Cortado pelo rio Caima, debruado de amieiros e de
salgueiros, o
Vale
de Ossela
é uma série de rincões edénicos, onde a Natureza veste as suas melhores
galas, despretensiosamente, como se o fizesse por simples hábito...
Torna-se, porém, necessário trilhar ínvios caminhos para surpreender
todo o encanto da terra doce, que parece contemplar-nos com uma meiguice
sonhadora, numa ternura que não se esquece. Lá no fundo do vale, já nas
faldas da serra, divisa-se «a igreja velha», o Mosteiro, presumível
lugar, outrora, de anacoretas contemplativos. O velho templo, levantado
sobre as ruínas de outro, carece de valor artístico; mas numa das
paredes mostra curiosa lápide fúnebre:
João L. C.º Buel, cavaleiro, instituiu capela nesta
igreja onde tinha seu muimento levantado na era de 1410. Por não
bastarem os bens que dele ficaram, se dizem somente 220 missas...
Deixando a parte sobranceira ao Vale de Ossela, a estrada
apresenta, entre grandes sobreiros, um dos seus mais lindos trechos, que
finda no pontão onde, a 7,5 km de Oliveira de Azeméis, a Junta Autónoma
das Estradas colocou uma placa com o nome de «Rio Salgueiros». Não
merece tão pomposo título, nem muito menos, o humílimo fio de água que
passa, marulhando de pedra em pedra, dia e noite, sob a ponte; mas o
sítio é belo, austero duma parte, suavemente melancólico da outra, e
propício à meditação.
Agora, nova subida, novas curvas; pinhal, apenas pinhal,
o menos interessante da viagem. Ao cimo da encosta, termina o concelho
de Oliveira de Azeméis e começa o de Vale de Cambra. Em frente, está o
lugar das (8,5 km) Baralhas; à esquerda, um ramal da estrada para
a aldeia das Cavadas; à direita sinuosa vereda.
Por esse carreiro, mau grado a sua rudeza, deve seguir,
preferivelmente acompanhado por alguém das Baralhas, quem quiser pôr-se
em contacto com o passado desta região, pois foi no monte próximo que
existiu o crasto de Ossela. Entre pinheiros e bravos penedais
anda-se algumas centenas de metros. Na colina, antigamente cheia de
lares, de muralhas e de armas bélicas, há agora, apenas pinheiros, tojo
e soledade. Olha-se para as rochas, tão trilhadas outrora, em busca duma
pegada impossível, e só se vêem indolentes sardões expondo ao sol os
seus verdes e os seus oiros. Mas este próprio abandono, este próprio
silêncio da terra de onde a vida humana desaparece, torna mais
sugestiva, mais profunda, a áspera paisagem. Chega-se, enfim, ao topo do
outeiro. Há lá uma ermida, debaixo da qual o povo crê existirem
fantásticos tesouros, e um pequeno adro. Há isto e o mesmo silêncio
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há pouco, a mesma solidão. Em baixo, corre o Caima, entre escuros
fraguedos.
[O Museu Municipal do Porto mandou fazer escavações neste
cerro, em 1908. As picaretas trabalharam dias seguidos, sob os olhos do
poviléu que acudia em massa, julgando tratar-se de busca de fabulosos
tesouros. Anos antes, nas Baralhas, aqui perto, um sapateiro encontrara,
ao abrir os alicerces para um muro, 16 manilhas de oiro, trabalho
pré-romano, que lhe valeram uma pequena fortuna e deram brado entre os
arqueólogos. O crasto de Ossela reservava, porém, surpresas de outra
ordem. Levantadas as primeiras camadas de terra, em breve se mostravam,
aos olhos dos escavadores, várias sepulturas feitas de lajes, numa das
quais se ostentava, ainda, um crânio. Mais fundo, havia ruínas de
edifícios antiquíssimos e, ainda mais abaixo, vestígios de muralhas mais
remotas ainda. Moedas de outrora, romanas e lusitanas, fragmentos de
cerâmicas de várias épocas, fíbulas, pedaços de vidro e bronze, outros
destroços jaziam na terra. Pelo que se descobriu, concluiu-se que o
morro era estação pré-romana. Quando fortificado, devia ter tido duas ou
três ordens de muralhas e, dentro, as casas dos habitantes. Mais tarde,
os Romanos apossaram-se da colina. «Efectuada a conquista – diz Rocha
Peixoto, então conservador do Museu Municipal do Porto, que ordenou as
pesquisas – sobrevivera a residência, como o comprovam alguns restos de
loiça do tipo de Arezzo; e, porventura, dilatou-se por muito
tempo, extinguiu-se numa época histórica já adiantada e, finalmente,
transmudou-se numa vasta necrópole cristã, a seu turno também apagada da
memória dos homens». Depois destas escavações, a terra, que não foi toda
explorada, voltou a fechar-se, e assim se encontra, rasa sobre as suas
velhas lajes, até que um dia outras picaretas venham procurar, nos
declives do morro, o mais que ele guarda ainda no seu silêncio e neste
abandono a que a branca ermida parece fazer sentinela].
