Por Cristo
Muito se fez em nome de Cristo. Muitos Lhe dedicaram as suas vidas, o
mundo de muitos girou em torno d’Ele. Mas se é certo que Cristo deu a Sua vida
pelos homens muitos foram aqueles que deram a sua vida por Ele.
Eu sou um anjo. Eu sei! Há por aí muita gente a dizer que o é. Mas eu
sou um verdadeiro anjo...ou, pelo menos, fui um... Estou a escrever algo a que
se pode chamar “memórias”, pois, desde que me destituíram de qualquer
cargo, não tenho tido muito que fazer. E tudo o que aqui se ler é verdade,
juro-o pelo meu olho bom.
Assim que morri, o arcanjo que me trouxe aqui ao Paraíso, onde agora
passo a minha eternidade, disse-me que, devido ao que tinha feito na Terra, iria
ser um anjo da guarda. Fiquei perplexo e repliquei:
- Mas eu nunca fiz nada de
especial! Eu era apenas um pastor...
- Exactamente por isso. –
Respondeu-me ele. – Deus simpatiza com pastores. Agora vais ser um pastor de
almas, como irá ser o Seu Filho. Devias dar graças! Tens sorte.
A minha primeira missão deitou por terra toda essa...”sorte”. O meu
vigiado (pois era isso que devíamos fazer: vigiar a vida da pessoa que nos era
entregue e nunca interferir directamente) foi um romano a quem chamaram Júlio César.
Ele tivera uma infância estranha que o levou a tornar-se num assassino
ambicioso. Na sua sede de conquista, chacinou e mandou matar milhares de
pessoas. Aos meus olhos, este homem não merecia viver, mas não me cabia a mim
decidir isso. A minha prioridade devia ser para com César, mas...
Pouco depois de se tornar imperador, rebelei-me de vez e afrouxei a
protecção que exercia sobre ele, permitindo que o seu filho adoptivo, Brutus,
juntamente com um grupo de políticos republicanos, o assassinassem. Quando
me apercebi do que tinha feito já era tarde demais. Já tinha um serafim
de cada lado e estava a caminho do gabinete do... “Patrão”.
Era o maior escritório do edifício: branco, como todos os outros, feito
de energia espiritual...como todos os outros. A resistência dum escritório é
directamente proporcional à força do seu ocupante. O d’Ele era sólido. O
meu era apenas vapor fugidio.
Assim que chegámos à Sua porta, os serafins partiram, deixando-me
sozinho. A porta abriu-se e uma luz cegou-me por alguns instantes. Tapei os
olhos e entrei. A janela da parede sul dava directamente para o Sol, o sítio
para onde vão as almas condenadas e onde o primeiro anjo caído em desgraça, Lúcifer,
era rei e senhor.
— Vês aquela bola de fogo?
– sussurrou Ele. O Seu “sussurro” forçou-me a tapar os ouvidos.
— Sim..., Senhor. –
gaguejei.
— Para ali vão os
homicidas, os fratricidas, os pecadores que não se arrependem. Para ali foi Júlio
César, o teu vigiado. E queres ouvir uma coisa engraçada? – desta vez fez
uma pausa e olhou-me nos olhos – Estava Eu aqui relaxado, quando o arcanjo
Bernard Me veio informar que tinha transportado César ao Inferno como Eu tinha
ordenado. O engraçado é que Eu não ordenara tal coisa!!! – agora elevou a
voz... Se eu ainda tivesse ouvidos físicos teriam explodido. – As decisões
no Paraíso não “passam” por este gabinete... saem deste gabinete!
Ouviste?! – claro que tinha ouvido. E como!... Tive uma dor de cabeça que me
durou meia geração.
Ele voltou à carga:
— O que tens a dizer em tua
defesa?
Agora é que era...Mentiras eram algo que não existia aqui. E a verdade
era que...
— O homem era um monstro
ganancioso. Ao longo da sua vida fui tentando, às vezes à margem das regras,
reprimir essa tendência, mas não consegui. Era como se o Mal lhe estivesse nos
ossos. O facto era que, com o estatuto de imperador, teria mais poder e,
conhecendo César, em vez de se sentir satisfeito, iria querer mais. – Eu
tremia por todo o lado e respirava em golfadas inconstantes. Ele recostou-se na
sua cadeira e, sorrindo, sussurrou:
— Não contar toda a
verdade também é considerado mentira... – parecia estar a divertir-se com
tudo aquilo. Respirei fundo e continuei, revelando os meus temores a alguém que
os conhecia de cor:
— Além disso... diz-se
aqui, no Paraíso, que Vós ireis enviar o Vosso Filho à Terra quando Roma
tiver o seu primeiro imperador. Eu não creio que nem César, nem eu, estivéssemos
à altura do desafio..., Senhor.
Os minutos de silêncio seguintes pareceram-me anos... Ou talvez tivessem
sido mesmo... Por fim, Ele falou:
— Muito bem. Por que o teu
erro foi cometido com base num excesso de humildade serei clemente. – ficou
mais algum tempo calado, com ar pensativo. Não que não tivesse ainda decidido,
mas estava a gostar deste momento. – Irás fazer serviço de arcanjo durante
algumas gerações. Quando Eu achar apropriado chamar-te-ei e voltaremos a
falar.
Nem podia acreditar!... Continuar com o estatuto de anjo!... É certo que
os arcanjos eram considerados inferiores pelos outros anjos, pois, em vez de
preservar a Vida, roubavam-na. Era considerado trabalho sujo... A culpa não era
deles, mas isso não importava. Assim como também não me importei. Agradeci
infinitamente e saí.
Cá fora, vi um grande grupo de almas recém-chegadas ao Paraíso que não
tinham qualificação de anjos. Estavam felizes por terem atravessado os portões
do Céu de cabeça erguida, mas eu sabia que as esperava uma eternidade de
descanso, a meu ver, de tédio. Inspirei fundo e felicitei-me por não ter
perdido as minhas asas.
Entretanto já não tinha direito a gabinete. Desci dois andares em direcção
ao meu escritório para ir buscar a minha energia. Pelo caminho, encontrei um
anjo que tinha feito a escola dos “da guarda” comigo – o Marco.
— Ei! Então? Que tal
correu?
— Menos mal... Tenho que
devolver a espada e as asas brancas, mas dão-me outras negras.
— Trabalhos de arcanjo, não?
— É... mas só por algumas
gerações! – repliquei, tentando melhorar o aspecto da situação.
Marco pôs a mão no meu ombro e disse:
— Espero que entendas que a
culpa disto foi toda tua.
— É...eu sei. Mas eu
pensei que...
Ele interrompeu-me com quatro gargalhadas cruéis.
— Aí esteve o teu erro!
Qual foi a segunda coisa que aprendeste na escola de anjos da guarda?
Suspirei e respondi:
— ”Não penses: age”.
Eu sei, eu sei...
Marco ficou a olhar para mim com um “a culpa é tua” escrito no rosto
e depois subiu para o piso superior. Pelo caminho, encontrou outro colega e
ouvi-os rir enquanto repetia “ele pensou!” vezes sem conta.
O edifício dos arcanjos, ou anjos da morte, era todo cinzento e mais ténue
que fumo devido à fraca força de espírito dos seus ocupantes. Assim que
cheguei registei-me, transferindo a minha energia para as paredes do edifício.
