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Rita Cruz Rodrigues
(Esc. Sec. Homem Cristo)

Menção honrosa



Morrigan – O Corvo

 

Prólogo

 

“Este será o meu último dia na Terra como Morrigan. Amanhã não passarei de um simples corvo” – pensou, para si, Morrigan. – “Tenho que ir até ao colégio para me despedir das pessoas, não que vá com saudades, mas não as verei mais. Minto... é claro que vou sentir saudades: levarei Nina na minha alma. Vai ser difícil dizer-lhe que, embora goste muito dela, terei mesmo que ir, terei que a abandonar.” Foram estes os últimos pensamentos de Morrigan antes de sair de casa para ir até ao colégio que frequentara durante alguns anos. Aquela seria, decerto, a última vez que faria aquele percurso, que veria aquelas pessoas que, durante vinte e cinco anos tinham sido suas vizinhas, que, durante tantos anos, a tinham gozado, olhado de lado e até discriminado pela sua maneira de ser, pelo que vestia, pelo que pesava e, sobretudo, pelo corvo que, todas as noites, crocitava na janela do seu quarto, enlouquecendo todo o bairro... Chegada ao colégio, encontrou, sentada no chão, como um cão faminto, a única pessoa que alguma vez entendera e que a tinha entendido também. Tinha, como sempre, a cara suja, a roupa rasgada e imunda, o cabelo despenteado, enfim, um aspecto lastimável de menina de rua. Morrigan, muitas vezes, tinha tentado levar Nina para sua casa, dar-lhe um banho e alimentá-la como deve ser, mas ela sempre se tinha oposto, alegando que cada um tinha o seu destino marcado e o dela era para ser vivido na rua. Dizia que nunca se habituaria ao calor de um lar, nem saberia como mexer-se num lugar como uma casa. A sua casa era a rua, fora lá que nascera, seria lá que morreria. Costumava não preocupar Morrigan dizendo-lhe que vaso ruim não quebra – um seu lema de vida juntamente com o de cada macaco no seu galho. “É difícil ir-me abaixo, o meu sangue é ruim, a minha pele é forte. Quando nasci, já sabia o que me esperava e, por isso, não temo nada” – foram estas as palavras que Nina dirigira a Morrigan a primeira vez que esta a convidara para ir para sua casa. Para Morrigan era incrível como alguém tão novo (Nina tinha apenas 12 anos), tão desprotegido, podia ser tão forte e tão decidido.

Olá, Nina! Estás bem? Pareces muito triste. – disse Morrigan, com um sorriso quente nos lábios.

Como queres que esteja? Sei que tu me vais abandonar, não vais pensar em mim e vais-te embora. Certo? Não estou a mentir, pois não? – respondeu com toda a raiva, mas, ao mesmo tempo, um olhar terno.

Não tenho como ficar. Sempre te disse, desde o princípio, o que é que eu era. Não um ser normal como tu. Não sou humana! – Morrigan disse isto muito alto, ao mesmo tempo que passavam por ele alunos da escola que imediatamente comentaram: “ Como se isso fosse novidade para alguém. Até parece que algum dia alguém achou Morrigan normal! Primeiro o nome, depois as roupas, a pintura...eu sei lá! Tudo em ti é estranho, rapariga, se é que te posso chamar de rapariga.” Esta virou-se para o rapaz e respondeu-lhe, sem papas na língua: “O que eu sou, ou deixo de ser, é da minha conta e de mais ninguém, entendes? Vai-te e não olhes para mim dessa maneira que não tenho medo de ti”.

Esse é o problema! Não deixas que ninguém te diga nada, não deixas que entrem no teu mundo, que está fechado, não a sete, mas a milhares de chaves. Fica, fica comigo! Não vás para esse mundo frio onde não encontrarás ninguém que te estenda a mão, (ou deverei dizer uma asa?), quando te sentires sozinha – implorou Nina com o rosto invadido pela tristeza por saber que as duas sofriam de um mal que não acabaria.

Mas esse é o meu destino. Não o posso mudar. Fiz um pacto e agora tenho de o cumprir. Tu mesma me disseste que cada um nasceu para ter o seu fim. Pois este é o meu, não o posso mudar. Vou sentir muito a tua falta: foste a única pessoa que alguma vez me entendeu e isso significa muito para mim. Mas o meu passado definiu há muito o meu futuro e, agora, nada posso fazer para contrariar isso.

Se quisesses mudavas. Fugias... – Nina começou a chorar. – o que é que eu estou a dizer? Se calhar faria o mesmo. Provavelmente faria o mesmo. Mas a ideia de me ver sem ti, a única pessoa com quem posso contar, deixa-me desolada. No fundo, acho que estou a ter um ataque de egoísmo... Quando te conheci já tinhas o futuro predestinado.

Finalmente pareces entender que não se trata de uma vontade, mas, sim, de algo que há muito foi escrito.

Abraça-me com toda a tua força. Imagina que és realmente um corvo e envolve as tuas asas em mim, protege-me. Eu preciso de ti.

Ficaram, então, as duas abraçadas à frente do colégio. As pessoas passavam e olhavam, mas isso não importava: elas estavam abstraídas do mundo, concentradas apenas nas suas vidas que iriam mudar radicalmente no dia seguinte. Uns sentiam pena pela rapariga mais nova, outros gozavam por verem Morrigan e outros, ainda, nem sequer lhes ligavam. Morrigan estava admirada: nunca, antes, Nina se tinha mostrado tão frágil, tão dependente. Sempre fora forte e orgulhosa, nunca deixara ninguém prestar-lhe uma ajuda que fosse, tudo o que tinha fora por esforço próprio. Morrigan chorou ao deparar com a tristeza, sinceridade e inédita fragilidade emocional de Nina. Esta rapariguinha era, no fundo, como Morrigan: não tinha ninguém no mundo desde a sua infância, mas sempre fora forte e nunca mostrara precisar de quem quer que fosse. Mas, agora, nada disto tinha mais importância: elas não precisavam de mentir uma à outra, pois havia uma espécie de telepatia – o que uma sentia era sentido pela outra.

