Contos do Tempo
Estou
sentada na areia e, ao longe, vê-se o mar. A fotografia é tão nítida que se
nota cada grão de areia, areia mais clara que o mar e o céu, mas tão cinzenta
como eles. Roupa branca, pele cinza. Quando ele me tirou esta fotografia,
disse-me para ficar séria, concentrada, embora, ao princípio, nenhum de nós
conseguisse parar de rir. Depois disse que eu só parecia triste e recomeçámos
a rir.
Estou
sentada na borda da cama a olhar para isto há muito tempo. Gostava de chorar,
mas todo o quarto tem uma atmosfera demasiado garrida. É a janela com as árvores,
lá fora, e a luz filtrada, amarela.
Ouço tinir
a porta e desço para lhe dar o almoço. Mal dizemos palavra e a refeição
passa depressa, dolorosa. E eu volto ao quarto.
PASSAGEM
Vamos de
carro e há uma cidade que aparece no cimo de um morro, com uma massa informe de
nuvens roxas e laranja por trás e o sol a brilhar nas fachadas.
Imagino
que estamos os dois à espera: olho para ele e ele fareja o vento; depois
concentramo-nos de novo num só ponto abrangente – o fim da estrada seca. A
atmosfera está carregada de pólenes e cantos, de suor. O cheiro acre da relva
esmagada sobre a minha pele, mais do que incomodar, embriaga. Há um cão, também,
um pequeno animal adormecido, a cinco ou seis passos que nos separam. Entre o céu
e a terra, mais duas libelinhas e uma rola. Esperamos. Está tanto calor…
Viro-me como se caísse para experimentar o sol, agora na cara. Depois inclino só
um pouco a cabeça para a direita, vejo que ele ainda vigia, e fico só a
senti-lo.
O que fitávamos
tornou-se indefinido e já não olho. Atrás da clareira que nos protege, a
floresta respira como um animal ferido, escuro, e sei, sem o ver, que também
ele não desvia o olhar do alvo. Mas o homem que espera junto ao castanheiro
olha-me só por instantes…não fala: já dissemos tudo o que havia para dizer,
só nos resta esperar. Mesmo assim, mesmo assim… se ele viesse até aqui e
tocasse, mesmo só com um dedo, o meu corpo deitado na erva, sob o sol…
Não, eu não
deixaria ninguém, excepto o sol, tocar-me. Aquela que espera não sente como
eu. De qualquer maneira, não podemos sentir o mesmo, o que é tanto culpa nossa
como das aves e do céu azul. Ou seja: mesmo que culpássemos alguém de que
serviria?
Quando
acordo, dentro do sonho, já chegaram as nuvens, e visto-me. Subitamente, está
frio. Olho para o nicho do castanheiro, para onde ele estava, controlando a
estrada de pó, e vejo que partiu. Fiquei sem saber de quem estávamos à
espera.
Vamos
os dois de carro e, por entre as florestas, aparecem vilas e aldeias. E penso:
as pessoas dali não podem sentir nada, qualquer emoção, que nós não
possamos ter multiplicado por mil. Porque nós vemos tudo e não paramos.
ROMANCE
Era um dia
de sol. Isto é importante, porque, se o dia fosse chuvoso, os barcos do jardim
não teriam sido postos na água, não estaria ninguém nos bancos de pedra, os
namorados não passeariam sob as árvores, as criancinhas não deixariam cair os
gelados e o lago e o parque estariam desertos. Mas era um dia lindo de Setembro
e o Verão ainda estava fresco na memória do barqueiro, dos parzinhos e das famílias.
Se o céu estivesse forrado de nuvens, o remoinho sob as águas teria passado
despercebido. Assim, dois homens que pegavam nos remos do mesmo barco viram-se,
momentaneamente, levados por uma força que não compreendiam e quase não
sentiam. O bote rodou uma vez, e depois mais uma, sem que qualquer deles remasse
com mais força. Por uns segundos entreolharam-se, espantados. Depois, a vida
continuou.