A minha espada de punho dourado e lâmina ardente desapareceu de imediato, e as
minhas asas ficaram mais curtas e escureceram. Logo a seguir fui-me apresentar
ao supervisor. Quando disse donde vinha, olhou-me de alto a baixo e sorriu:
— Mais um que “pensou”,
não? Vocês nunca aprendem?
Encolhi os ombros e fui-me sentar junto de outros dois arcanjos que
esperavam ser chamados para irem resgatar alguma vida.
Depois de algum tempo, um deles foi chamado. Eu e outro ficámos sozinhos
na sala.
— Então eras da guarda, não?
— É... até ter
“pensado”.
— Acho isso nojento. Se não
nos é permitido pensar, mais vale roubar vidas que guardá-las, não é?
Abri os olhos de espanto e horror. Como podia alguém ter palavras de
revolta aqui no Paraíso?!
— Não te rales – disse
ele, vendo o meu espanto – Aqui Ele não nos ouve. Ele não se importa com o
que nós dizemos, só se importa com o que se passa no Seu edifício e na Terra.
Nós não passamos de burros de carga. Vai-te habituando.
Mesmo assim, depois de uma vida inteira a viver debaixo dos ouvidos de
Deus, não conseguia dizer o quer que fosse de menos apropriado, ou menos
correcto.
— Como te chamas? –
perguntou ele.
— Tiago. – respondi.
— Tiago... diz-me: o que
achas dessa história d’Ele enviar à Terra o Seu Filho?
Não sabia o que dizer, por isso encolhi-me na minha humildade.
— Não acho nada. Nem tenho
que achar. Os Seus desígnios dizem respeito a Ele e só a Ele.
O arcanjo, cujo nome nunca cheguei a saber, inclinou a cadeira para trás
e, estendendo o braço, começou a empurrar uma estrela que estava por cima da
sua cabeça. Pouco depois, com um ar pensativo, disse:
— Pois eu acho que isso não
vai adiantar nada. O Mal vai existir sempre. Enquanto existirem homens vai haver
Mal. Talvez a ida de Cristo atrase a autodestruição humana, mas não a vai
anular. Pode ser que a Sua ida oriente a vida de alguns, mas vai provocar
sofrimento a milhares de outros e em Seu nome vão ser cometidos crimes
horrendos... Basicamente vai ser mais uma maneira de se ir direito para o
Inferno.
— Céus! – exclamei –
Que heresia!
Como era ingénuo, nessa altura. Tudo, para mim, se reduzia ao poder de
Deus, a Divina Potestade, como Lhe chamou, mais tarde, Dante. Se soubesse o que
sei hoje...
— Pensas que sou louco?
Alguns anos a fazer o que faço e passas a pensar como eu... Sim! Aqui podes
“pensar”.
Pouco depois chamaram-no e nunca mais o vi. Arrepio-me ao pensar no que
lhe teria acontecido. Mas talvez ele tivesse razão: alguns anos não dando
importância à Vida e eu pensaria como ele. Talvez sim, talvez não...
Estava sentado na sala de espera, quando o supervisor entrou.
— Tiago! É a tua vez!
Nervoso, levantei-me e dirigi-me a ele.
— Toma! – e, com isto,
tocou-me na testa, dando-me a conhecer quem
eu deveria trazer. Era um
lavrador, pai de família, que agonizava com dores no peito.
— Vá! Põe-te a andar! –
berrou-me o supervisor.
Estendi as asas com plumas negras e voei, rumo à Terra, onde outrora
tinha vivido.
Quando cheguei à casa do lavrador, já estava toda a família em volta
da cama. À cabeceira, invisível aos olhos de todos excepto dos meus, estava o
seu anjo da guarda. Parecia zangado. Aproximou-se de mim e disse:
— Estás atrasado! –
depois observou-me por uns momentos – É o teu primeiro trabalho?
— Sim, senhor. – Nós, os
arcanjos, devíamos uma certa vassalagem aos “da guarda”.
— Bom, se é assim este teu
atraso fica entre nós. Mas que não volte a acontecer!...
— Sim, senhor. Obrigado.
— Anda lá! Despacha-te! A
minha próxima missão não pode nascer sem mim. Quanto mais tempo demorares
mais dores de parto tem a mãe dele. – Ficou a pensar por uns segundos e
depois corrigiu: - Não é um “ele”. É uma “ela”...
Era agora. À medida que me aproximava do moribundo, fui olhando para a
chorosa família. Pareciam muito pobres. O homem era a única fonte de sustento
da casa e os filhos novos demais para trabalharem. Assim que pegasse na alma
dele era certa uma vida de mendigagem para esta família.
“E se...E se ele pudesse viver mais uns anos? Só até os filhos terem
idade suficiente...” E dei por mim a “pensar” de novo. Olhei, por cima do
ombro, para o anjo da guarda que batia o pé, impaciente, e olhava-me, zangado.
Cobardemente, com medo de represálias, toquei no coração do lavrador e
ele soltou o último suspiro. O anjo da guarda desapareceu instantaneamente e o
nível de Vida, no quarto, desceu. A família do homem caiu num choro profundo e
eu ajudei a sua alma a levantar-se da cama onde jazia o corpo agora sem vida.
— O que... – gaguejou
ele, enquanto esfregava a cabeça. Quando olhou para o leito percebeu tudo e
chorou no meu ombro. Os arcanjos não devem falar com as suas “cargas” mais
do que o necessário, mas pensei que isso não iria interferir no meu trabalho.
— Pronto, pronto. –
tentei consolá-lo – Veja o lado positivo: você vai para o Céu.
Ele olhou para mim, os olhos ensopados em lágrimas:
— A se...sério?
Sorri lentamente e acenei que sim. Quando lhe peguei na mão vi que
estava mais calmo. Estendi as asas e voámos em direcção ao Paraíso.
Pelo caminho, deu-me uma sensação de vazio imensa. “É só isto?
Roubo um pai à sua família e mais nada?” Prometi a mim mesmo que, ao contrário
do que era norma a um arcanjo, iria conhecer e dar valor às vidas que
transportava. Não queria tornar-me naquele anjo da sala de espera...
Atrasei um pouco a viagem e não parámos de falar. E fiz o mesmo com um
sem número de almas que transportei. Tanto as levei para o Céu, como para o
Inferno. Claro que muitas das que foram para o Sol não eram muito sociáveis,
mas fiz o melhor que pude e, hoje, guardo amigos nalguns deles.
De vez em quando, os homens guerreavam. Aí, os arcanjos ficavam atolados
de trabalho e eu ainda mais: tornar-me íntimo das almas ocupava tempo, mas não
me importei. Fui repreendido por alguns anjos da guarda por chegar atrasado, mas
não liguei. Nunca me importei com nada a sério: fui calmo sempre, e sereno,
temente a Deus e respeitador. Hoje sei que foi graças a isso que vim para o Céu,
não porque os bons mereciam o Paraíso, mas porque somos mais fáceis de
dobrar...Céus! Naqueles tempos, se pensasse em algo remotamente parecido com
isto, ter-me-ia castigado fisicamente...Quão ingénuo era!
Por causa dessa minha ingenuidade e dessa minha bondade latente sofri
muito.
Depois de ter largado um condenado nas chamas do Inferno, pareceu-me ver
alguém que conheci – estava no meio de milhares de outros que gritavam, de
rastos, enquanto centenas de demónios lhes arrancavam a pele do corpo com
chicotadas. O sangue jorrava de todos os cortes e chuva ácida dilacerava-lhes a
carne apodrecida. Aproximei-me de um dos demónios e perguntei:
— Por que pecados sofrem
estes?
