadas eram em caracol e muitíssimo estreitas. Devo ter demorado meia hora
para chegar lá acima. Abri a porta e, de repente, ouvi um barulho vindo de
baixo.
—
Foi a porta! A porta bateu! Alguém
fechou a porta! – exclamei – Agora me lembro que não avisei ninguém que
vim para aqui! Somente a Raquel e as maninhas é que sabem e nem lhes vai passar
pela cabeça que estou aqui fechada. De certeza que pensam que estou a
trabalhar, que me estou a divertir aqui em cima e que não faço tenção de
voltar tão cedo!»
Tive
vontade de gritar. O maior grito da minha vida! Mas, subitamente, fui envolvida
por uma atmosfera estranha, sinistra. Muito esquisita, mesmo! Andava tudo à
roda…
«Afinal
o que disseram às maninhas era mesmo verdade. É tudo completamente diferente
aqui em cima. Mas eu estou a começar a ficar tonta!»
E
caí, redonda, no chão.
—
Bem, maninhas… já são 8,30 e
tenho de ir para casa. Estou é preocupada com a Primavera. Não apareceu para
nos ajudar e batemos à porta do sótão, mas ninguém respondeu.
—
Já deve ter-se ido embora! A
esta hora deve estar a contar uma das suas mirabolantes histórias ao pobre do
Zeca. Coitado do rapazinho! Teve azar em ter uma prima assim!
Riram-se
as três à socapa.
—
Mas nós temos de ir embora não
é, Sandra?
—
É verdade. Ainda temos de acabar de ler um livro para entregar amanhã
na biblioteca. E já lá vai um dia de atraso!
—
Adeus, Raquel! – despediram-se
as maninhas em coro.
—
Adeus, maninhas!
Na
minha casa, o ambiente também não era dos piores. Muito pelo contrário! O meu
pai e o Zeca estavam a ver o futebol e a minha mãe a lavar a loiça do jantar.
—
Rosa! – chamou o meu pai –
Onde está a Vera? Ainda não voltou?
—
Não! Avisou que não jantava
porque ia haver uma festa na escola.
—
Então… mas ela ainda não
voltou?
—
Não te preocupes! Deve ter ido
dormir a casa de uma amiga. Falou-me nessa possibilidade e disse para não nos
preocuparmos. Sabes como é, nestas ocasiões!
—
Bem… se é assim, vou-me
deitar. Vem tu também, Zeca, que já é um pouco tarde.
—
Eu também já lá vou ter –
disse a minha mãe.
Eram
dez horas da noite quando dei por mim. Não sabia onde estava, nem o que estava
ali a fazer àquela hora da noite. Levantei-me e, como que por magia, lembrei-me
de tudo. A luz estava apagada e, como era tudo muito escuro, acendi-a. Porém há
muito tempo que não mudavam as lâmpadas e a luz era muito fraca. Era quase
como se não a tivesse acendido. Esperei que os meus olhos se habituassem ao
escuro para encontrar a porta. De repente, ouvi um grito brutal vindo do
nada!... Desatei a correr o mais rápido que as minhas pernas o permitiam. Era a
primeira vez que sentia o medo que o Zeca tinha quando lhe contava as minhas
histórias. Só havia uma diferença: é que, desta vez, era tudo real! Correr,
correr e correr – era a única coisa em que a minha mente se fixava. Por conta
desse pensamento ia tropeçando em tudo o que se encontrava à minha frente, até
que caí em cima dum boneco monstro de 4 cm. de altura.
«Mas…
o que é isto? Um boneco vivo? Um monstro de verdade! E está a crescer!»
Olhei
para o meu relógio digital que brilha no escuro. Era meia-noite em ponto. O
monstro ficou com o dobro do meu tamanho. Queria correr, mas as minhas pernas
ficaram petrificadas… Até que fiquei mesmo decidida a sair dali. Corri em
direcção à porta e… eis a chave! Tinha estado no chão, do lado de dentro,
aquele tempo todo. Quando bateram a porta a chave caíra! Peguei nela
apressadamente e fugi para casa. Virei-me para trás e vi o horrível monstro a
seguir-me. Não tinha voltado a fechar a porta!... Como é que eu me tinha
esquecido? Nunca tinha desejado tanto ter-me lembrado de uma coisa!
Demorei
certo tempo a chegar a casa. «A minha casa! Está mesmo ali, ao virar da
esquina!»
—
Estou salva! – deixei escapar.
Mas
o monstro continuava a seguir-me. Estava cada vez mais perto. Bati na porta de
minha casa com toda a força que tinha.
—
PAI! PAI! MÃE! ABRAM! –
gritei.
—
Mas que se passa? – perguntou
o meu pai, ainda meio a dormir, abrindo-me a porta.
—
Que estás aqui a fazer a esta
hora? São 3 e meia da manhã!
—
Eu sei, pai. Eu sei… –
consegui dizer – Mas, por favor, deixa-me passar!
—
Entrei e bati com a porta na
cara do monstro. Olhei para o lugar onde estava o meu pai e… já não estava lá.
Tinha voltado para a cama. Ele não o tinha visto, ao monstro! Entrei no quarto
dos meus pais e a única coisa que consegui dizer foi:
—
UM MONSTRO! EU VI! EU VI! EU VI
UM MONSTRO!!!
—
VERA – gritaram os meus pais
em uníssono – TU QUERES MATAR-NOS DE SUSTO?
—
Mas, pai… mãe! Está um
monstro lá fora! Ele veio atrás de mim. É verdade!