 

§§§§§§§§§§

 

Há dez anos atrás, os pais de Rosalina tinham sofrido um grave acidente que lhes tinha tirado a vida. Trabalhavam ambos numa empresa de químicos, donde eram importantes engenheiros. Tinham uma vida estável, e uma filha maravilhosa, de dez anos. Possuíam uma linda casa no alto de uma encosta, que tinham comprado por bom preço, quando, havia dois anos, se tinham mudado para aquela cidade. A princípio, a vizinhança ficara alarmada pois dizia-se que a dita casa era habitada por corvos que, durante a noite, saíam e atormentavam os céus do bairro. Rezava a lenda que, outrora, vivera lá uma bela mulher cujos filhos tinham sido, um dia, encontrado mortos no seu jardim. A partir desse dia, nunca mais ninguém vira a mulher, mas sabia-se que alimentava dezenas de corvos que viviam dentro da casa. Eles eram, para ela, os filhos que perdera.

Um dia, porém, um homem, interessado na casa, entrou para negociar com ela...mas só viu um longo casaco roxo estendido no chão. Procurou pelos compartimentos, mas não encontrou ninguém. A casa fora então vendida. Contudo, antes, tinham mandado fazer uma limpeza total, pois a casa estava cheia de sujidade e corvos.

Após a limpeza nunca mais se tinham lá visto os tais animais, mas, todas as noites, sem excepção, se ouvia o seu crocitar. O bairro vivia atormentado com aquele barulho mortífero, temiam a sua vingança por terem sido desapropriados e todos sabiam que se tratava de animais carnívoros. Por sorte tinham chegado aqueles compradores que fizeram alterações na casa e, a partir daí, não se tinham voltado a ver, nem a ouvir, corvos.

Tudo corria bem quando um acidente se deu: trabalhavam com materiais facilmente inflamáveis e sabiam o perigo que corriam. Mas naquele dia, lindo como qualquer outro de primavera, em que o sol brilha lá no alto, o pior acabou por acontecer: um composto explodiu na sala de experiências, provocando a morte imediata de muitos operários, e ferimentos graves noutros. Na lista dos óbitos constavam os nomes dos pais de Rosalina.

A menina ficara sozinha no mundo, sem ninguém que tratasse dela – não tinha família, não tinha nada.

Na noite da morte dos pais, porém, algo de muito estranho acontecera: a casa tinha uma pequena torre no alto, que era o sótão. Rosalina, que estava a chorar no seu quarto, ouviu uma espécie de canto que vinha de lá. Subira as escadas em direcção ao sótão e encontrou um vulto. Ficou estática, à porta. O vulto era o de uma bela mulher. Parecia nova: trazia um longo vestido roxo, imensos colares, muito compridos, ao peito e, no meio destes, havia um especial. Era um terço negro, sem imagem, mas de pedras compridas e muito finas. Davam a sensação de terem marcas feitas pelas garras de um pássaro, de um corvo, talvez. Essas marcas eram do roxo escuro do vestido da mulher, como os olhos dela, como todo o ambiente do sótão. A mulher tinha as mãos tatuadas com o mesmo desenho dos pés, descobertos. O desenho era estranho: parecia-se com um rendilhado, como aqueles que se vêem nos gradeamentos muito antigos. Era, contudo, uma bela obra de arte... devia ter levado imenso tempo a ser feita. Ouviu-se, então, um som que parecia vir de um sítio muito profundo: “ Vem a mim.”

A rapariga ficara verdadeiramente assustada. Tinha sabido, há pouco, da morte dos pais e, agora, estava a ser espectadora de algo tão aterrador como aquilo. Não havia luz no sótão. Os olhos claros de Rosalina espelhavam o medo, os seus cabelos pretos estavam negros no meio da escuridão, a sua figura, alta e magra, perdia-se na ausência de claridade. De rompante entrou um corvo pela janela, que estava aberta e fazia gelar o corpo de qualquer um, tendo pousado no ombro da mulher. O animal era pequeno e feio, com aspecto de quem ia matar, mas, desde cedo, Rosalina ficara encantada por ele. Não conseguiu ver-lhe o mal nos olhos, embora fosse o que qualquer um teria visto. Então, a mulher, vendo a magia nos olhos da menina, voltara a falar-lhe com aquela sua voz profunda: “Gostaste dele, não? Toma, é para ti. Vem cá buscá-lo. Não te fará mal.” A rapariga perdeu o medo e chegou mesmo a dizer, enquanto se dirigia à mulher para pegar naquilo que era seu: “Claro que não me fará mal! Ele parece conhecer-me. Seremos inseparáveis!”

A mulher pareceu ficar impressionada com a determinação de Rosalina e sorrira-lhe. Esta que, embora nova, começava a entender o que se estava a passar, disse à mulher:

– Você é muito bonita, mas tem um olhar triste. Já sofreu muito? – Contudo, não deu tempo para que a mulher lhe respondesse – Acho que somos parecidas: temos o cabelo e os olhos da mesma cor. A nossa pele é branca. A minha mãe morreu hoje. Sabia? Ela também era muito bonita, mas muito diferente de mim. Ninguém dizia que éramos mãe e filha. Também era diferente do meu pai. Também morreu hoje.

A pequena parecia não dizer coisa com coisa.

 

§§§§§§§§§§

 

Estou triste. Fiquei sozinha. Agora só tenho este corvo que me deu. É verdade: obrigada por ele. – ao dizer isto, sorriu abertamente para aquela mulher.