A criatura parou de massacrar os pobres coitados e fitou-me com um
sorriso trocista.
— Estás muito longe de
casa, anjinho... – e desatou a rir como louco.
Não vou dizer que não tive medo dele porque tive... e muito. Ele começou
a avançar e eu a recuar.
— Pe...
pe... pára! Eu sou
um arcanjo de Deus... – gaguejei.
— Sei o que tu és! Por que
é que achas que ainda te não arranquei essas asas nojentas? – olhei as asas
escamosas e cheias de pus que lhe saíam das costas e pensei que as minhas não
eram tão nojentas assim – Vocês têm salvo-conduto por aqui... Uma injustiça,
porque nenhum de nós pode ir lá cima. Uma injustiça! – apontou para a luz
por cima das nossas cabeças onde ficava o Paraíso. – Mas se eu quisesse
justiça tinha sido um bom menino enquanto fui vivo, não é? – sorriu e
voltou-me as costas. Ergueu o chicote e voltou a bater nos condenados que
rastejavam, despidos, com o corpo todo dorido e aberto, em carne viva. Um deles
já não tinha pele alguma na face esquerda e arrastava-se com uma mão na
barriga para evitar que as tripas caíssem por um enorme corte que aí tinha.
Tudo isto me repugnou, mas desviei o olhar, engoli em seco e voltei a perguntar:
— Por que pecados sofrem
estes?
O demónio olhou-me por cima do ombro e vi que cada vez que batia em alguém
sentia a mesma dor reduplicada, mas não conseguia parar senão por momentos.
Mais um método de Lúcifer!
“Então é isto o Inferno”. – pensei.
— Estes sofrem porque
quebraram uma das leis de Moisés. Aqui agonizam os adúlteros. – assim que
acabou de falar, bateu num homem, em cheio, na face e o olho direito vazou,
derramando sangue por toda a cara. O homem olhou para o Céu, a chorar, e gritou
a plenos pulmões:
— Deixem-me morrer! Por
favor!... Por favor!... – e caiu. Pensei que tivesse desmaiado, mas não –
isso seria fácil demais. O demónio passou os minutos seguintes a castigar-lhe
as costas e só parou quando o homem estava numa poça de sangue, com a coluna
vertebral à vista.
Olhei em volta, à procura da pessoa que pensara ter reconhecido e vi-a
ao longe. Voei até lá e reconheci a minha mulher. Ela ergueu a cabeça e olhou
para mim com o seu único olho são. O outro era uma órbita vermelha que
escorria muito sangue. Sorriu como se já esperasse que eu fosse um anjo.
— Diana... – sussurrei.
Queria levá-la dali, para longe daquela dor, mas sabia que era impossível.
De repente, ouvi alguém balbuciar atrás de mim:
— O maridinho, hã? – era
um outro demónio, todo negro, com pintas brancas donde lhe estoiravam borbulhas
com pus. – Pelos vistos, estes – e apontou para os seus cornos – deviam
estar na tua testa e não na minha! – isto pareceu diverti-lo tanto que riu até
se engasgar e vomitar.
— Há quanto tempo morreu
ela? – perguntei.
— Não te iludas!... Morreu
três anos depois de ti, mas não tinha voltado a casar! Arde aqui por te ter
traído a ti. – e, vendo a minha desilusão, riu-se e voltou a vomitar.
A minha mulher, Diana... Como tinha amado aquela rapariga! Os pais dela não
nos queriam deixar casar, por isso ela convenceu-me a fugirmos. Sempre fora
rebelde e, se alguém a quisesse ver partir, era só impor-lhe regras. Tivemos
uma vida tão alegre: criávamos ovelhas, ríamo-nos, fazíamos amor... Nunca
nos faltou nada, mas, pelos vistos, ela precisara de mais. A culpa não fora
minha. Dera-lhe tudo o que tinha, dedicara-lhe a minha vida... mas não fora o
suficiente. Tanto nesse dia, como hoje, quando me lembro do rosto dela a
agonizar, sinto uma pena profunda e choro. E, a chorar, voei de volta à Terra
para ir buscar mais uma alma.
Neste vai e vem passaram-se cem anos – um século inteiro. Até que
chegou o Dia...
O “Patrão” convocou doze anjos da guarda ao seu escritório. Quando
saíram tinham os rostos iluminados de alegria. Foram logo rodeados por colegas
e amigos. Pareciam todos excitadíssimos e felicíssimos. Nós, os arcanjos, não
fazíamos a mais pequena ideia do que se passava.
Então, pela primeira vez desde que estava ali, e pela segunda em toda a
Existência, Deus saiu do Seu gabinete.
Assim que o viram cá fora todos pararam as suas tarefas. Eu estremeci
todo. Ele não precisava de falar para Se impor – só a Sua presença bastava.
Um silêncio eterno caiu. Todos os seres O olhavam, mesmo os do Inferno. Depois
de uns momentos, Ele falou e a Sua voz ouviu-se através do Espaço e do Tempo.
— Ouvi-Me!!! Que cesse toda
a preparação! Aquilo para que vos preparais acontecerá ainda este ano. Roma já
tem um imperador há trinta e um anos. O Meu Filho descerá à Terra para a
limpar do pecado que a corrói.
Todos os anjos da guarda, serafins e outros anjos que trabalhavam
directamente com Deus gritaram de consentimento e alegria. Os arcanjos, no
entanto, grunhiram uma palavra de protesto e começaram a dispersar lentamente.
A sua oposição a Deus, nesta matéria, era visível.
— Do que é que vai
adiantar? Um homem não pode mudar o mundo. – diziam alguns. Eles tinham razão:
um homem não podia mudar o mundo, mas podia plantar a semente necessária para
outros o fazerem em Seu nome.
Eu e mais duas dezenas de arcanjos, todos eles antigos anjos da guarda,
ficámos a ver o desenvolver dos acontecimentos e a ouvir aquilo que Deus tinha
mais a dizer. Não que Ele tivesse falado muito mais – limitou-se a dizer que
designara doze anjos da guarda para o Seu Filho. O primeiro, Gabriel, iria já
para a Terra falar com uma mulher chamada Maria que viria a ser Sua mãe. Mais
adiante, nesse ano, em Dezembro, Jesus nasceria. Nunca foi determinado como se
iria chamar, mas o nome “Jesus” parece ter estado na mente de todos, desde
sempre. E então, tal como foi dito, em Dezembro, Jesus nasceu.
Para os Seus anjos da guarda irem para a Terra não utilizaram os
tradicionais relâmpagos que todos os desta espécie normalmente usam, pois não
havia maneira de lançar doze no mesmo local. Em vez disso, serviram-se de uma
estrela cadente que se tornou, ela própria, objecto de uma história com uns
reis quaisquer. O que interessa é que o Filho de Deus desceu à Terra, no seio
dos homens, para, trinta e três anos depois, morrer por eles e às mãos deles.
Sempre me interroguei que espécie de raça é a nossa que assassina o seu
Salvador...
Não tive muito tempo para estar a par da vida de Cristo na Terra, mas
fui ouvindo coisas. Ouvi falar de Lázaro e da luta que Jesus provocou entre o
arcanjo e o anjo da guarda desse homem, tendo saído este último vitorioso;
ouvi falar da ocasião em que pediu aos Seus anjos da guarda para o susterem à
superfície das águas, dando a ilusão de que caminhava sobre elas. Mas não
ouvi muito mais. Foi nessa altura que Octávio César Augusto se tornou
imperador. O seu reinado trouxe prosperidade ao Império Romano, mas às custas
de outros povos. Houve muitos mortos nessa altura, muito trabalho.
