Acesso à hierarquia imediatamente superior.

 

Os 150 Anos do Liceu de Aveiro

Presidente do Conselho Executivo – Arsélio Martins (em improviso)

«Não é possível ... (desculpem não fazer aquela parte do protocolo), não é possível falar do que eu vou falar por causa do tempo. Porque nós estamos aqui, porque somos autores e actores, participámos das mudanças, somos responsáveis pelo que fizemos. É muito difícil falar das coisas de que nós somos responsáveis.

Mas é fácil falar de coisas de quando entrei no Liceu em 1952, vindo do campo. Da minha aldeia não veio mais do que... dois rapazes (rapariga não veio nenhuma, vieram dois rapazes). E os outros todos dessa idade, nos anos 50, vinham ao mesmo tempo que nós “para o sal” (durante o verão, durante os meses mais quentes) ou ficavam a trabalhar na lavoura.

São os anos em que a escolaridade básica era de três anos e em que a quarta classe passou a ser obrigatória (no dia em que eu entrei para a quarta classe); e em que os meninos, que tinham já andado no sal, eram procurados em casa pela G.N.R. para virem para a escola, os meninos que não queriam vir à escola!

O meu tempo é marcado por esta ideia da evolução – do que isto tem dentro – e, portanto, é muito complicado falar das coisas que se vivem. Os jovens de hoje têm necessidade de saber que na década de cinquenta, a década em que nós começámos a viver o Liceu, só havia um menino de uma escola, de uma aldeia, que vinha para a cidade estudar. O resto era a elite urbana ou pouco mais do que isso. A maioria dos meninos eram pessoas que iam para o trabalho.

Somos nós os autores, os actores, as pessoas que lutaram de alguma maneira, bem ou mal, para que nos anos seguintes, passado pouco tempo, o Liceu passasse a ser a escola de mais gente, cada vez mais gente. Que passasse a ser uma escola mais exigente e que ao mesmo tempo os estudantes tivessem mais anos de ensino. É do Liceu que nascem não só outras escolas secundárias, mas em que se separa o ensino básico do segundo ciclo – para serem então seis os anos de escolaridade obrigatória. Porque isso era necessário sinal de algum desenvolvimento ...

Somos nós que depois vamos separar as escolas, para mais escolas, e somos nós que vamos criar as escolas secundárias. E somos nós que vamos acabar com a diferença entre as escolas técnicas e liceus – que é ainda um drama que não está resolvido na sociedade portuguesa.

Não vale a pena atirar culpas a governos, educadores etc.: somos nós que vivemos esse processo, participámos, tivemos ideias e tentámos transformar o mundo (mal ou bem) para o que actualmente hoje é.

Vivemos hoje numa sociedade em que a maior parte dos jovens em idade escolar tem direito a estar na escola básica e secundária. Mas quem viveu esta época conturbada sabe quanto era difícil fazer isto sem erros, sem hesitações, e quanto era difícil fazer isto sem lutar contra a herança ...

Um homem da minha idade, que está a comemorar os cento e cinquenta anos do Liceu, está aqui claramente com uma corda ao pescoço. Porque um homem como eu lutou denodadamente para aprofundar a reforma geral e democrática de Veiga Simão. Lutámos na rua, lutámos para aprofundar o ensino igual para todos, lutámos para que o ensino passasse para nove anos, lutámos para que toda a gente viesse para a escola mesmo quando não tinha lugar. Lutámos para chegar aqui, tendo muito fracas condições, vivendo num país extremamente pobre, extremamente depauperado. Lutámos de forma dramática. Todos os que estão aqui, professores da escola – são actores, são autores disto. Lutámos para que, num espaço criado para menos de 600 alunos, lá pudéssemos ter 3000, e ter vivido com eles, e ter feito ... sem traumas, sem desgraças muito grandes… ter feito a expansão do sistema escolar.

Lutámos agarrando os nossos filhos todos para dentro da escola, sem termos nenhumas condições. Ficámos sem retretes, ficámos sem coisa nenhuma: transformámos tudo em sala de aula. Ficámos sem recreios cobertos, ficámos sem nada do que tínhamos: para que, sempre que alguém quisesse vir para a escola, pudesse vir.