– Não tens nada que me agradecer. Foi ele quem te enfeitiçou. Os corvos também me enfeitiçaram. Há quem os tema. Eu adoro-os. Tenho dezenas de corvos e conheço-os a todos. Esse ainda é bebé. A mãe dele morreu: alguém a matou com uma arma. Está órfão como tu. Vocês vão dar-se muito bem, tenho a certeza. É preciso ser-se especial para eles gostarem de nós. São muito selectivos.

– Gostei muito. Como é que você se chama? – perguntou Rosalina.

– Eco. E não me trates por você.

– Mas isso não é aquele som que se ouve quando se está na montanha?

– Também, mas o meu nome tem uma outra razão de ser. Segundo a mitologia grega, havia uma ninfa que se tinha apaixonado por Narciso e que este sempre rejeitou. Por isso, ela desapareceu, embora a sua voz continuasse presente. Também tenho esse poder: a minha voz está sempre presente.

– Também gostava de ter um nome assim, com significado. Gosto muito do meu, mas não me diz nada. Chamo-me Rosalina.

– É o que acontece com a maior parte das pessoas. Temos um nome que nos dão ao nascermos, mas que nem sempre é aquele que, na verdade, nos corresponde. Também não me chamava Eco quando nasci, mas, quando me tornei um corvo, mudei o meu nome.

– Corvo?! Como assim?...corvo? Pelo que vejo é uma mulher!

Então, como que por magia, Eco abriu o seu casaco e cobriu a face com ele. Disse umas palavras em latim e, de repente, no lugar de Eco apareceu um corvo.

– Vês? Também sou um corvo, se quiser!

– Como é que consegue fazer isso? Também gostava de poder transformar-me em corvo!

– Não é assim tão simples quanto parece... Não basta quereres para o seres. É preciso abdicar de muita coisa. Eu só me tornei uma mulher-corvo porque já não tinha ninguém na vida. Os meus filhos tinham morrido. Estava sozinha no mundo. Comecei a ver que, todas as noites, havia um corvo que pousava na minha janela, olhando para mim. Ele ficava ali, imóvel, apenas a olhar-me: não se mexia, nem fazia qualquer som. Um dia, decidi aproximar-me e assim fiz. Acariciei-lhe as penas... eram tão macias... e comecei a sentir um carinho especial por aquele ser que, todas as noites, vinha ter comigo. E ele acabou por falar comigo. Fiquei pasmada ao ouvir as palavras que lhe saíam do bico, mas, na verdade, ele falava.

– Incrível! Como é que reagiste... ou antes: o que é que ele te disse?

– Começou a falar da minha própria vida. Mais surpreendida fiquei ao constatar que ele sabia de factos que ninguém mais sabia. Então aliciou-me, falando-me da sua vida de corvo, da sua liberdade, das suas viagens, da sua independência, do que sabia e do que ainda iria saber. Por outras palavras, enfeitiçou-me. Todo ele era mágico e fiquei presa às suas palavras. Prometeu que voltaria na noite seguinte e eu não consegui pensar noutra coisa, durante noite e dia, senão naquele pequeno corvo que tinha falado comigo. Na noite seguinte, fui para a janela mais cedo e ele não tinha ainda chegado. Esperaria o tempo que fosse necessário para o ouvir novamente – as suas palavras davam-me paz. Depois da morte dos meus filhos, sentia-me sempre muito deprimida e ele conseguiu voltar a dar-me vontade de esperar que os dias passassem. Queria viver só para o ouvir, à noite. E, numa delas, perguntou.me: “Queres fundir-te comigo?”

– E o que respondeste? – Rosalina estava curiosíssima com toda aquela história.

– Fiquei atónita, com a proposta, não a entendi. Não sabia o que ele queria dizer com aquilo.

– Mas acabaste por a aceitar, não foi? – Rosalina ansiava saber como é que tudo tinha acabado.

– Sim, depois ele explicou-me e acabei por aceitar. Agora sou um corvo e uma mulher ao mesmo tempo. Transformo-me quando quero. Contudo seria diferente de ti se tu fosses também uma mulher-corvo.

– Diferente... diferente, como? Não posso ser um corvo também? É isso que queres dizer?

– Não, não é isso. Tu também podes ser um corvo. A diferença está em que eu já morri. Não estou viva como tu.

– Não estás viva?! Aos poucos vou entendendo cada vez menos.

– Eu preferi desistir da vida quando me transformei, embora isso não fosse necessário. Tu não precisas de acabar com a tua vida, mas essa foi a minha decisão, na altura.

– Estás arrependida?

– Não. Mas, às vezes, ainda penso como seria se estivesse viva.

– Como é que foi que te transformaste, ou seja, como é que eu me posso transformar?

– Antes de mais é preciso saberes se é isso que realmente queres. Tens que sentir, em corpo inteiro, que é o que queres. Depois não poderás voltar atrás. Farás a tua vida normal, nada mudará. Quando quiseres transformar-te basta dizeres as palavras mágicas. Mas nunca deverás transformar-te por uma má razão. Uma vez, uma mulher-corvo transformou-se à frente de toda a gente só para se mostrar e sofreu dolorosas punições que não te aconselho, sequer, a saber. Poderás voar, viajar, como todos os corvos, serás inteiramente livre e ninguém mandará em ti, nem te obrigará a fazer o que quer eu seja. Há apenas um constrangimento nesta vida de mulher-corvo: durará apenas dez anos, nem mais, nem menos um dia. Passados dez anos de te teres transformado pela primeira vez, deixarás de ser um misto dos dois seres e serás apenas um: um corvo.

– Serei apenas um corvo? Terei então de abandonar o mundo em que nasci e me criei para vir a ser apenas um corvo, num sítio qualquer? – Rosalina começou a não gostar do que ouvia e isso notou-se na sua voz.