Inevitavelmente, Cristo parte da Terra para vir sentar-se à direita do
Pai. Ele não queria: quando os arcanjos encarregues de tal missão O trouxeram
ficou muito revoltado. Queria ficar e continuar a ajudar os homens, mas o Seu
Pai tinha ordenado – nada havia a fazer.
No entanto, três dias depois, Cristo enganou os serafins que o
guardavam, fugiu e regressou à Terra. Deus descobriu e foi buscá-lo
pessoalmente, mostrando o quão empenhado estava neste assunto, pois executou
trabalho sujo de arcanjo.
De qualquer forma, Cristo conseguiu preparar a Terra para a Sua ausência
e dizer o que ficara por dizer. Deus explicou-lhe que iria servir os homens e a
sua causa muito melhor como mártir. Com o correr dos séculos, Jesus viu que,
de acordo com a sabedoria popular, Deus tinha razão.
Legiões de anjos da guarda acorreram ao gabinete que o Todo-Poderoso
arranjou para o Seu Filho. Todos queriam falar com Aquele que, com o passar do
tempo, passou a ser um ídolo e um exemplo a seguir. Muitos saíam desiludidos,
pois Jesus não tinha muito tempo. Outros, mais humildes, saíam satisfeitos com
o pouco tempo que tinham tido. Entre ir ao Inferno libertar algumas almas que
ali tinham ido parar por terem quebrado algumas leis das quais Jesus discordava
e atender todos os anjos do Paraíso Cristo não tinha mãos a medir. Levaria séculos
até terminar estas missões.
Quando as terminou, pura e simplesmente deixou de ter o que fazer.
Limitava-se a passear pelo Céu, deitando sorrisos tímidos às almas, mas os
Seus olhos pareciam estar prestes a verter lágrimas. Ocasionalmente, via-O a
conversar com Pedro, aos portões do Paraíso. Aquele fora sempre um lugar
deserto, com os portões de grade dourada completamente escancarados e sujos.
Mas desde que Jesus fora ao Sol buscar milhares de almas, Lúcifer começou a
tentar entrar no Céu e fazer o mesmo. Assim Deus destacou Pedro para guardar a
“entrada”.
Jesus e Pedro conversavam horas a fio. Umas vezes sussurravam, outras
riam alto, talvez relembrando algum momento feliz das suas vidas terrenas.
Eu observava. Não havia muito mais para fazer, pois os arcanjos não
estavam autorizados a falar com Cristo. Mesmo assim, alguns conseguiram: Jesus não
gostava da discriminação de que éramos alvo e desobedecia a Seu Pai. Nunca
tive a sorte de falar com Ele enquanto arcanjo, por isso deixava o trabalho
atrasar-se ainda mais e ficava a vê-Lo de longe. Um velho vivia mais uns
tempos, um soldado conseguia decepar mais um inimigo antes de morrer, um bebé
conseguia mamar pelo menos uma vez... O trabalho acabava por ser feito, mas
raramente na hora certa.
Até que a minha hora chegou. Depois de quase mil anos (um pouco mais do
que as “algumas gerações” que me tinham sido prometidas), voltei a ter o
cargo de anjo da guarda. «A tua paciência foi recompensada», disse-me Deus.
“De qualquer maneira eu não tinha nada mais para fazer...”, respondi.
— Terás a tua primeira
missão quando tiverem passado 1111 anos do nascimento do Meu Filho. Enquanto
isso, vai construir o teu escritório.
Quando saí do prédio dos “da guarda”, estava mais feliz do que
alguma vez tinha estado.
Fui ao edifício cinzento dos arcanjos buscar a minha energia espiritual.
Toquei na parede e as minhas asas negras começaram a crescer e a tomarem tons
de branco. A minha espada materializou-se no chão: peguei nela, embainhei-a e
apertei o cinto. Sorri... Sentia-me imenso, gigantesco, no topo do mundo!...
Principalmente porque ia, finalmente, falar com Cristo!
No caminho para o Seu gabinete, cheio de esperança de lá O encontrar,
cruzei-me com o supervisor dos arcanjos. Ia a berrar qualquer ordem, mas, ao ver
as minhas asas brancas, e sorriu um: “Parabéns, miúdo”.
— Bom dia, senhor. Com
licença, senhor. – acrescentou, afastando-se.
Eu não me senti muito confortável com aquela brusca mudança de
tratamento. A minha intenção foi de lhe pedir para continuar a chamar-me pelo
meu nome, mas isso poderia trazer consequências graves para ele. Passei por
muitos arcanjos que conheci como irmãos, mas nenhum me dirigiu a palavra.
Timidez... ou inveja... Esta última não deveria existir ali no Céu, mas nós
tínhamos sido todos apenas humanos...
Quando cheguei à sala de Jesus, não estava ninguém à porta, o que não
era, nem um pouco, normal. A medo, entrei e olhei em volta, à Sua procura.
Havia uma mesa bastante comprida no meio da sala. Em cima, estavam um jarro de
vinho e um pão de centeio castanho-escuro. Claro que nem Cristo, nem nenhum de
nós, ali, no Paraíso, precisava de alimento. Creio que o pão e o vinho ali
postos eram uma recordação de algo da Sua vida humana.
— Sim?... – ouvi, num
lamurio, vindo do outro lado da sala. Jesus estava sentado no chão, com os
joelhos encostados ao peito. Os Seus olhos estavam vermelhos de tanto chorar,
mas não tentou disfarçar nem limpar o rosto: simplesmente, ergueu-se assim
mesmo, a cara banhada em lágrimas, como se não tivesse vergonha alguma do Seu
lado humano... Admirei-O, para sempre, por isso.
Aproximou-Se de mim e sorriu-me com o olhar.
— Olá, Tiago.
Fiquei infinitamente feliz por o meu Senhor saber o meu nome. Contudo, não
consegui traduzir essa felicidade por palavras. Limitei-me a gaguejar uma saudação
envergonhada. Sorriu perante a minha atrapalhação.
— Não fiques assim. Não
passo dum homem, tal como tu.
Aquilo chocou-me a alma até lhe fazer vincos.
— Pelo amor de Vosso Pai! Não
digais isso, Senhor. Vós sois o Filho de Deus! Comparar-Vos a mim, ou a
qualquer outro, é blasfémia.
— Pois sim. Mas se Eu
sou... isso que disseste, Eu é que determino o que é ou o que não é blasfémia.
Não é assim?
Fiquei a pensar um pouco se a pergunta não teria algum truque, mas
depois lembrei-me que Jesus era justo e bom e não me iria tentar “tramar”.
Quem fazia isso era o Seu Pai quando se queria divertir um pouco.
— Se Vós o dizeis,
Senhor...
— E não Me trates por
“Senhor”. Deixa isso para quem o exige – disse Ele a sorrir, apontando
para o local onde era o gabinete do Altíssimo.
Sorri também, dando graças pela ausência de formalidades.
— Mas diz-Me: o que te traz
por aqui? Faz uns bons anitos que não tinha visita nenhuma – estes
“anitos” deviam ser mais ou menos uns trezentos anos – Foste nomeado há
pouco tempo?