Talvez isto
tenha de ser melhor explicado. E talvez eu não seja a pessoa indicada para
isso…Só sei que, da ponte, o centro do lago parecia vivo. Era um dia de sol.
Já disse isso?... Um daqueles dias que parecem um cenário de tão
perfeitamente verde, azul e rosa. No relvado clarinho havia mesmo uma família
perfeitamente feliz, com pai, mãe, filhitos loiros e gordinhos, cão e cesto de
piquenique. Estavam todos vestidos de cores claras, beges e cremes, e nem o Bobi
se incomodou a olhar quando ouviram gritos provindos das margens. Estavam no seu
paraíso, por baixo de uma árvore. Mas outros foram até ao estrado do
barqueiro para ver se alguém se afogava. E, desiludidos, (era só um colar),
voltaram aos seus lugares, pouco depois. Estavam todos à espera de alguma
coisa, mas ainda não era aquilo.
A tarde
decorria calma por entre as árvores que abafavam o ruído dos carros. A certa
altura, um coelho branco saiu da toca, farejou um fumo distante e voltou a
entrar.
Àquela
hora, um homem caminhava sozinho pela parte nova da cidade. Apesar do dia
luminoso, só conseguia ver ruínas e cinzas. Olhava o chão e não via os
ladrilhos brancos lavados há poucas horas, via terra batida com entulho a
limitar um caminho tortuoso: eram pedaços de cal acinzentada e tijolos e adobes
partidos, esfarelados, diluindo despojos de uma guerra que nunca foi, (ainda),
bonecas cegas e carecas, cartuchos vazios, trapos sangrentos… Louça às
flores, quebrada, e, aqui e além, metal torcido. E tudo coberto por uma patine
dolorosa, que se agarrava também aos ombros, cabelos, mãos, olhos de pessoas
insensíveis a tudo aquilo. As casas estavam mutiladas, reduzidas a paredes
incompletas e raros telhados. Para esconder os habitantes, tinham-se pendurado,
dos tijolos sobreviventes, panos rasgados e incolores, macios do uso. Todos os
vidros se tinham estilhaçado nos bombardeamentos. Ele caminhava de cabeça
baixa, porque o céu estava tão escuro que quase o tocava e sentia vidrinhos
sob as solas.
O homem
virou à esquerda, depois da igreja, e parou um instante em frente da velha
torre de menagem. Esta tinha resistido a oito séculos, mas não à guerra
recente. Ele passou sobre as tábuas que tinham sido uma porta. Entrou. Talvez
fosse a torre que suportava o céu, pensou. Decapada, o céu invadia-a, e à
terra, como peso de fuligem. A base da torre era circular e, pelas paredes,
trepava uma escada de pedra negra ao longo da qual tinham sido construídas
estantes para registos paroquiais e civis. Agora, todos os nascimentos da cidade
repousavam pelo chão, em folhas chamuscadas.
E as pessoas
que tinham nascido, as que não sabiam da guerra que lhes roubara a identidade,
abriam as bocas como peixes atónitos, no parque do lago, e podiam jurar, todas
elas, que tinham visto…! A estátua branca tinha mesmo saído da água,
flutuado uns minutos, e voado para terra!... Eles tinham visto… Mas não foi
isso que eu vi. Eu vi uma coluna de água (branca, sim) erguer-se do lago e
saltar para terra num ângulo improvável, enquanto um dos dois homens que
remavam juntos se atirava com fúria à garganta do outro. E eles e eu
percebemos, como o outro que vagueava sozinho, a guerra, uma guerra sem explicações
nem realidade. Era só uma memória, uma guerra passada muito antes de nascer,
voltando agora para nunca esquecer. Mas nenhum de nós sabia o que lembrar.
Portanto parámos
o tempo um minuto e analisámos a situação, mas o tempo avançava sem nós e a
coluna desapareceu, criando a ilusão da estátua como podia ter criado a de um
elefante e não conseguimos saber o que fazer. Quando nos mexemos de novo, o
homem quase estrangulado tira do bolso uma navalha que entra facilmente na carne
do amigo. Constato que já começámos a morrer: o conjunto ficou reduzido a três.