– Disse-te que não era assim tão fácil ser um corvo. Preveni-te que terias que abdicar de muitas coisas. Uma delas é o teu mundo como o conheceste. Poderás ficar aqui, na Terra, ninguém te pode obrigar a ires-te embora, mas não ficarás como mulher-corvo. Se decidires manter-te aqui poderás fazê-lo, mas como corvo. E, então, estarás disposta a todos os perigos inerentes à vida dum pássaro. A mãe do corvo que tens na mão foi alvejada por um humano qualquer...

– Porque é que não podemos viver desta maneira para sempre, como mulheres-corvo? Era justo, acho. Faz-se um pacto que durará para sempre...

– E o pacto que fizeres é para toda a tua vida.

– Sim, mas chegará uma altura em que temos de nos transformar uma vez mais. Tu, por exemplo, ainda és mulher-corvo ou és já só um simples corvo?

– Não me viste, há pouco, transformar-me? Ainda sou mulher-corvo, embora, quando me transformei, tenha decidido abandonar este mundo. Ainda sou uma mulher-corvo e posso-me transformar quando quiser. Tenho apenas que ter cuidado com quem me vê quando sou mulher. Para todos os efeitos, estou morta. Não posso aparecer quando quiser.

– Quando é que costumas aparecer? Gostava de poder falar mais contigo. – A menina estava, agora, mais calma.

– Para dizer a verdade, esta foi a primeira vez que voltei à Terra depois de me ter transformado.

– Como é que te estás a sentir?... Não deve estar a ser fácil. Já foi há muito tempo?

– Sim. Foi mesmo há muito tempo. Está a ser bom lembrar-me desta terra. Não sei se sabes, mas esta era a minha casa. Foi aqui que vivi, aqui que os meus filhos morreram, onde vi, pela primeira vez, o corvo e, por último, foi aqui que me transformei para sempre. Traz-me muitas recordações, esta casa. Boas e más. – Eco sorriu, ao confessar isto, mas, ao mesmo tempo, deixou cair uma lágrima pelo rosto, devagarinho.

– Estás a chorar! Quando te vi, há pouco, pela primeira vez, pensei que fosses um ser inatingível, que ninguém conseguisse penetrar no teu mundo. Pensei que fosses o ser mais forte do mundo e agora vejo-te a chorar. Às vezes, enganamo-nos com as pessoas.

– Não necessariamente. Mas devo confessar que somos um pouco imprevisíveis, às vezes. Depois de me transformar definitivamente em mulher-corvo, a minha vida melhorou muito. Já não sofro, já não sinto dor por nada. Não estou susceptível nem à dor, nem ao sofrimento, e isso é óptimo, principalmente para quem sofreu tanto. Vivo em paz comigo mesma e com todos os seres deste mundo. Vivo com os corvos, só com eles, e não pretendo partilhá-los com ninguém. Vivo um período monástico: tudo é calmo e pacífico, não tenho que me preocupar com nada. Vivo comigo e com eles e não preciso de mais ninguém. Nunca pensei em voltar à Terra, sabes?

– Porque voltaste, então? – perguntou, curiosa, Rosalina.

– Posso ver tudo o que se passa no teu mundo. Sei de tudo sobre ti e a tua família desde que se mudaram para esta casa. Comecei a afeiçoar-me a vocês e, quando soube do que se passava contigo, da morte dos teus pais... bem, decidi vir ter contigo. Também perdi quem mais amava, como tu. Também, como tu, fiquei sozinha neste mundo. Achei que deveria partilhar contigo a minha experiência. Pensei que tu talvez também quisesses transformar-te em mulher-corvo. – os olhos de Rosalina começaram a brilhar. Aquela ideia agradava-lhe bastante. – Não te sentes feliz por estares comigo, aqui, partilhando a minha história? – Eco sabia que a resposta seria positiva: os olhos de Rosalina denunciavam os seus sentimentos.

– Claro que sim. Achei muito bom teres vindo ter comigo. Conseguiste até que eu, por momentos, me esquecesse da morte dos meus pais, do terror que a minha vida vai ser daqui em diante, caso tu... (Rosalina sabia jogar com os sentimentos das pessoas e fez olhinhos de criança indefesa) –..., bem, caso tu não me dês a oportunidade de tentar uma vida diferente transformando-me em mulher-corvo.

– E será que tu estás disposta a abandonar todos os teus antigos hábitos para te transformares? Já te preveni que não é tão lindo e fácil quanto parece. Terás que prescindir de muitas coisas. Serão só dez anos. Nem um dia a mais. Estás disposta a saber que daqui a exactamente dez anos não passarás de um simples e indefeso corvo?

– Não tenho nada a perder. Tudo o que amava nesta vida desapareceu. Estou sozinha, abandonada nesta vida. Sei que ainda sou muito nova, mas não me sinto como as minhas colegas de escola que só pensam em actores e músicos. A vida amargurou-me muito e eu não sou mais uma jovem ingénua. Já senti de perto a morte e a dor... Nada espero deste mundo cruel senão mais dor ainda.

– A morte dos teus pais ainda é recente. Como podes afirmar tudo isso tão em cima dos acontecimentos?

– Não é apenas a morte dos meus pais. O que hoje sou não dependeu apenas desse dia fatídico. Sabes: nunca me senti uma jovenzita. Pode parecer presunção minha. Admito que sim. Mas não é. É o que sinto dentro de mim, ou melhor, o que sempre senti. Nunca fui uma criança normal. Sempre pensei de maneira diferente da das minhas amigas, sempre agi de um outro modo quando não estava com elas. Quando estávamos juntas tentava ser como elas – não queria que me chamassem anormal ou coisa parecida. Mas, na verdade, nunca fui como elas e sentia-me muito mal ao tentar agir como outra qualquer rapariga.

– Porque achas que te sentes assim? Tens alguma razão especial que possa justificar essa diferença?

– Nunca tentei encontrar uma razão. Sempre tentei fugir dessa diferença. Já te disse: tinha medo que me considerasse anormal.