E, ao mesmo tempo, fomos nós os autores daquilo que é considerado o crime mais grave – que é dizer que era preciso que, à medida que houvesse escola para todos mais tempo, era preciso que ela fosse igual para todos.

Nós somos os autores (para o bem e para o mal) do ensino unificado. Somos aqueles que acabámos com a diferença entre as escolas comerciais e liceus. Raras pessoas assumem esta questão. Mas, num país pobre, onde o ensino de elites era feito e era marcado de forma clássica, seria hipocrisia da minha parte, vir aqui dizer que eu não sou uma das pessoas que lutou para que, se a idade para o trabalho devia ser depois dos quinze anos, então o ensino devia ser igual para todos: dar o máximo de competência a toda a gente, para que os alunos fossem iguais, de qualquer classe social, de qualquer sítio de onde viessem, fossem iguais até à idade em que entrassem no mercado de trabalho; e, então sim, fossem aí preparados para o trabalho.

Uma responsabilidade que quase ninguém assume, toda a gente atira culpas a outros a respeito deste assunto. Podemos ter feito bem, podemos ter pensado bem ou ter pensado mal, mas quero aqui hoje – no dia em que assumimos a tradição do Liceu (e com muito orgulho), e no dia em que assumimos a tradição da escola comercial, e no dia em que assumimos o nosso trabalho como autores e actores – dizer que... (mesmo que eu pense agora coisas diferentes) dizer que, orgulhosamente, defendi, combati pelo ensino igual para todos. E combati e defendi que as escolas, mesmo sem condições, deviam aceitar todos os estudantes de Aveiro; deviam aceitá-los todos, nem que para isso tivessem de rebentar com todas as condições de trabalho dos professores. Estão aqui esses actores, esses autores; estão aqui os professores que aceitaram trabalhar, uma boa parte deles sem quaisquer condições de trabalho, para garantir que em Aveiro todos aqueles que queriam estudar pudessem estudar no ensino secundário.

Pagamos cara essa aventura! Nós não somos os professores já do antigo Liceu. Nós somos professores que em algum dia da nossa vida tivemos que dizer quase não ao Liceu – no que isso significava de tradição elitista e conservadora. Nós fomos os que tivemos de romper isso para construir outra coisa diferente. Com todos os riscos que isso traz, com todas as desvantagens que traz, com todos os problemas que isso trouxe: porque, onde tivemos que meter tanta quantidade, não era natural que em igual percentagem voltasse a sair a mesma qualidade ...

Nós somos os responsáveis, em grande medida, por termos desfeito o mito de que não era possível democratizar o ensino. Nós somos os tipos que fizemos rebentar algumas leis da física. O Liceu no dia em que ultrapassou 600 alunos, abriu uma secção. Mas nós, no mesmo sítio, com o mesmo número de salas, com um ensino mais exigente, mais diverso, mais complicado, tivemos que meter no mesmo sítio mais de 3000 alunos. Milagre dos milagres! Milagre da multiplicação – tão pouco espaço para tanta gente. Somos nós também as pessoas que dizemos que, ao fazer isto, assumimos um combate histórico. E assumimos uma dificuldade que nos vai acompanhar ao longo do tempo, durante muito tempo: é que criámos e vivemos com uma geração de professores menos exigentes; e criámos uma geração de pessoas que pensam que a escola não é mais do que um banco, uma cadeira e uma mesa – que a escola não tem mais para dar. Criámos também ao mesmo tempo uma geração de pais que aceitam que as escolas actuais são boas, porque as escolas em que nós os criámos eram completamente miseráveis. Somos nós agora os cidadãos que, ao mesmo tempo que assumimos este patamar, vimos dizer que as escolas que nós queremos não são as escolas que tivemos de viver, para podermos chegar aqui. As escolas que nós queremos agora são outras: melhores condições, mais condições de trabalho, mais garantia para os estudantes de cumprirem o seu caminho (porque trata-se de caminho ...).

Assumir a história do Liceu de Aveiro, tal como eu faço. E isso significa assumir a história da LABOR, da Voz Académica, do Assis Maia, de toda a gente que fez isto: Aveiro. Assumir isto tudo é assumir não só aquela parte tão bonita, da elite, das coisas como foram feitas, mas assumir que nós fizemos o ensino de massas, nas condições em que o fizemos.

