O Vouga, cujo nome primitivo –
Vacua – recordava a opulência e o esplendor da antiga e nobre
cidade romana de Vacca alcandorada nos pendores da serrania
beirã, é um rio formoso que imprime característica inconfundível a uma
das mais belas regiões de Portugal.
Desce
pelos fraguedos da serra da Senhora da Lapa, em torvelinhos de espuma
alvacenta, entoando uma estranha sinfonia heróica, e, depois de se
espreguiçar pela verdejante planície, embalando-a com ternas elegias,
tornando-a fecunda e risonha, corre serpenteando através de um labirinto
de caminhos aquáticos e entra no Oceano a cantar saudades e as ousadas
empresas da multidão que vive a mourejar ao longo das suas margens
encantadas.
Desde a
nascente, um pouco ao Norte de uma ermida silenciosa recolhida no ermo
serra, até alturas do Pessegueiro e principalmente desde S. Pedro do
Sul, parece que voa espadanando as águas por entre margens abruptas ou
se arrasta pelos fundos sombrios de medonhos precipícios cortados na
massa escabrosa e gigantesca dos rochedos; depois, perde-se nas
espessuras verdejantes dos vales cheios de mistério para surgir mais
além, numa vagarosa caminhada pela campina a desdobrar-se em suave
ondulação e alastrando em múltiplas gradações de cor, batida de luz, até
à curva luminosa dos horizontes longínquos.
Em pleno
Verão, quando o Sol caustica a paisagem e nos plainos ressequidos os
barrocos parecem estalar de sede, esse rio portentoso torna-se humilde
regato, ínfimo arroio de água cristalina que mal sussurra e não estorva
o passo a quem queira atravessá-lo a vau, nalguns lugares. Vai, então,
caminhando indolente, a enovelar-se nos seixos, a saltitar, tímido e
caprichoso, ora cantando a poesia dos verdes prados ora a carpir a
nostalgia desses horizontes luminosos quando, de súbito, se despenha nas
profundidades soturnas das agrestes penedias e adormece, lá em baixo,
num regaço de verdura, envolto em sombras. Cativo nas represas, vai-se
esvaindo em lágrimas por entre a fina e aveludada teia de musgos,
enquanto as noras e os moinhos, a gemer, acompanham o seu pranto que tem
não sei que doce e poético encanto.
Vem o
inverno com as tremendas chuvadas que desabam sobre o dorso das
montanhas imponentes e a torrente impetuosa que tudo arrasta numa louca
descida pelas encostas desoladas entra no seu leito em turbilhão,
revolvendo areias, desprendendo enormes pedregulhos, retorcendo as
raízes do arvoredo desnudado, e o pitoresco e harmonioso regato torna-se
nesse majestoso rio cujas águas vão cobrir a campina imensa, alagando-a
numa extensão de muitas léguas, para fertilizar a terra com os gordos
nateiros que traz dos campos por onde passa.
Cansado
da ingente tarefa, fica como que adormecido, alastrando o tédio mortal
pela planura líquida recortada de ilhas silenciosas cobertas de arrozais
húmidos e doentios – as águas paradas, sem brilho, sem cor,
/
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enquanto a Natureza vai fecundando os campos em redor.
Com a
inundação das valas de esgoto para enxugo das terras alagadas, chegam
até ali os barcos moliceiros, os saveiros de proas recurvas, barcos de
feitios bizarros que correm airosos pelos canais e, vistos de longe, dão
a ilusão de que deslizam sobre a campina a cobrir-se de verde-tenro,
aqui e além matizado com cores vivas e de pálidos tons amarelos, quando,
ao despontar da primavera, as mimosas se cobrem de flores em filigrana
de oiro com rescendências de perfumes sensuais e perturbadores.
Aos
afagos do Sol, a ervagem vai crescendo ao desalinho e tomando espessura
à babugem da água; depois, os milheirais cobrem as terras baixas com um
tapete verdejante, ao mesmo tempo que pelas vertentes começam a
esbracejar as videiras rebentando folhagens de caprichosos recortes.
Este rio,
mágico e formoso, como lhe chamam os seus apaixonados poetas, traz de
longe sugestivas evocações da mais bela paisagem de Portugal, nesse
maravilhoso cenário aberto em perspectivas de sonho por todo o Vale do
Vouga, com panoramas surpreendentes que se dilatam até os horizontes
perdidos na bruma azulada e abrangem uma infinita sucessão de quadros
com toda a gama de tonalidades, desde os pálidos coloridos vaporosos às
manchas vibrantes dos relevos argilosos expostos aos efeitos da luz que
vão reflectir-se em fundos de céu doce: transparente, onde se estampam
os perfis altivos das montanhas orgulhosas.
E por
toda a região cortada pelo Vouga e pelos seus afluentes, como o Sul, o
Caima ou o Águeda, cujas margens debruadas de choupos e salgueirais têm
a poética sugestão do Mondego, por toda essa paisagem é um delírio de
verde que estonteia, desde as colinas sombreadas pelas manchas escuras
das florestas aos vales tranquilos afogados na luxuriante vegetação que
tudo pinta de verde-verde em todos os tons, que vão das doçura das
relvas orvalhadas de luz ao verde-melancólico das matas de pinheiros e
ao verde-risonho dos canaviais. Dos fraguedos sumptuosos nas alturas
desprendem-se verduras que vêm caindo pelas quebras e filtrando
claridades em poeira luminosa até desabarem como chuva miudinha sobre as
águas correntes num torvelinho de esmeraldas. Pôr toda a parte, é sempre
o mesmo deslumbramento, a grande orgia de verde resplandecente, numa
fantástica apoteose com efeitos magistrais de luz e cor.
Mas onde
o Vouga ganha todo o pitoresco e a álacre beleza de um quadro único e
sem igual é nesse retalho de paisagem inconfundível do litoral, na
região de Aveiro, onde a ria é a estrada luminosa que cinge na sua
acariciante cintura líquida de trinta quilómetros lindas praias e um
pequeno mundo activo e próspero, o mais curioso tipo de português» – uma
multidão de gente singular que labuta na campina, nas tercenas e nas
salinas e baila, e canta ao ritmo das ondas do mar.
César dos Santos
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