— Sim, Senhor. – Ele
repreendeu-me, sorrindo, e eu fiz um “desculpe” com os ombros. – Quero
dizer, sim, Jesus. Ainda não me deram missão. Estou ansioso.
— Mas tu já foste anjo da
guarda. Se bem me lembro, a tua missão foi Júlio César. Certo? E, se também
me lembro, não correu muito bem...
O espanto em mim foi imenso. Já me devia ter habituado de que ali tudo
se sabia.
— Obrigado por Vos
lembrardes dalguma da minha curta história...
— “Curta”?! – riu Ele
– És mais velho que Eu cem anos... – depois desfez o sorriso e virou-me as
costas, olhando fixamente para o Sol que se via através duma janela, na parede
sul. Lentamente, falou:
— Mas o que fizeste foi
errado. O que fizeste vai contra tudo o que represento.
Tentando explicar-me, repliquei:
— Mas César ia trazer
grande sofrimento ao mundo quando se tornasse imperador! – não querendo
esconder nada, continuei: - Além disso, dizia-se que Vós iríeis à Terra
quando Roma tivesse o seu primeiro imperador...Eu...eu não queria ser o anjo da
guarda daquele que Vos iria provocar sofrimento.
— E assim, por causa dum
medo egoísta, passaste a responsabilidade para outro? E o mais grave nem é
isso1 – estava a sentir-me destruído. Jesus, Aquele que eu mais admirava,
estava descontente comigo. Havia-O desiludido. – A tua primeira
responsabilidade era para com o teu vigiado! Foste muito egoísta! – porque é
que o chão nunca se abre e nos engole quando queremos? Sentia-me mais pequeno
do que uma das almas torturadas no Inferno. Cristo continuou:
— Tu! Logo tu! O único
arcanjo que tentou conhecer e amar, sob provável ameaça de represálias, todas
as vidas que roubava. Não entendo como a mesma pessoa é capaz de sentimentos tão
opostos!
Eu estava esmagado... Não Lhe conseguia ver o rosto, mas sentia que Ele
estava revoltado comigo.
— Não tenho perdão, Je...
Senhor.
– achei melhor vestir as formalidades, de novo.
Ele suspirou e pareceu acalmar. Depois continuou, devagar:
—
Não sei por que se dá
tanta importância ao período que se passa na Terra. Não passa dum teste para
determinar qual vai ser o papel a desempenhar na Eternidade...Ou talvez seja por
isso mesmo que se lhe dá mais valor... O facto é que essa fracção de tempo
é a mais rica da existência de qualquer um. – Voltou-Se e obrigou-me a
sentar numa cadeira que se encontrava atrás de mim, olhando-me fixamente nos
olhos. Senti-me trespassado, mas não me sentia desconfortável. Pelo contrário.
Tinha a sensação daquela ser a melhor forma de passar os próximos séculos.
Os Seus olhos não conseguiam disfarçar a preocupação que tinha por todo o
tipo de vida e a profunda tristeza que sentia por essa vida ter cada vez menos
valor na Terra. Os homens estavam a autodestruir-se e Cristo sabia-o.
— Nesse pequeno período,
– continuou – muito pode acontecer, muito se pode fazer. Mesmo apenas num
pequeno pedaço desse tempo pode-se deixar uma marca no mundo. – aqui, Ele
estreitou os olhos e o que disse a seguir destruiu boa parte do meu mundo. –
No pequeno pedaço de tempo entre o dia que César morreu e o dia em que devia
ter morrido de facto poderia ter-se redimido. Poderia ter-se arrependido...
Negaste-lhe esse direito. Negaste-lhe o direito de tentar ganhar o Céu.
Por Deus! Por Deus! Jesus tinha razão! A minha mão havia condenado um
inocente!... Pensei dizer algo, mas as palavras não conseguiam sair-me da cabeça
tal era a forma como estavam esmagadas pela minha consciência. Pálido como a
culpa, caí da cadeira e fiquei no chão, com os olhos fixos nos olhos de
Cristo. O sofrimento que crescia dentro de mim devorava tudo à sua passagem.
Pensei que ia gritar, mas Jesus sentou-Se comigo e abraçou-me.
— Pronto, pronto. Está
tudo bem... – disse. Encostei a cabeça no ombro d’Ele e senti toda a dor
correr, a passos largos, para os olhos. Se uma represa tivesse rebentado não
verteria tanta água como aquela que chorei. Havia muito tempo que não chorava.
Quando era vivo, tinha desaprendido de fazê-lo durante a minha juventude. Mas,
ali, chorei. As lágrimas sabiam-me a podre talvez por terem sido guardadas
tempo demais. Devo ter chorado, sem parar, durante quase uma hora. Entretanto,
nem por um só minuto, Cristo deixou de tentar consolar-me.
Quando o choro abrandou, Jesus ajudou-me a sentar na cadeira. Eu estava
como que em transe, com os olhos fixos nos pés d’Ele. Ao sentar-me, a minha
espada bateu nas caneleiras de aço e o barulho do metal despertou-me.
— Pronto, Tiago. As tuas
faltas estão agora em Mim. – e vi as minhas lágrimas no ombro de Jesus, a
mancharem as Suas vestes.
“Continuas a tentar transferir todos os pecados do mundo para as Tuas
costas. Que esforço inglório!” – pensei, com pena do meu Senhor. Mas logo
me revoltei. “Pena?! Ninguém sente pena de Cristo! Que heresia! Que Cristo
tenha pena de mim!”
— Podes ir à Terra como
verdadeiro símbolo de pureza. – Mas tinha a certeza de que tinha voltado a
pecar. Que estranha raça, a nossa. Não conseguimos resistir à tentação. À
mais pequena aberta, ao mais pequeno sinal de Lúcifer, caímos e esfolamos toda
a pele do corpo. Não temos hipótese alguma...
— Não temos mesmo hipóteses,
pois não? – perguntei a Jesus, olhando-O nos olhos. Ele pareceu intrigado,
mas interessado.
— O que queres dizer?
— Quero dizer... Nós, os
homens. Não há nada que nos salve, pois não? A humanidade está montada num
cavalo louco e desenfreado que corre para o abismo e não faz nada para lhe
escapar. Aliás, fomos nós que o quisemos montar de livre e espontânea
vontade. Não é?
— Nem tanto assim...O facto
é que nós nunca tivemos escolha. – Jesus pareceu arrepender-Se do que disse
e adoptou uma expressão misteriosa. O meu espírito humano e fraco
estrangulou-me os sentidos de curiosidade.
— O que quereis Vós dizer?
Cristo afastou-Se de mim e foi apoiar-Se no parapeito da janela que dava
para o Sol. Levantei-me e pus-me a Seu lado. A luz que vinha dos milhões de
almas que eram incineradas produziu um jogo de luz estranho nos olhos esmerilados do Filho de Deus.
— Tu não queres saber.
— Senhor...
— Acredita em Mim! Tu não
queres saber! – vociferou.
O facto é que o que quer
que eu “não quisesse saber” estava a obrigar a alma de Jesus a rastejar,
tal era o fardo que trazia aos ombros. O meu único desejo era retribuir o que
Ele tinha feito por mim.
— Senhor, é visível o
tormento que esse... segredo que carregais implica. Por favor, deixai-me
aliviar-Vos desse peso. Falai comigo. Desabafai. Eu prometo que não o contarei
a uma só alma!