E que nós criámos novas escolas, pressionando para criar escolas – primeiro em Ílhavo. E para isso dizer aqui, expressamente a esta Assembleia, que a escola, o Liceu, que eu dirigi, desde essa altura, se calhar obrigou alunos da Costa-Nova a ir para Ílhavo, violentamente, sem que houvesse transportes da Costa-Nova para Ílhavo, para que a escola de Ílhavo se pudesse afirmar.

Somos os mesmos que tivemos de, violentamente, claramente decidir a favor da criação de uma escola em Esgueira, obrigando pessoas a deslocar-se contra a vontade para lá, como para Vagos.

Porque as velhas escolas de Aveiro eram distritais, os estudantes por tradição voltavam e inscreviam-se no Liceu de Aveiro, era preciso deslocá-los para as escolas novas que não podiam ser escolas sem estudantes.

Esta geração vai ser apontada – por muitos cidadãos não-de-Aveiro – de serem os responsáveis por lhes terem criado graves problemas na sua vida. Nós assumimos com orgulho, a quota parte da nossa responsabilidade, por termos sido capazes de tomar decisões – a maior parte delas, aparentemente, que à cidade não cabia resolver (não podia, nem devia).

Nós estamos orgulhosos do passado. E já conseguimos, depois da brutal luta política que travámos, já conseguimos herdar a tradição do Liceu. Sinal de maturidade dirão uns. E sinal de que nós já estamos em condições de distinguir a tradição de tradição: distinguir o que é essencial neste negócio do desenvolvimento escolar e que é mola de progresso, daquilo que podia ter sido um desastre para a cidade de Aveiro, para a população de Aveiro e dos concelhos limítrofes.

Estamos em condições hoje de assumir a dignidade do que fomos de melhor, e estamos em condições de dizer que, mal ou bem, com alguns erros pelo caminho (e assumimos também os erros orgulhosamente), conseguimos fazer o que era preciso fazer, no momento em que foi preciso fazer.

E queremos dizer à Assembleia Municipal de Aveiro que as nossas condições de trabalho ainda estão abaixo das condições de trabalho de 1950. Porque ainda ... – no mesmo local, onde em mil novecentos e cinquenta e poucos, já José Pedro Tavares dizia que não cabiam os alunos todos (e nessa altura eram 600), – ainda hoje, apesar das escolas todas que há à volta de nós, ainda hoje temos mais de mil alunos – temos 1500 alunos -, o que quer dizer que ainda temos caminho para percorrer ...

Vivemos com orgulho os erros, os caminhos – todos – feitos. E eu recuso-me (e queria dizê-lo publicamente) a dizer que os erros são culpa só dos governos. Ou que aquilo que fizemos de errado (hoje estaremos a pensar que podia ter sido feito de outra maneira) que é culpa do governo. Eu quero aqui assumir que o Liceu de Aveiro, no tempo do José Pereira Tavares, mas também no tempo depois dele, participou activamente com as suas energias nas decisões sobre o futuro da Educação em Portugal; e, particularmente nas decisões da Educação Secundária.

Continuamos a discutir e continuamos a participar, empenhadamente, para o bem e para o mal, nessa responsabilidade. Não enjeitamos nenhuma responsabilidade, “não nos pomos na beira do prato” a dizer: isto é do governo, isto é nosso. Assumimos integralmente – como parte integrante do Ministério da Educação (e fazemos disso gala), – e participamos activamente na discussão das políticas para a Educação. E quem nos dera (isso sim, é um desejo), que pudéssemos decidir bem. Quem nos dera que pudéssemos decidir bem e, quaisquer que sejam os governantes, que pudéssemos ajudar a tomar boas decisões.

Só uma marca: é verdade ... – e isso convenhamos, já aqui foi dito a várias vozes – é verdade que tipos como eu, por razões de tradição de luta, têm muita dificuldade como actores e autores, e em viver este processo. Nós vivemo-lo em luta permanente. Eu voltei para o Liceu em oitenta, e portanto desde oitenta estou a ele ligado. Estão aqui uma parte das pessoas que fizeram isso. Estou ligado ao que é o Liceu – um Liceu que cresce até aos três mil perto de quatro mil, um Liceu que vai melhorando; o Liceu que assume uma degradação brutal, porque nenhum edifício onde cabem seiscentos pode aguentar movimentos de quinze mil – e portanto, é degradado brutalmente.