– Não deves ter receio do que possam dizer sobre ti. Deves aprender a aceitar-te como és. Foi assim que nasceste e cresceste e deve haver alguma razão para seres como és. Sabes? Acho que, logo à nascença, vimos predestinados para ter um certo tipo de vida. É como se, ao nascermos, já tivéssemos o futuro marcado.

– Acreditas no destino?

– De certo modo... sim. Tu, por exemplo, se calhar sempre te sentiste diferente das tuas amigas porque havia uma razão para tal. Amadureceste mais cedo porque, provavelmente, no futuro, terias que dar mostras dessa maturidade muito antes de qualquer uma delas. Os teus pais morreram e vais ter que lidar com essa dura realidade, quer queiras, quer não. Também hoje te apareci, falei-te de mim, do que é ser mulher-corvo e ficaste fascinada. Talvez se não fosses tão madura, como dizes ser, não tomarias verdadeira noção do que te estou a dizer. Entendes?

– Sim. Nunca tinha pensado dessa maneira. Assim, nessa perspectiva, acredito que, quando nascemos, somos marcados, e que pode haver, de facto, um destino que é só nosso. Acreditas que, quando nasci, e me sentia sempre diferente, era porque, um dia, poderia vir a ter a oportunidade de me tornar numa mulher-corvo?

– Porque não? É bem provável que sim. Sou apologista da existência dum destino pré-determinado para todos os seres do mundo, mesmo para os animais. Por isso, acredito que a tua precoce maturidade seja, em si, sintoma de transformação. – ao dizer isto, Eco sorriu porque sabia o que Rosalina pretendia com aquela pergunta. Ao interrogar Eco, Rosalina estava simplesmente a querer saber se ela podia ou não transformar-se.

– Queres saber mais sobre as possibilidades da transformação, não é?

– Não, não. Não era essa a minha intenção. Perdoa-me se assim to fiz entender. Queria apenas saber qual era a tua opinião. – respondeu, gaguejando, Rosalina, a querer fugir da verdade.

– Sem mentiras, está bem?... Se realmente queres ser uma mulher-corvo, como parece que queres, aprende a ser sincera, diz a verdade acima de tudo. De mentiras está o mundo cheio e é por isso que é tão cruel!

– A verdade acima de tudo! Bem... eu queria mesmo saber se posso ou não transformar-me. Tudo o que me disseste é fascinante, embora também tenha os seus pontos menos interessantes. Mas estou disposta a ir em frente com isto. Não é apenas uma birra minha. É, talvez, a minha primeira grande decisão que tenho de tomar sozinha. Se amadureci antes das minhas amigas por alguma razão foi: talvez porque tinha que tomar grandes decisões antes delas terem, sequer, que decidir o que querem ser mais tarde.

– Bom. Acho que te posso falar agora da metamorfose em si. Adverti-te de tudo o que irás ter que enfrentar. Não será fácil e tu, isso, já sabes. Nunca me poderás acusar de não te ter contado o quer que seja porque fui o mais sincera possível contigo. Em troca, espero o mesmo de ti. Nunca me mintas, diz somente a verdade, não tenhas segredos para comigo. Se quiseres posso ser uma espécie de madrinha para ti. Não tens pais e eu já perdi os meus filhos há muito tempo... Bom, como queiras... Terei muito gosto...

– Eco, adorarei poder ser tua amiga, se o quiseres. Gostei muito de te conhecer: deste-me a oportunidade de ter uma vida diferente de agora em diante e nunca esquecerei isso. Ficar-te-ei grata para sempre!

– Obrigada, Rosalina. Estou feliz por sentires isso. Tentarei fazer tudo para te ensinar o bom desta vida. O mundo está sujo, denegrido com a ambição desenfreada de cada homem. Já ninguém olha para o que faz: os fins justificam sempre os meios, não importa o quanto estes prejudiquem terceiros. – Eco deixou cair algumas lágrimas dos seus lindos olhos azuis, que pareciam violeta com a negridão daquele compartimento iluminado apenas pela lua. – Quero-te mostrar o que ainda há de bom neste mundo.

– Gostava de te fazer uma pergunta. Posso?...

– Claro que sim. As que quiseres. Compreendo que a tua cabeça ainda esteja um pouco confusa com tudo isto. Temo que estejamos a ser muito precipitadas: só tens quinze anos e, por muito precoce que sejas, não deixas de ser uma menina. Receio que tudo esteja a acontecer rápido demais: a morte dos teus pais, o meu aparecimento, a minha proposta... Espero não te estar a confundir demasiado e, claro, pergunta-me tudo o que quiseres. – E Eco sorriu para Rosalina.

– Na verdade não estou tão confusa quanto possas pensar. Sei que as coisas estão a acontecer depressa, mas talvez seja porque não podemos perder tempo. É exactamente por causa de tempo que te quero fazer uma pergunta.

– Se me vais perguntar se podes ficar mais de dez anos... não, não podes. Está estipulado que serão dez anos e nada mais. Sei que é triste, mas é assim.

– Não. Não é sobre isso. Quanto aos dez anos já me consciencializei. Disseste-me que, quando te transformaste, decidiste também morrer para os humanos...

Rosalina foi interrompida por Eco:

– Não me vais dizer que também queres ir embora do mundo dos humanos. Não to aconselho. Eu tomei essa decisão porque já tinha idade. Já tinha vivido muito na Terra, já sabia de muitas coisas e achei que nada mais tinha a fazer aqui. Por isso fui-me embora e, covardemente, abandonei tudo e todos. Se arrependimento matasse... Hoje, certamente, não faria o mesmo. Não vás, Rosalina. Fica. Este é o teu lugar.