Lentamente, Cristo olhou-me. Os Seus lábios iam formar um “não”,
mas os Seus olhos gritavam “socorro!”. Inconscientemente, contou-me a
Verdade Suprema. Tanto Ele, como eu, devíamos saber que no Céu tudo se sabe,
mas o Seu desespero, e a minha ávida curiosidade, condenaram-Nos. A partir
daquele momento nada seria igual e eu entenderia a tristeza constante de Cristo.
— Quais foram as primeiras
palavras que Meu Pai ditou aos homens?
Não tinha percebido a finalidade da pergunta, mas respondi de qualquer
forma:
— “Génesis”, Senhor -
e recitei: “No princípio, Deus criou os céus e a terra. A terra...”
— Não, não! –
interrompeu – Basta dizeres o que foi feito em cada um dos sete dias! Não
precisas de declamar de cor!
Pensei um pouco e disse, a medo:
— Bom, primeiro foram a luz
e as trevas; depois o céu e as águas; no terceiro dia fez aparecer terra seca
com verdura; a seguir fez a noite e o dia, a Lua e o Sol, nessa altura apenas
com a finalidade de iluminar.
Jesus estava estático, extasiado, a olhar para o Inferno. Não tinha a
certeza de que Ele me estava a ouvir. Mesmo assim, continuei:
— Depois fez as aves e os
peixes e, no sexto dia, Deus fez os animais da terra e o homem.
Cristo completou:
— “Concluída, no sétimo
dia, toda a obra que havia feito, Deus repousou.” – quando Se calou, um
imenso silêncio caiu na sala. Eu não quis dizer nada, mas Ele parecia estar a
preparar-Se para falar.
— Nem tanto assim... –
repetiu. E voltando-Se para mim: - Deus fez o homem à Sua imagem e semelhança.
E é por isso que o homem erra.
Não entendi. No meu olhar transpareceu isso e Jesus continuou:
— Diz-Me,
Tiago. Já viste Deus levar mais do que alguns minutos a fazer alguma coisa?
Pensei um pouco. De facto, nunca tinha visto Deus a fazer nada. Apenas
estalava os dedos e montanhas erguiam-se do chão.
— Não, Senhor. Nunca.
Mas...
— No entanto, demorou seis
dias a fazer o mundo... Seis dias!
— Deve ter sido muito
trabalhoso... – murmurei.
— Trabalhoso?! Deus teve
que descansar!... Se não O imaginas a trabalhar, consegues imaginá-LO,
exaurido, ao ponto de ter de repousar durante um dia inteiro? – o discurso de
Cristo começava a parecer-me chegar a algum lado. Eu conseguia prever o que Ele
estava a insinuar, mas não tinha coragem de o dizer em voz alta. De qualquer
forma, não foi preciso – Jesus disse-o por mim:
— E responde-Me a isto,
Tiago: se Deus Se cansou tanto no fabrico da terra... – agarrou-me nas roupas
e aproximou o Seu rosto do meu –...porque haveria Ele de pôr no mundo uma
criatura que iria destruir o Seu trabalho?
— Senhor...com certeza não
estais a querer dizer... que... – eu não conseguia falar no que pensava.
— O que Eu estou a dizer é
que, no sexto dia, quando Deus fazia alguns animais da terra, os macacos, o
cansaço fê-l’O... enganar-Se. A culpa não foi d’Ele. Deus era apenas
humano, tal como nós somos. Foi apenas a partir desse dia que Ele Se tornou
perfeito. Quando acordou do Seu descanso, no sétimo dia, já o... “mal”
estava feito. Alguns símios tinham-se tornado em algo próximo demais de um ser
com pensamento. – Jesus foi-se sentar no chão, encostado à parede onde
estava quando O encontrei – Imagina o Seu desespero quando o primeiro começou
a falar...
Já estava a ver como acabava a “história”. O meu estômago
rebelava-se com tudo aquilo. Completei lentamente:
— E, assim, a primeira
coisa que Deus fez foi obrigar os homens a venerarem-n’O e, quando apareceu a
escrita, ditou-Lhes a Sagrada Bíblia para que todas as gerações seguintes
também o fizessem.
— Exactamente. Foi uma espécie
de solução de última hora. Uma maneira de controlar a Humanidade... de
controlar uma experiência que tinha dado para o torto.
Cristo voltou a encolher a pernas contra o peito e a esconder o rosto nos
braços. Não consegui suportar o meu peso e as pernas cederam. Arrastei-me para
perto de Jesus e sentei-me na mesma posição.
— Mesmo com essa “solução”,
vêde o estado em que está o mundo...
Ficámos um grande bocado assim: Jesus e Tiago, sentados na escuridão
duma sala, a fitarem o vazio. Noutra circunstância, nunca me passaria pela cabeça
pensar que Cristo me mentia, mas, naquela altura, uma lâmina, com essa ideia,
tocou-me o cérebro. Abanei a cabeça com força e afastei aquilo da mente. O
facto é que Jesus desabafou comigo para se sentir melhor... e tal não
aconteceu. Só conseguiu com que me sentisse miserável. Era como tentar limpar
as mãos a um pano sujo: só se conseguia encardir as partes que estavam limpas.
— É irónico... – disse
o meu Senhor, algum tempo depois.
— O quê?
— Os animais chamados de
“não – racionais”...Eles é que deveriam dominar o mundo. No entanto, são
diariamente aniquilados por... um erro.
— Nós não estávamos
destinados a existir... meditei naquelas palavras e arrepiei-me. O que havia de
fazer? A minha vontade era matar-me, mas tudo o que tinha agora era um espírito
com uma alma lá dentro. Matar o nosso próprio corpo físico ou o próprio espírito
era possível, mas a alma não morre...Tudo por um erro! Toda a existência
humana usou um erro como alicerce!
Uma mistura de raiva, ódio e nojo penduraram-se na minha garganta e começaram
a apertá-la com força. Não conseguia pronunciar um som que fosse, não
conseguia construir um único pensamento coerente...só conseguia cerrar os
dentes e chorar.
Cristo observava-me e decidiu tomar medidas. Pôs-Se de pé e
pontapeou-me as sandálias duas vezes.
— Vamos! Levanta-te!
Comecei a erguer-me... mais por respeito ao meu Senhor do que por vontade
de respirar. Ele colocou-Se diante de mim, bateu-me nos ombros e disse:
— Vamos lá! Pensa que não
é o fim do mundo! Pelo contrário: é o início de um novo mundo para ti. Pode
não ser perfeito, mas já tens um cargo influente. Usa-o para fazer alguma
coisa. Lá por termos começado a guerra logo a perder não significa que não
possamos recuperar!
Os Seus olhos diziam exactamente o oposto. Eram os olhos de Alguém que
estava perdido para além de uma derrota normal. Parecia-me que aquilo era o que
Jesus dizia a Si próprio: - infindáveis coisas, todos os dias, sem grande
resultado.
E antes que pudesse tecer uma linha de pensamento, em protesto, Cristo
despediu-me à pressa e pôs-me fora do Seu gabinete.
— Vai! Espero grandes
coisas desse que vais vigiar assim que chegares à Terra! Quero ler o nome
Afonso Henriques em todos os livros de História!... Adeus! – e fechou-me a
porta apressadamente. Entendi-O. Já O tinha visto chorar uma vez. Duas
vezes, no mesmo dia, era demais.
Fiquei a encarar a porta durante horas infinitas... Lembrei-me do sorriso
que trazia quando entrei naquela sala, da minha armadura nova... tudo
resplandecia. E tudo me parecia tão longe!... À distância de séculos.