Demorámos vinte anos a recuperá-lo para o aspecto que tem agora. Somos nós que vivemos a degradação total do edifício e depois a sua recuperação lenta, vagarosa, que é preciso fazer durante este tempo. Somos nós. E não vale a pena fingir que não somos – nós com tudo o que isso significa. Somos nós, portanto, que rebentamos com o espírito de certa maneira do Liceu (tal como ele existe na sua forma mais negativa) e assumimos que é uma escola para toda a gente, e uma escola secundária como as outras, que é tão herdeira do Liceu como as outras escolas secundárias.

Não tenho nenhum problema com isso, mas reconhecemos que fomos vencidos de facto por Aveiro. De facto, mesmo agora, ao fim destes anos todos, nós temos que reconhecer que a cidade de Aveiro (e em parte a sua elite) tomou a escola secundária, o Liceu, como Liceu. Não vencemos as comunidades!

Engraçado: por muito esforço que se faça e, na escola secundária de Aveiro, escola secundária José Estêvão e todas as outras escolas está uma boa parte de capital humano, de trabalho e de luta, e até de compreensão dos problemas da Educação, estão pessoas que lutaram por princípios e que tentaram alterar as coisas, numa questão tão elementar como esta que é de direcção da consciência, que é da direcção da imagem e da direcção social, nós ainda somos o Liceu. Mesmo quando não queremos, ainda somos o Liceu.

Ao virmos aqui comemorar os cento e cinquenta anos do Liceu de Aveiro, para além da tradição do Liceu de Aveiro, temos de referir o trabalho dos nossos dias. Sabendo nós isso, vimos ao mesmo tempo declarar a nossa derrota perante a representação social que existe da escola. E dizer que, de facto, é verdade que somos formalmente escola secundária entre outras, mas também que aceitamos definitivamente o facto irrevogável de nos confessarmos derrotados perante a comunidade, que nunca deixou de olhar para aquela escola como o Liceu de Aveiro e que de certa maneira, quer queiramos quer não, é assim tratado pela própria população. Tem um escol mais concentrado de pessoas muito perto do saber escolar e que portanto fazem com que a escola tenha os melhores resultados da cidade de Aveiro e que esteja entre as vinte melhores escolas públicas do país – coisas desse tipo. Porque a principal razão é que, apesar de todos os nossos esforços para ser uma escola pública e popular (e quem nos dera que seja – e é, e tem alunos de todas as classes sociais) de facto continua a concentrar um escol de alunos brilhantes, que – apesar de mergulhados num grande número de alunos que vêm das massas populares e que provavelmente nem querem estudar (muitas vezes) – consegue fazer daquela escola um marco, mesmo ao nível das classificações. Comemorar os cento e cinquenta anos nesta sala, significa portanto sermos derrotados pela comunidade. Perante os representantes da comunidade, declaramos a nossa rendição.

Só ainda um assunto que me vale a pena falar: eu sempre fui um desgraçado no Liceu de Aveiro. Quando entrei para a escola tinha um metro e dezoito; cresci na escola até um metro e vinte e quatro. Nunca cheguei com os pés da cadeira ao chão! Quando voltei como professor, a Isabel Cerqueira teve que comprar uma cadeira especial – porque eu, para chegar à mesa (já estava no Conselho Directivo em oitenta), tinha de usar um banco da sala de microscopia. Nunca cheguei à mesa. Aquelas mesas eram muito altas. A Isabel Cerqueira chegou a comprar uma cadeira própria, para mim, que podia elevar-se (no tempo em que havia poucas cadeiras) – para eu poder chegar à mesa. Portanto, devo à Primeira Dama da Assembleia Municipal, a possibilidade de chegar à mesa ...

Depois fui-me habituando; e as mesas modernas e as cadeiras modernas permitem adaptações. Portanto eu já quase posso dizer que, na escola onde ando há tantos anos já me sinto em casa... Ao confessar a minha derrota hoje aqui (e isso lembrou-me por causa disso), venho confessar que... mais uma vez sou levado a confessar a minha derrota. Mais uma vez: ao sentar-me na Mesa da Assembleia Municipal, não consegui chegar com os pés ao chão! Muito obrigado.