ESPELHOS
I
Uma
vez mais olho para trás, para o passado. Vejo-me, de novo, jovem, fresca, viva,
insensata, frágil e forte, uma adolescente confusa com todas as mudanças que
ocorriam em mim num ritmo incontrolável. E sorrio ao me lembrar daquela inocência,
dos medos, das paixões, das dúvidas, enfim, do medo de crescer e não voltar a
sorrir, de mudar e não ser feliz. Agora, sento-me à frente do espelho e vejo o
meu reflexo cansado. Já vivi o que tinha a viver. Já encontrei o meu lugar na
vida e observo as minhas filhas na sua luta por um lugar ao sol. No espelho,
vejo um rosto maduro, rugas no canto dos olhos já baços, o sorriso
compreensivo de uma vida feliz e calma, os cabelos grisalhos. E uma vez mais a
memória (ou deverei dizer a imaginação?) toma as rédeas da minha mente e eu
volto a ver aquela jovem de pele macia, cabelo sedoso, sorriso inocente, olhos
brilhantes, que ora mostram uma excitação infantil, ora se encobrem de nuvens
de tristeza inexplicável. E vejo, no espelho, essa jovem, de quem guardo
recordações tão turbulentas, levantar-se, descer as escadas a correr e
agarrar-se ao pescoço do seu pai que finge estar zangado. Ele diz-lhe “Estás
atrasada.” e ela sorri docemente, com ar de anjo, o que derrete o coração do
seu pai que lhe retribui o sorriso. Lembrar-me-ei sempre daquela presença, tão
forte, de meu pai, do seu olhar duro por cima dos aros dos óculos quando lhe
pedia para sair à noite e como ele se tornava tão meigo e orgulhoso quando lhe
beijava a palma da mão calejada e lhe dizia “É só um bocadinho.” “ A
nossa menina está a crescer. Qualquer dia deixa-nos.” – dizia ele à minha
mãe e eu repetiria na minha mente “Nunca! Nunca os abandonarei.”
Porém,
eu não iria cumprir a minha palavra: iria encontrar o meu rumo, seguir o meu próprio
destino. Mas, naquele momento, acreditava naquela determinação. Eles eram a
minha vida e queria retribuir o amor que eles me dedicavam.
Levanto-me
e dirijo-me à janela. Encosto-me ao parapeito e observo o jardim à luz
crepuscular. Mas, de repente, ele ilumina-se – é outra vez dia! Vejo a minha
jovem sair de casa para se encontrar contigo, prontas para mais um dia de
escola. Pelo caminho, contar-lhe-ás todas as novidades do fim-de-semana. Como
foste bela e incauta! Como te admirava! E como te invejava! Os teus olhos tão
lindos, o teu corpo já tão adulto, o teu estilo tão característico, o teu ar
tão desenvolto, o teu jeito tão especial para lidar com rapazes... Porém, eu
não te conhecia. Não conhecia esse ser tão maravilhoso e frágil que
apresentava pomposamente a toda a gente como “a minha melhor amiga”. Tenho
saudades tuas, do teu espírito tão alegre e inconstante! Tu manter-te-ás para
sempre adolescente e serás imortal na minha memória.
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–
O que é que achas de mim, Lena? – perguntaste-me, um dia.
–
O que acho de ti? Sei lá! O que é que queres que eu diga?
–
Não. A sério. Diz lá! Podes ser sincera que eu não fico chateada. –
insististe, pegando-me na mão. Olhei para a tua cara tão bonita e tentei
decifrar o que é que tu querias ouvir. Talvez não fosse a melhor forma de
agir, mas eu sabia que precisavas de ouvir qualquer coisa satisfatória.
–
Acho-te bonita, interessante, uma óptima amiga...sei lá! Tens inúmeras
qualidades. – respondi-te, e os teus olhos brilharam.
–
E os meus defeitos? Vá lá! Confessa que não tenho sido grande amiga...
–
Tu és boa amiga... talvez andes um pouco afastada. Mas não faz mal. Temos
amigos diferentes. – disse-te e tu apertaste a minha mão com mais força.
–
Perdoa-me. Tenho medo de que te aborreças se te pedir que venhas ter com os
meus amigos. Mas tenho um convite a fazer-te para te recompensar. –
anunciaste, e finalmente compreendi o objectivo da conversa. Os teus pais nunca
te deixariam ir a nenhum lado que eles não conhecessem a menos que eu também
fosse. Pensei em dizer-te que não me apetecia meter-me em confusões, o que tu
adoravas, mas, ao olhar para os teus olhos, perdi a coragem.
–
A festa de anos do Rafael. – deduzi em voz alta. Riste-te, com aquele ar tão
gaiato.
–
Tens de vir! É a minha grande oportunidade! O Gabriel vai lá estar e eu quero
ver se ele finalmente repara em mim. Além disso, o Rafael tem andado de olho em
ti.
É
claro que eu iria. E também é claro que o Rafael nem sabia quem eu era.
Sorri-te e disse-te que sim. Tu abraçaste-me impulsivamente.
–
És a minha melhor amiga. Nunca me afastarei. – Mas também tu me mentias.
Essa
festa, essa inocente festa de anos, iria significar o princípio do fim. O teu
fim, Guida, e o fim da minha inocência.
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