Acordei da minha letargia com uma mão no meu ombro. Virei-me, de
repente, e vi o Stephen. O Stephen era escandinavo. Tinha vindo para o Céu na
mesma altura em que Cristo nascera. Era um anjo da guarda do tipo optimista.
Pensando bem, até há bem pouco tempo, também eu o fora...
— Ei, Tiago! Estão à tua
procura lá no Centro de Recrutamento e Atribuição de Missões há um tempão!...
Vão-te esfolar quando te apanharem!
De súbito, deixei de me importar. Ia responder torto ao anjo louro,
quando vi dois serafins, armados até aos dentes a aproximaram-se de nós,
lentamente, e a segredarem um para o outro. Instintivamente, voltei-me e vi
outro par que vinha na direcção oposta. A culpa que sentia por conhecer a
Verdade Suprema disse-me que era atrás de mim que vinham.
Assim que viram que tinham sido descobertos, apertaram o passo e correram
para me apanharem. O Stephen gritou qualquer coisa na sua língua gutural e
depois traduziu para a nossa:
— A mim, não! A mim, não!
– gritava, enquanto corria para longe.
Os serafins corriam, agora, o mais rápido possível, enquanto
desembainhavam as espadas. Toda a fúria sob grilhões, dentro de mim, viu uma
saída e não a reprimi. Pela primeira vez, a minha mão alcançou o punho da
espada com a intenção de a desembainhar. Assim que o fiz, as labaredas de que
a lâmina é feita aqueceram-me a mão e o coração. O meu espírito deixou de
ser um invólucro para conter uma alma e passou a ser um condutor de pura fúria.
Por Deus! Como me sentia traído!... Sabia que, depois disto, não iria ser
apenas rebaixado para arcanjo... Esperava-me um destino bastante mais próximo
dos milhões e milhões que gritam e berram nos milhões e milhões de fogos do
Inferno! Mas a minha alma traída era pura inconsequência e loucura! E, como um
louco, gritando a plenos pulmões, corri para o par de serafins que se
encontrava mais perto e vi as três espadas chocarem, fazendo voar farrapos de
chamas por todo o lado. Sem perder o embalo, continuei a correr e fui curvando
na direcção dos outros serafins. A expressão que lia nos olhos deles era de
puro espanto. Se havia coisa que não ensinavam em alguma escola de anjos era
combater contra um companheiro. Nunca tinha havido uma batalha verdadeira no
Paraíso! Bom... pelo menos até ali...
Um serafim colocou-se à frente do outro e ergueu o escudo à espera de
um ataque semelhante àquele que executara contra os outros. Pobre diabo! Aposto
que ainda hoje não faz a mínima ideia de como perdeu a perna!
Quando o segundo viu o amigo no chão, correu sobre mim, as nossas chamas
chocaram e a luz que daí veio doeu-me nos olhos. Tentava golpeá-lo, mas ele
defendia-se como um urso. E os outros serafins estavam já muito perto... não
tive hipótese de fazer mais nada senão jogar sujo: fingi que escorregava e
pus-me de joelhos. Quando ele pensava que tinha vencido, e ergueu a espada acima
da cabeça para me matar, empurrei a minha, numa estocada furando-lhe o abdómen.
Caiu com uma expressão de incredulidade esculpida no rosto.
Parecia tão novo... talvez só tivesse cinquenta anos de serafim. Mas,
agora, o espírito estava morto e alma tinha que se contentar com uma eternidade
a vaguear pelo Céu.
Quando me virei para enfrentar os outros dois serafins já não eram
dois, mas duzentos. O mundo, a humanidade, eu próprio...tudo parecia perdido,
condenado...
Não me lembro de ter pensado mais nada. Alguém que carrega contra
duzentos serafins sem ponta de medo no coração não tem tempo para pensar. É
– lhe impossível pensar. Rodei a espada por cima da cabeça e descrevi um círculo
completo. Seis espadas voaram, cinco delas ainda com as mãos dos donos
agarradas. Se um espírito sangrasse, o Céu, naquele dia, teria ficado manchado
de vermelho. Mais tarde, isso acabaria por acontecer.
Tinha enfiado a lâmina no rosto de um serafim quando me atingiram pela
primeira vez – vararam-me o braço que sustinha a espada de um lado ao outro.
A dor era insuportável! Nenhum dos que eu “matara” sentira dor. Mas eu,
sim. Deus estava a preparar-me para o que me esperava no resto da Eternidade.
Com o braço inutilizado, já não houve luta para mais ninguém. Mas deu
para cheirar a adrenalina dos duzentos serafins no nono nível do Inferno. As
espadas continuaram a furar-me. Sem piedade. Uma no peito, outra na perna, vi
uma orelha minha a voar para a esquerda e três dedos duma mão disparados para
a direita. Tanta dor estrangulava-me e queria gritar, mas os pulmões estavam
inundados de... de sangue!!! Deus dera-me sangue outra vez!... Com o único propósito
de ver a minha decadência a escorrer dos golpes sofridos!
A partir dali, lembro-me de tudo por lapsos. Senti-me desmaiar, mas o círculo
de lâminas ardentes que se tinha formado à minha volta despertava-me a cada
golpe. A certa altura, só reparei que tinha perdido um braço quando este se
embaralhou nos meus pés e me fez tropeçar. Bati com a cara no chão e ainda
hoje sinto cada pontapé que levei a seguir. Felizmente, uma lâmina entrou-me
pelo olho direito e obrigou-me a desmaiar de dor.
Assim me deixaram, a nadar no próprio sangue, com um palmo duma espada
enterrada na cabeça, e três palmos da mesma a saírem-me pela nuca. Não faço
a mínima ideia de quantas outras tinha enfiadas por todo o corpo, nem de quanto
tempo ali fiquei. Lembro-me de ter acordado com um toque suave no ombro.
— Mãe? – recordo de ter
perguntado. Depois ouvi gargalhadas. Abri o olho que me restava e... e
apercebi-me do que tinha feito e donde estava. Um demónio enorme, com quatro
cornos a rasgarem-lhe o crânio, estava debruçado sobre mim e regava-me com
sangue. Quando o olhei melhor, vi que sangrava da boca: estava a dar grandes
dentadas na própria língua. Era visível a dor que isso lhe provocava, mas a
excitação de saber que me iria torturar impedia-o de se conter.
Depois de cuspir a língua, começou a comer a outra que lhe nascia de
imediato. Sem dizer uma única palavra, pegou-me pelo pescoço só com uma mão,
como se pegasse num coelho pelas orelhas, e começou a cortar-me a barriga com
uma lâmina comprida. Comecei a achar que tinha de tratar a dor como amiga, pois
estava visto que iríamos encontrar-nos vezes sem conta. Senti o sangue subir-me
pelo pescoço e jorrar da boca como nascente de água termal... E foi nesta
altura que me apercebi porque é que chamavam Céu à luz que ficava por cima de
nós: aqui, não havia hipótese de desmaiar de dor. Ainda tentei gritar, mas o
único efeito foi um gorgulhar doloroso e deixei de ver com o sangue que me
cobriu o rosto.
Eu até sabia porque estava ali. E era isso que me dava alento. Estava
ali por Cristo! Ele escolhera-me para partilhar a Verdade Suprema. De todas as
criaturas, em toda a existência, eu era o único que a sabia. Se o preço por
ter ajudado Cristo fora a danação eterna, então que assim tivesse acontecido!