– Por muito que tentes não consegues adivinhar qual a pergunta que tenho para te pôr. Não tenho intenções de abandonar a Terra. Ainda tenho muito para viver e os dez anos serão o bastante. Quero ficar aqui, não penses que me quero ir embora. O problema é com quem é que vou ficar. Tu, para todos os efeitos, estás morta. Mas será que podias ficar comigo a viver nesta casa que já foi tua?... Sei que vai ser difícil, mas podemos dar um jeito para que ninguém te reconheça. Não tenho família: nem tias, nem primos. Os meus pais eram filhos únicos.

– Então era essa a pergunta! E eu que andei a divagar... Bom, gostaria muito de poder ficar contigo. Ajudar-te-ia e, ao mesmo tempo, podia voltar a viver aqui, no sítio que abandonei e de que já tanto me arrependi por o ter feito.

– Então achas que podes?... Podes ficar e viver... – Rosalina hesitou ao dizer isto, mas acabou por fazê-lo –... viver comigo?

Começaram a brotar lágrimas dos olhos de Eco.

– Farei o possível e o impossível, minha... – primeiro soluçou, e depois disse, por entre lágrimas –...minha filha.

Embora não o fosse, Rosalina poderia ser como uma filha.

E, a partir daquele momento, Rosalina e Eco tornaram-se mãe e filha. Eram muitas mudanças, num só dia, para Rosalina. Nesse mesmo dia, a menina tinha ficado órfã, vira a possibilidade de tornar-se numa mulher-corvo, encontrara alguém para viver com ela e iria ficar ainda com um novo nome...

 

§§§§§§§§§§

 

– Eco! Eco! Cheguei a casa!

– Olá, Morrigan! – ao mesmo tempo, Eco afagava a cabeça negra da menina – Estás bem? Como é que correu a escola?

– Foi tudo normal... – Morrigan baixou a cabeça ao falar e dirigiu-se para o quarto. Eco seguiu-a.

– Tudo normal, não é? Pois bem: quando está tudo normal não se foge da mãe e se vai para o quarto. Conta-me lá o que é que se passa. Estás com uma carinha tão cansada.

– Não é nada. Está tudo bem, não te preocupes. A sério.

– Quem foi que, desta vez, te gozou? Vá lá, não me mintas. Não, a mim.

– Não importa quem foi quando se é, todos os dias, acusada das mais diversas atrocidades. É difícil, sabes? É ainda mais e, sobretudo, muito injusto. Porque é que me chamam tudo aquilo? Só pela minha aparência física? Eles nem sabem da verdade... Eu gosto de me vestir de roxo, destes colares que trago, especialmente do terço que tu me deste naquele dia em que nos conhecemos... Esse dia... esse dia mudou muito a minha vida.

– Mas não estás arrependida, pois não? Não me digas que voltarias de voltar atrás... eu tinha-te avisado do que irias ter que enfrentar. – Eco abraçou-a com força. – Oh! Meu amor, tão nova e já tão amargurada!

– Não! Não! Não me arrependerei nunca do que fiz nesse dia. É ele que ainda me dá força para viver. Provavelmente, se não me tivesse tornado uma mulher-corvo hoje seria apenas mais um defunto como o meu pai, ou a minha mãe. Certamente já teria desistido. É muito, muito difícil ser-se tratada como eu sou. Mas nada me fará desistir: levarei avante o que há cinco anos prometi.

– Cinco anos!... Já lá vão cinco anos e parece que foi ontem que tudo aconteceu. Parece que foi ontem que conheci aquela menina de quinze anos que tinha acabado de ser abandonada na vida, sozinha, órfã... Em cinco anos muito mudou: tornaste-te muito mais adulta, madura. Agora sabes distinguir o que está certo e o que está errado. Além do mais, és das poucas mulheres-corvo que conheço que não são revoltadas ou meras snobes. Estás no centro: és equilibrada e essa é, provavelmente, uma das melhores virtudes que possuis.

– Sim... mas poucos, ou nenhuns, reconhecem isso. Todos me acham esquisita, uma gótica, uma doida. Chamam-me drogada, delinquente, até esquizofrénica. Qualquer dia escrevo um livro que se intitulará. “Mil e um nomes para acusar o seu inimigo”! Reportório não me falta, sem dúvida!

– Não sei o que dizer, sabes? Se fosse outra, dir-te-ia para teres calma, mas o problema não passa por aí. Foi uma escolha que fizeste e carregá-la-ás sobre os ombros até ao teu derradeiro dia.

– Por falar em derradeiro dia...está a chegar, não é? Vai ser mais difícil do que aguentar qualquer comentário menos ético, Eco. – Notou-se, na voz de Morrigan, uma tristeza verdadeira.

– Já faltam poucos meses. Embora vá ser difícil, não posso negar que vá satisfeita. Tinha uma missão a cumprir aqui e sinto que ela já foi cumprida. Adorei ter estado contigo, com a minha nova filha... – começaram a correr lágrimas pelo belo rosto de Eco – Ensinei-te o que tinhas que aprender e, quando for embora, daqui a pouco tempo, não terás nada a temer. Sabes como é viver, o que terás que fazer, como deverás proceder em qualquer situação, por mais específica... Sei que vai doer-me partir, mas vou, convencida que te deixarei bem.

– Gostei tanto de te ter tido ao pé de mim nas situações mais importantes! Foste muito mais do que uma mãe que, num momento fatídico, perdi. Foste guia, uma orientação. Ensinaste-me o que devia e não devia fazer e, acima de tudo, mostraste-me as leis da vida. Hoje sou aquilo para o que penso ter sido feita: sou uma mulher-corvo e orgulho-me muito de o ser. É daí que vem a minha força de vontade para prosseguir e nunca desanimar, nem desistir. Contudo, não poderei negar o que isso me fará sofrer.

As duas mulheres abraçaram-se, sabendo que, poucos meses depois, repetiriam o abraço, mas de uma maneira diferente. Esse abraço era o símbolo de uma ruptura, da separação que levaria Eco para longe, muito longe... para um sítio tão distante que ninguém poderia sequer imaginar, pois um tal sítio não existia – era o vazio, o ar.