—
Vera, — disse a minha mãe
calmamente – tu sabes que horas são, não sabes?
—
São cinco e meia da manhã.
—
Muito bem! – continuou a minha
mãe – E achas que é uma boa hora para nos vires acordar? Não devias estar
em casa de uma amiga tua?...
—
Não!
—
VERA! NÃO É HORA DE CONTARES
HISTÓRIAS MALUCAS! – berrou o meu pai.
—
Mas… mas é verdade!
—
Vai-te deitar! E vê se paras de
contar histórias idiotas.
E
fui para o meu quarto, triste e assustada. Ninguém acreditava em mim.
«Ei!
Talvez o Zeca!... Ele vai acreditar!»
E
fui ao quarto dele. Abanei-o, sacudi-o e nada! Se houvesse um sismo nem dava por
isso! Dei-lhe um estalo.
—
Finalmente! – disse-lhe eu.
—
Ai! Que queres tu a esta hora da
noite?... Deixa-me dormir!
—
Espera, Zeca! Tenho uma coisa
para te contar!
—
O quê?! – disse, indignado
– Vens acordar-me, a esta hora, para me assustares?!
—
Mas, Zeca… É verdade! Alguma
vez te menti?
—
Já! Muitas vezes! Agora, sai!
Deixa-me dormir! SAI!
E
saí. Fui para o meu quarto e, de repente, a porta da rua cai no chão e faz um
enorme barulho. Saltaram todos da cama. O monstro tinha entrado! O monstro
estava em minha casa! Toda a família se levantou e foi até à sala. Lá estava
ele! Enorme. Nojento. Viscoso.
Mas…
o mais incrível aconteceu! Os primeiros raios de sol cobriram o monstro e ele
diminuía, diminuía, diminuía… até que voltou a ser boneco. Peguei nele e
parti-o em mil bocados.
Fui
para a minha cama um pouco mais descansada para dormir as restantes horas e
depois ir para a escola. Mas os meus pais e o Zeca ficaram na sala sem saberem
exactamente o que tinha acontecido.
Eram
9 horas quando o despertador tocou e acordei. Tinha guardado os bocados do
boneco partido numa caixinha do meu quarto. Desci as escadas e fui tomar um
grande e delicioso pequeno-almoço. Depois fui para a escola. Estava decidida a
não contar nada sobre o que tinha acontecido, havia umas horas atrás, a ninguém.
E assim fiz.
O
dia passou rapidamente. Fomos ver as várias salas reservadas à Área-Escola.
Fomos depois à nossa sala e ficámos lá a tarde toda. Às 18,30 despedimo-nos
e fomos para casa.
A
minha mãe tinha-me preparado um delicioso lanche, talvez ainda melhor do que o
pequeno-almoço. Sabia que eu não me devia sentir muito bem depois do que
acontecera. A seguir àquele apetitoso lanche, fui para o meu quarto. Deitei-me
e adormeci. Estava muito cansada… quase não tinha dormido nessa noite.
Às
20 horas a minha mãe veio chamar-me para o jantar. Não comi muito, pois ainda
estava a fazer a digestão do lanche. Voltei de novo para a cama. Mas já não
tinha sono.
Começou
a chover. As nuvens negras iam-se aglomerando cada vez mais até que começou a
trovejar. O barulho dos relâmpagos era tal que parecia que a casa tremia só de
os ouvir. Era meia-noite e o relógio dava as doze badaladas. A tempestade
continuava e eu ainda estava acordada. Subitamente ouvi um ruído. Vinha da
caixa. Daquela caixinha onde tinha posto os bocados do monstro. Estava a
mexer-se… até que abriu. Vi os bocados juntarem-se, formarem de novo aquele
monstro horrível! Ele crescia, crescia, crescia… tal como da primeira vez. Eu
estava aterrorizada: via-o aproximar-se de mim lentamente. Via-o preparar-se
para me morder como se os segundos fossem minutos intermináveis…Então
lembrei-me de que estava lua cheia. Instintivamente, apercebi-me que só à luz
da lua cheia é que o monstro atacava. Mordeu-me. Senti uma dor aguda no ombro
e, de seguida, a janela abriu-se de rompante. A chuva entrou e atingiu o
monstro. O contacto com ela fê-lo evaporar-se. Evaporar-se para
sempre.
Hoje
estou à janela do meu quarto. Há lua cheia e são onze e meia da noite. O
monstro sabia que me tinha transmitido a maldição quando me mordeu. Ao contrário
do que tinha acontecido com ele, não fiquei pequena, nem sou boneca: sou eu
mesma. Continuo a gostar de contar histórias de monstros, mas, à meia-noite, e
só quando está lua cheia, eu cresço, cresço, cresço… Sinto a minha pele
transformar-se numa coisa verde, viscosa, nojenta. Sinto a minha cara
modificar-se por completo e os meus olhos tornam-se vermelhos. Vermelhos como
sangue. Em vez de falar dou gritos, solto guinchos brutais. Não posso manter-me
dentro de casa quando fico assim: torno-me selvagem. Mas, quando o sol nasce e
me envolve nos seus raios, volto ao normal e fico de novo a Primavera que todos
conhecem.
Só
que… aviso-vos: nunca se aproximem de mim enquanto for monstro. É que faço
coisas que nem me atrevo a dizer, pois fico incontrolável. Nem eu própria me
consigo conter! Faltam apenas cinco minutos para a meia-noite e não quero
acordar ninguém com os meus guinchos aterradores.
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