De regresso à estrada, vê-se, logo adiante das Baralhas,
um panorama surpreendente. É o ** vale de Cambra. Quase
ignorado até há pouco, a sua beleza ganha, dia a dia, maior renome.
Cercado de montanhas de formas extravagantes, não é fácil descortinar em
Portugal outro mais grandioso e espectacular. Quase não tem planos. A
vista desce para a imensa cavidade onde refulgem o Caima e o Vigues;
erra entre os campos agricultados e, depois, encontra, lá longe, o
contraforte das serranias, onde branqueiam dispersas aldeias, humildes
casitas. A terra é verde e o céu é azul; é tudo verde e azul com raras
pintas brancas do casaredo, que mais do que moradias dos homens parecem
janelas da própria paisagem. Ao crepúsculo, porém, o enorme vale sofre
metamorfose, torna-se polícromo – e as suas cores separam-se aqui, muito
nítidas, e dissolvem-se e confundem-se além, num encanto visual
indescritível. Nas noites de luar, quando o grande balão de oiro surge
na lomba das montanhas, o vale enche-se de magia, dum sortilégio que
paira desde os píncaros longínquos às águas sussurrantes do Caima.
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O espectáculo imponente pode-se contemplar da estrada, onde existe um
miradoiro próprio. E pode sê-lo também da Quinta da Bela Vista,
proeminência onde um homem de bom gosto, o sr. António Tavares da
Fonseca, funcionário público no Porto, mandou edificar uma casa cujas
portas se abrem, gentilmente, aos forasteiros que desejem admirar dos
seus terraços, erguidos em sítio eleito, este panorama excelso.
A estrada desce, depois faz algumas curvas e entra em
Pinheiro Manso,
burgo mui asseado e muito branco, já com seus ares de urbanismo e de
modernidade. Estamos no mundo da manteiga, na região de lacticínios mais
importante de Portugal. O leite vem quase todo das serras, como as águas
que irrigam o vale, e, transformado aqui, corre o País inteiro.
Em Pinheiro Manso pode-se tomar, à direita, o ramal de
estrada que vai para (2 km, Sudeste) Castelões e Senhora da Saúde.
Atravessa-se
Coelhosa,
com a sua capela, suas residências silenciosas, mui diferentes das que
existem nas outras aldeias da região; cortam-se vários campos do vale,
passa-se cerca da junção do Vigues e do Caima, sítio pitoresco,
Entre-Pontes chamado, e, finalmente, atinge-se
Castelões.
Velha freguesia, com algumas vetustas moradias, o seu cemitério e a sua
igreja (construída em 1899), postos em sítio airoso, dão uma sugestão
romântica, melancólica embora, a quem arriba. Mas não é a ideia da morte
que nos sai ao caminho e sim uma ideia de comunhão ilimitada
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eterna com a Natureza bela que nos cerca, com o sol que prateia as
vinhas e os pinhais, os jardins e as vertentes. Estamos já ao pé da
serra de Castelões, que se levanta por detrás da freguesia e fecha o
majestoso Vale de Cambra. No pico da serra, a 763 m de alto, ergue-se a
Senhora da Saúde, ermida até há pouco, recentemente templo maior,
acompanhado por um albergue. Para a festa que em sua honra se celebra
todos os anos, começam a passar aqui, na madrugada de 14 de Agosto,
verdadeiras multidões. Vem gente da beira-mar, a muitas léguas de
lonjura, vem gente de todos os concelhos próximos, das montanhas
vizinhas e das montanhas distantes – e até das bandas do Porto e de
Coimbra. Desde as regiões vareiras às regiões de Arouca, não há estrada
nem sinuoso atalho onde neste dia não se projecte a sombra dos romeiros
a caminho da Senhora da Saúde. Empregam todos os veículos: a tartana
remota, que se julga tirada de museu, a diligência de há trinta anos,
carroças, tipóias, carros de bois engalanados, camionetas e automóveis.
A maioria vai a pé nu
–
que a festa nasceu humilde como a ermida primitiva e é sobretudo, para
gente de pé descalço.