 Até ao derradeiro dia, tudo correu com a normalidade do quotidiano. Não mais se falou naquele assunto até à véspera do dia em que Eco partiria para não mais voltar...e, desta vez, seria mesmo para sempre.

Tinha-lhe sido dada uma segunda oportunidade, como a toda a gente que a ela deve ter direito. Ela tinha-se arrependido da importante decisão que tomara de não voltar à Terra. Mas, há cinco anos, tinha-lhe sido facultado voltar atrás, viver outra vez e ter uma vida normal com uma adorável rapariga que precisara dela tanto quanto ela própria da sua presença.

Não houve despedida entre as duas mulheres-corvo: não queriam que a dor fosse maior. Chegada a noite, Eco foi ter com Morrigan ao quarto desta. Aproximaram-se daquela janelinha onde Eco conhecera, um dia, um corvo. Aí, na janela, abraçaram-se com ternura e beijaram-se. Antes de partir, Eco disse a Morrigan: “Fica com o terço que, no dia em que te tornaste mulher-corvo, te dei. Sempre que olhares para ele ver-me-ás. Sempre que te transformares poderás sentir aquilo que também estarei a sentir. Parto, mas não te deixo, porque não abandonamos quem amamos. Levar-te-ei na minha alma e tu ficarás comigo, na tua. Lembra-te do que sempre te ensinei. A minha voz estará sempre presente.” Foram estas as últimas palavras de Eco. A seguir inclinou-se na janela e pronunciou; “ITAQUE, CORUUS FIT”.

 

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Fora assim que Morrigan ficara, uma vez mais, sozinha. Mas, desta vez, era diferente: sabia como viver e o que tinha que fazer. Não fora fácil ser discriminada por pessoas que nem sequer sabiam o que ela era, mas Morrigan também não iria jamais revelar a verdade a essas pessoas porque não lhe mereciam o mínimo de consideração. Sentiu sempre vontade de contar a alguém, só que esse alguém ainda não chegara. Não podia ser um qualquer: quem fosse teria que ser especial.

Por fim, Morrigan encontrou esse alguém no mundo que tentou compreendê-la e o conseguiu. Era uma menina da rua, pobre e faminta, porém muito inteligente e, acima de tudo, capaz de poder ouvir, de escutar com atenção o que lhe era dito. Não tivera uma vida fácil, essa criança: sempre vivera nas ruas, comera o pão que o diabo amassou, ou, simplesmente, passava fome, que era o mais frequente. Nunca tinha frequentado uma escola – não sabia ler, nem escrever, mas, inteligente, conhecia as artimanhas da vida. Morrigan ainda se lembrava de quando se tinham conhecido e falado de verdade:

– Sabes porque me chamo Morrigan, Nina? Não é um nome nada comum...

– Acho um nome muito lindo, talvez por isso. Qual é a origem?

– Morrigan era o nome de uma deusa céltica da caça e da morte, que se dizia poder transformar-se em corvo. O que te parece?

– Em corvo?!... Porque é que a tua mãe te pôs esse nome? É estranho...

– Não foi a minha mãe quem pôs. Quando nasci chamava-me Rosalina, mas, aos quinze anos, algo me aconteceu que veio mudar todo o rumo da minha vida.

– Não precisas de me contar, se não quiseres.

Nina sempre soube medir as distâncias.

– Tenho a certeza que entenderás o que te vou dizer. Há cinco anos atrás, os meus pais morreram num acidente de trabalho. Na noite da sua morte, conheci uma mulher, de nome Eco, que me mostrou uma vida melhor, mais leve e agradável. Para me integrar nela, tive que abdicar de muitas coisas, e hoje ainda sofro por essas abnegações, mas, ao cabo de cinco anos, só posso dizer bem da vida que levo. Parece que, quando nasci, havia, para mim, um destino premeditado e fui ao encontro dele e estou agora a vivê-lo. A deusa Morrigan transformava-se em corvo. E eu sou uma mulher-corvo...

– Calma lá!... Tu, um corvo?! Uma mulher-corvo?... – Nina não podia crer no que estava a ouvir.

– Sim, ouviste bem: sou uma mulher-corvo. Quando quero transformo-me em corvo e faço tudo o que eles fazem. Voo, sou livre! E é tão bom!... Sinto que vivo uma vida privilegiada. Nem todos podem desfrutar do prazer da liberdade do prazer da liberdade, mas eu posso. Posso dizer que sou livre: não tenho limitações.

– É por isso que, às vezes, és tão estranha? Refiro-me às roupas que vestes, a esse terço que todos os dias trazes ao peito e que me fascina. Sinto os meus olhos presos a ele.

– Este terço é uma recordação da Eco, a mulher que me mostrou o caminho para atingir o meu destino. É antigo, muito antigo, provavelmente centenário. Sei que não é bonito, nem agradável ao olhar. Já ouvi muitas críticas por causa dele. Mas a verdade é que, se as pessoas não gostam dele, é porque se sentem seduzidas pelo seu lado místico e perturbante. Têm é vergonha de confessar que ele as atrai e, ainda por cima, é meu, posse de Morrigan, a estranha, como me chamam.

– Não tenho vergonha de dizê-lo. Desde que o vi pela primeira vez senti-me encantada. E também não te acho estranha, como dizem.

– Isso é porque és diferente. Não foste modelada pela sociedade vil que nos rodeia. És pura e está aí a graça do teu encanto. Não tens falsidade na alma: estás no estado mais puro possível.

Com esta conversa, Morrigan fizera uma amiga verdadeira, a primeira na Terra e, possivelmente, a única. Nina era uma rapariga pura, e, embora conhecesse o mal que invadia progressivamente o mundo em que vivia, não se deixava levar: continuava autêntica, idêntica a si própria.