Orgulhava-me de sofrer por Cristo! Não verteria uma única gota por Deus, mas
Jesus podia beber a Vida do meu próprio corpo!
Congratulei-me com a dor que sentia e incitei o demónio a ir mais fundo.
Acedeu ao desafio e arrependi-me, arrependi-me muito.
Estava pronto a rasgar a minha própria carne com as unhas, numa atitude
cega de acabar com tudo aquilo que sabia que não iria resultar, quando o demónio
parou e me largou. A dor continuou, obrigando-me a cerrar os olhos e os dentes.
Não conseguia imaginar uma Eternidade como aqueles cinco minutos...
E, de repente, ouvi um estrondo. Devagar, fui abrindo o olho numa
curiosidade masoquista de saber o que o demónio estaria a preparar... Então vi
que estava sozinho. Encontrava-me numa sala de paredes de pedra granítica. Por
cima da única porta, lia-se, em hebraico, as palavras: «Pa Pa Satan, Pa Pa
Satan Aléph».
— Aqui impera
Satã... –
li eu.
Não havia dúvidas! Estava no Inferno. O ruído que tinha ouvido fora o
da porta a bater quando o demónio saíra.
A sala estava repleta de instrumentos de tortura e de corpos humanos em
pedaços. A pouca luz que entrava pela minúscula janela atraiu-me. Com a minha
única mão a segurar as inúmeras feridas que a criatura me tinha provocado,
arrastei-me até lá. Tinha que aproveitar para fugir, se a janela não fosse
muito alta...
Ao tentar debruçar-me, vi que estava na cidade fortificada de Dite, que
ficava entre o quarto e o quinto nível do Inferno, a cidade onde sofrem os
hereges... Não me importava de ser um herege, mas tinha que fugir antes que o
demónio voltasse. Porém, depois dum
segundo olhar, pareceu-me que algo estava errado... Ao invés das almas estarem
a ser agredidas por todo o pátio, dentro das muralhas, estavam concentradas à
porta da casa de pedra onde me encontrava. E o mais incrível era que não se
via um único demónio entre os condenados!
Toda a minha dor baralhou-me as sinopses e tive dificuldade em trepar
para o parapeito da janela. Quando já o tinha feito, ouvi a porta abrir-se atrás
de mim. Nem olhei para trás. Preparava-me para saltar antes que a criatura me
apanhasse, mas fui lento demais e senti uma mão no ombro.
— Por favor! Mais não!...
– gritei.
A resposta não foi um golpe nas costas, mas sim um:
— Calma, Tiago! Calma!
Não queria acreditar! Reconhecia aquela voz, mas não conseguia
acreditar!...
Olhei lentamente para trás, para ver Jesus, com as vestes ensopadas em
sangue, mas a sorrir para mim.
— Vamos? – perguntou com
a voz mais doce que eu já ouvira.
Não consegui conter-me e desatei a chorar como um bebé, desejando sê-lo.
— Oh! Senhor! Senhor!...
– consegui balbuciar por entre as
lágrimas e o sangue que me atulhava a garganta.
— Pronto... Está tudo bem,
está tudo bem – disse-me Ele, voltando a consolar-me como o tinha feito –
meu Deus! – ainda ontem!
Jesus ajudou-me a caminhar até à porta onde estavam dois arcanjos a
segurar todas as almas, ajoelhadas, que queriam tocar em Cristo, o que, pelo
aspecto das Suas vestes, conseguiram várias vezes. Atravessámo-las como um
barco num mar de tempestade... Jesus conhecia-as a todas, sem excepção.
Tratava-as pelo nome e dirigia a todas palavras de conforto.
Fiquei todo orgulhoso ao pensar que Jesus viera ao Inferno buscar-me!...
A mim! Vi o demónio que me ia torturar caído no chão, às portas da cidade,
sem dúvida derrubado pelos arcanjos que tinham acompanhado Jesus. Ia pontape-á-lo,
mas a filosofia do meu Salvador era dar a outra face. Eu assim o ouvira dizer.
Por isso, não o fiz. A partir dali, iria dedicar toda a minha Eternidade a
aprender com Cristo. E que excelente professor Ele era!...
Depois de atravessarmos todo o Inferno, saímos pelos portões que Jesus
arrombara no dia da Sua morte. Subimos até ao Céu e avisámos Pedro do que tínhamos
feito. Ele prometeu reforçar a vigilância, pois Lúcifer iria querer a
desforra.
Foi o próprio Pedro que carregou comigo até ao edifício dos arcanjos e
me tratou as feridas. Cristo despediu-se de nós, à pressa, e correu para o Seu
escritório. Não era preciso ser nenhum génio para ver que tudo isto tinha
sido feito sem Deus saber. Por isso fora trazido para aqui. “Deus não Se
importa com o que se passa aqui. Somos só burros de carga!”, tinha-me dito o
arcanjo herege, há uns séculos atrás. Porém, agora, via que isso podia
resultar em vantagem.
Não puderam fazer nada pelo meu olho, nem pelo meu braço, mas, quanto
ao resto, iria ficar bem. Eu não me importava. Só queria saber uma coisa:
fartei-me de interromper Pedro enquanto falava, a perguntar se iria sentir mais
alguma dor.
— Só se fores descoberto
aqui dentro. Se te apanham...
— Não importa! Não me
apanham!
Fiquei com um sorriso idiota na cara e depois perguntei ao amigo de
Jesus:
— Pedro, Ele vai aparecer
por aqui muitas vezes?
Pedro sorriu e respondeu, como se estivesse a falar com uma criança:
— Sempre que puder, Tiago.
Sempre que puder.
O que de facto fez. Todos os domingos, até hoje, Cristo veio celebrar a
missa à cave do edifício dos arcanjos e ouvir-nos em confissão.
Ouvi falar no excelente trabalho que o anjo da guarda que me substituiu
fez com o tal de Afonso. Era apenas um novato, mas eu não teria feito melhor.
Aliás, todos nós concordámos que o jovem anjo tinha feito uma óptima missão.
Fui o primeiro de muitos que vieram para aqui depois de terem conhecido a
Verdade Suprema. Cristo tem-Se ocupado em recrutar mais “não-cegos”, como
Ele nos chama. De vez em quando, sentamo-nos a contar velhas histórias de
quando éramos vivos, ou de quando éramos úteis. Acabam sempre a gozar-me por
eu ter “pensado” aquando da história de Júlio César. Mas não me importo.
Estas gargalhadas são benzidas e são uma das poucas coisas que se podem fazer
numa cave. Céus! O tédio! E eu que sempre achei que as almas que não eram
anjos tinham uma Eternidade de aborrecimento pela frente!... Elas podem andar
por onde querem e nós estaremos confinados a um espaço miserável até ao dia
em que Cristo volte à Terra para o Juízo Final. Não temos qualquer cargo,
nenhuma ocupação... Não estamos a ser ingratos, apenas solícitos. Cristo
prometeu que nos iria arranjar uma missão, mas, até lá, limitamo-nos a
escrever algo que se pode chamar “memórias” e recordamos. É tudo o que nos
resta fazer. A outra opção será passar o tempo todo a pensar na Verdade
Suprema, mas, em nome da nossa sanidade mental, será melhor não o fazer.
Teremos que pensar numa forma de sobrevivência para a raça humana e não
chorarmos por existirmos.
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