Lá vão elas com os pés grandes sobre o pó dos caminhos, a saia nova a
bater-lhes na barriga das pernas; nas orelhas as arrecadas e, sobre a
cabeça, um cesto com o farnel. Ao lado, vão eles. Como ganham mais
dinheiro do que elas, compraram sapatos para este dia; levam
cavaquinhos, harmónicas, violas e, desde madrugada alta, começam a
cantar por rodos os caminhos. Chegados à ermida, não entram, pois já a
viram da primeira vez que ali vieram e a festa é mais pagã do que outra
coisa. O píncaro está cheio de bandeirolas, de vendedores de
quinquilharias coloridas, de frutas estivais, de chitas das mulheres;
não há maior cromatismo em parte alguma, nem bulício maior. Eles e elas
pousam o farnel debaixo
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velho carvalho, na vizinhança dum carro de bois com uma pipa de vinho em
cima, e logo desatam a bailar, não acompanhando a música da filarmónica
de Cambra e sim a dos milhares de instrumentos populares que os romeiros
levam. Bailam, cantam, suam e comem durante o dia inteiro. À noitinha,
as chitas das raparigas, depois do sol e do suor, desbotaram levemente;
mas eles e elas compram plumas tingidas e estampas polícromas da santa;
colocam-nas no peito e no chapéu e, assim adornados, iniciam a descida
da serra, sempre a cantar e a bailar, enquanto outros, dispondo de
maiores ócios, ficam, durante a noite, a fazer a mesma coisa no arraial.
E cantando aqui, parando ali para o bailarico, cobrem léguas e léguas,
até que a voz do oceano, lá para as praias de Ovar, se sobreponha à voz
deles e delas ou o silêncio das montanhas arouquesas lhes lembre que
chegaram a casa - às preocupações da vida, ao árduo trabalho pelo pão de
cada dia.
A estrada, ainda em construção, que parte de Castelões
para a Senhora da Saúde, oferece, por enquanto, penoso trânsito aos
veículos; mas, em automóvel, em carro de bois, a cavalo ou a pé, a vista
que lá de cima se obtém justifica o sacrifício da ascensão. Uma hora,
para quem vai sem outro auxílio que o das pernas, bastará. A via ladeia
despenhadeiros imponentes e está cheia de múrmuras fontes, que amenizam
a subida. Passa-se por algumas aldeias serranas e, por fim, entra-se no
planalto onde se ergue o templo. Agora, não há muralhas a cortar o voo
dos olhos; as montanhas estão a nossa altura ou abaixo de nós. As suas
próprias cristas, atormentadas e de milhentos relevos, de milhentas
formas diferentes, constituem um maravilhoso espectáculo. O **
panorama é vastíssimo. Só termina onde o olhar já não alcança
mais, onde o olhar confunde tudo. Dum lado, o vale de Cambra, em frente
o vale de Ossela, com a sua igreja a surgir dos pinhais; lá muito longe,
o mar, barra azul a ligar-se ao céu; à esquerda, o vale de Lafões e
outros vales, outras aldeias, outras montanhas. E a paz das alturas. Uma
superação da terra baixa e uma superação do espírito. Uma festa visual
que não se olvida mais.
Regressando a Castelões, encontramos duas estradas para a
sede do concelho: uma, directa; a outra, a que já fizemos referência,
dando volta pelo Pinheiro Manso. A primeira atravessa, em leve ascensão,
um bom trecho do vale; pela segunda retomamos a estrada de Oliveira de
Azeméis a Cambra.
Meio quilómetro além do Pinheiro Manso, após breve descida entre velho
pinhal, abre-se, à nossa esquerda, outra estrada. Deita a Carregosa
(pág. 615), onde há um santuário, a Pindelo e Azeméis e, em breve, deve
bifurcar para S. João da Madeira. Na nossa frente, agora, a estrada que
vamos seguindo principia a subir. Atravessamos a ponte sobre o rio
Vigues (38 metros), passamos por um ramal que vai para a Guincheira,
aldeia próxima, e duas centenas de metros acima encontramos
Gandra
de Cambra,
actual sede do concelho que usa hoje, designamos a parte pelo todo, o
nome de
Vale
de Cambra.
São famosas, no distrito, as suas feiras dos dias 9 e 23 de cada mês,
que atraem as populações das serras e constituem um verdadeiro arraial
de cor, pois nelas tudo se vende, tudo se expõe, desde os produtos da
terra e do mar até os pequenos artigos da indústria. É digno, sobretudo,
de ser admirado
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o esforço dos habitantes, gentes empreendedoras e de vontade enérgica,
que, em poucos anos, fizeram, dum largo polvorento e com meia dúzia de
casas, uma vila que cresce constantemente. O concelho é um importante
centro de lacticínios, de vinho verde e de madeiras. As aldeias,
cobertas de ramadas, e as encostas das redondezas, apresentam recantos
lindíssimos.
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