Um certo dia, Morrigan tentou convencê-la a tornar-se também mulher-corvo: falou-lhe na beleza daquela vida, mas não lhe ocultou o facto de só se poder viver dez anos naquele estado. Chegou mesmo a convidá-la a assistir a uma metamorfose. À noite, estavam ambas junto à janela do quarto de Morrigan e esta, ao proferir as palavras mágicas: “ITAQUE.CORUUS FIT”, transformou-se em corvo. Durante muito tempo, Nina assistiu ao voo de Morrigan: admirou-lhe a beleza de movimentos, a subtileza das proporções e tirou as suas conclusões. Morrigan continuou a tentar persuadi-la.

– Olha para mim! Sou livre, faço o que quero. Transformo-me em corvo quando quero e fujo do mundo. Quem não quer esta vida?... Porque não vens comigo?

– Não posso. Nem quero. Realmente tens uma vida extraordinária, todos adorariam ser como tu. Mas eu não fui feita para isso. Como disseste, seres mulher-corvo é como cumprires o que o destino escreveu para ti. Mas o meu destino não é igual ao teu – não serei mulher-corvo como tu porque não devo, nem quero.

– Mas poderás ser livre...

– Sou livre à minha maneira. Também faço o que quero, como tu, mas de uma maneira diferente, à minha maneira. Ninguém me obriga a seguir nenhum caminho: escolho aquele que quero. Sou como o vento: vou para onde me apetece. Também é boa, a minha vida.

Morrigan deu-se por convencida. Cada um tem o seu destino e não o deve mudar. Ela tinha nascido para ser mulher-corvo e, mais dia, menos dia, não seria mais que um corvo. Nina nascera na rua, era pobre e assim seria o resto dos seus dias. Nascemos para ser aquilo que temos que ser.

 

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Ficaram durante algum tempo abraçadas, sem ligarem ao mundo que as rodeava. Quando se separaram, Nina falou para Morrigan:

– Vai. É o teu destino e ninguém pode fugir dele. Jamais me esquecerei de ti, Morrigan. Gostei muito de te conhecer e lembrar-me –ei de ti para sempre. Ensinaste-me a não ser uma pessoa revoltada, a não sentir ressentimentos de ninguém e assim o farei. Vou fazer com que a nossa convivência não tenha sido em vão. Tenho esperança de que, um dia, também eu conheça alguém com quem possa partilhar as minhas experiências, como fizeste comigo. Um dia falarei das coisas boas da vida, de que é bom ser-se feliz e de que tudo devemos fazer para atingirmos essa felicidade. De que devemos lutar para alcançar a nossa liberdade, que é diferente para cada um de nós. Por tudo isto te digo: vai! Hei-de sempre lembrar-me de ti como alguém muito especial, porque o que importa é o que se é por dentro. As aparências são meras máscaras que adoptamos para nos refugiarmos atrás do que nos convém. Gosto muito de ti...

As lágrimas de Nina brotavam dos seus olhos.

– Agora sinto-me mais capaz de partir porque sei que ficarás bem: não guardarás rancores, nem irás desistir. Sinto-me realizada por ter ensinado algo a alguém. Se cada um de nós ensinasse um pouco que fosse a outros, antes de partir, este mundo, o nosso, seria certamente mais rico. Recorda-me sempre como alguém que lutou para ser feliz e livre. É assim que quero: que a pessoa de que mais gostei neste mundo se lembre de mim. Não gosto de despedidas. Portanto, isto não é uma despedida. Ainda te vou fazer uma surpresa por que não esperas. Até amanhã, Nina...

– Até amanhã, Morrigan! Ah! O meu nome é Rosalina como tu. Nina é como me chamam...

 

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Era meia-noite quando Morrigan se aproximou da janela do seu quarto. Tinha vestida uma longa capa roxa, escura como a noite. Ao peito trazia, como todos os dias, o terço que Eco lhe oferecera. O cabelo escuro, solto, com algumas madeixas que lhe cobriam o rosto. A escuridão envolvia-a desde a roupa ao cabelo, à cor violeta do verniz, aos olhos azuis escuros, e até mesmo às tatuagens que lhe cobriam as mãos, tanto os dedos cobertos de ramagens pretas, como as palmas onde se via um corvo roxo. O ambiente estava cheio de energia, a lua cheia e prateada e os seus raios invadiam o quarto de Morrigan tal como no dia em que conheceu Eco. A sua hora estava a chegar: fizera tudo o que era esperado que fizesse enquanto estivera na Terra. Agora tinha que partir, dizer adeus ao seu antigo mundo para conhecer um outro em que tudo seria diferente, onde reinaria a paz e, sobretudo, liberdade.

Abriu então a sua mão esquerda e apontou o corvo tatuado para a lua. Com a mão direita abriu a longa capa como se estivesse a abrir uma asa. Concentrou-se na lua, no ar que envolvia cada ser e que seria, dali em diante, o seu habitat. Por breves segundos, todos os factos relevantes da sua vida passaram-lhe pela cabeça. Lembrou-se da sua infância feliz com os pais, a morte deles, a aparição de Eco, a vida em conjunto e depois a partida desta, o encontro com Nina e a vida que passara com ela. Depois destas lembranças era hora de partir. Tirou a mão da luz lunar, cobriu com ela o seu terço e gritou para dentro de si: “ITAQUE. CORUUS FIT”, e assim se transformou em corvo! No chão, ficou estendida a sua longa capa roxa.

 

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Quando Nina estava deitada sobre a relva, para dormir, sentiu algo de muito suave junto do seu braço descoberto. Era um corvo, um corvo negro, mas muito doce, que trazia, no bico, um terço... um terço que ela, automaticamente, reconheceu. Esse corvo e esse terço viveriam, para sempre, e daí em diante, com ela. Era essa a surpresa de Morrigan...

 

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