O terceiro
sai da torre e senta-se a ver um grupo de rapariguinhas da escola passar,
chilreando. Levanta-se quando o silêncio volta e passa pelas casas das ruas do
parque. A única que lhe chama a atenção está abandonada há mais de vinte
anos. A tinta verde desfaz-se em escamas, precipita-se da parede. Junto às
goteiras formaram-se colónias de cogumelos que formam degraus. As duas casas
que geminam com estas, a amarela, à direita, e a vermelha, à esquerda, estão
em melhor estado. Ao longo dos anos, as demãos sucessivas de tinta
maquilharam-lhes as rachas das fachadas. O telhado também parece mais seguro,
nestas casas vizinhas, mais limpo de ervas daninhas, as traves menos dobradas ao
peso das telhas. Da rua, o conjunto parece um V brando. Finalmente, o homem
chega à entrada do parque.
E o dia
parecia igual! Desculpem a exclamação, mas, naquele momento, eu ajudava o
homem do barco a esconder um corpo morto e olhei, de repente, para a margem
oposta e era como se nada tivesse acontecido, ou fosse acontecer. E, um segundo
depois, chega o homem que esteve no arquivo da cidade, a passos largos, seguros,
assustadores, fazendo voar atrás de si a gabardina preta e atirando para a
frente olhos pretos também como um actor de filme mudo. E ele pára os olhos
dois centímetros dentro do meu crânio e diz qualquer coisa, que não percebo,
sobre as rosas vermelhas. Toda a gente que está no parque acorda de um sonho e
grita em conjunto… e finalmente dança em reviravoltas, e piruetas mágicas,
que criam um novo mundo.
Vê-se-lhe
cada osso, por baixo dos pêlos compridos e baços como os de um animal aquático.
As pernas da mulher que espera não podem ser mais grossas que os punhos dos
homens que passam por ele o seu nojo ou indiferença. Toda ela parece desengonçada
ou morta: os ombros, a cabeça, os braços até à ponta dos dedos, uma só peça
dura. Tem uma coroa de espinhos depenada sobre a massa do cabelo. Veste-se
melhor que o resto das putas da rua (mas o vestido fica pendurado do seu corpo,
secamente); as outras desprezam-na e só dois ou três clientes lhe tocam, por
curiosidade; um, sempre o mesmo, por pena.
Mesmo que
chova ela vai para a rua. Protege-se com um pequeno guarda-chuva cor de neve.
Passa um carro, outro, outro, e mais nenhum. (Este é um mundo desolador.) As poças
de água enchem-se de sapos e cobras. Ela fixa uma serpente, vê-a contorcer-se,
com olhos vazios de indiferença. Uma bota pesada aproxima-se, esparrinhando
chuva e vísceras calcadas. Pára em frente à serpente e esmaga-a também.
O homem é
pouco mais que velho e muito natalício: barbas brancas como um Pai Natal,
casaco cor de azevinho, e um embrulho púrpura-dourado na mão esquerda; na
direita, uma mala de viagem. As mãos e as roupas foram amolecidas pela chuva e
pela sombra dos prédios bolorentos, burocráticos. O Príncipe das Trevas é um
velho cavalheiro bondoso. A piedade escorre dos olhos luminosos que lhe dominam
toda a cara. No entanto, há qualquer coisa, na maneira como o seu corpo respira
que denota uma certa ansiedade. Confrontam-se, os feiticeiros.
E, no
parque, parámos todos a ver a luta no fundo do lago. Quando tudo acaba,
levanto-me com todo o cuidado. Todas as caras estão assombradas, confusas,
enlevadas, perfeitamente imóveis. Sem as desfitar, recuo serenamente, um pé
sempre atrás do outro, até chegar a casa onde me sentei à janela, à espera
das novas ordens da nova Senhora da cidade, Aquela que tínhamos inventado
depois do sacrifício, para nos devolver as identidades incineradas.
E,
então, o centro do lago agitou-se em forma de rosa.
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