Escola Secundária José Estêvão, n.º 4, Jul. - Set. de 1991

Isto não é um discurso, mas eu sou aquele que fala.

Olhem para mim.

Se puderem, vejam como eu estou aqui entre outros, um entre outros.

Não vim fazer um discurso, mas dar palavra às águas que nos atravessam quando a emoção galga das nuvens do peito para se sumirem como as ondas se somem nos areais ressequidos em que nos esculpiram os rostos. Não vim fazer um discurso. Vim dar a um mar de palavras de água. E são as líquidas palavras por dizer que não me deixam calar.

Amanhã o nosso rio retoma o seu curso e com ele partem as palavras em que nos afogámos hoje. Um homem com consciência, que abandonou este nosso mundo para a abraçar a loucura, colecciona palavras na foz deste rio. Ele guarda-as porque guarda a areia em que foram escritas pelos dedos da água no bolso do seu passado sem futuro.

E eu vim aqui para defender a felicidade sem futuro, mas com futuro: a felicidade de hoje. Quem tudo faz em nome da felicidade do futuro, sacrifica a felicidade de cada momento. Em nome da felicidade do futuro, se forjam todas as tiranias do presente que tentam ser tiranias de todos os hojes daqui até ao futuro. Apresentam-nos a felicidade como uma linha do horizonte e a linha do horizonte afasta-se à medida que dela nos aproximamos. Eu vim aqui para defender que a nossa felicidade de hoje é uma parte imprescindível da felicidade do futuro. Pode não ser, mas a escola em cada dia de hoje deve ser escola de pessoas felizes e que é essa a escola que pode construir algum futuro que importe. Uma escola que se faz em nome do futuro sem ter um presente, que valha a pena lembrar, é uma velha tirana a estragar o presente em nome do futuro que está a envenenar. Com um presente envenenado.

Eu quero viajar de hoje até amanhã voando. "A linha do meu voo é uma estaladura que atravessa a chávena. Como um morcego fendendo a porcelana da noitinha, assim eu quero sair do seio, do ninho de hoje. Quem é que assim nos virou, de tal forma que, em tudo o que façamos, estamos sempre na atitude de alguém que parte?" (Rilke) Eu quero viajar pela noite entre os dias, sentindo o ar como quem atravessa as águas, modulando todos os lados do corpo. Como o peixe fusiforme atravessa desde a profundidade até à luz.

Sabemos das tuas partidas. Mas não sabemos que partido tomas. Nem és peixe nem és carne, dizem-me. Professor ou aluno? De que lado da vida te perdes?

Eu sou peixe e sou carne. Sou a carne do peixe. E sei que vivo para ser comido. Não há angústia nisto, é o que vos digo. Quem é que me quer pescar?

Minha mãe pescou-me das suas águas. Olhou as minhas escamas brilhantes ao sol. Limpou-me cuidadosamente e educou-me para o ar. Só por isso não voltei para as águas, neblinas do limbo. Foi a minha fraqueza que me inibiu as asas para os voos que ela planeou para mim.

Não usem anzóis afiados. Podem usar palavras afiadas.

Na escola, (e não será assim nas outras?) as pessoas usam as palavras, sussurram palavras, segredam palavras, disparam palavras. Há palavras para amar, para animar, para repreender, para replicar, para censurar; há palavras para abraçar e há palavras para esmurrar; para esfaquear o vento, as ondas mais altas, o mar. Há palavras para explicar as cores, os odores. A escola é, antes de mais, a galáxia das palavras e das imagens que as palavras desbotam.

Usam-se palavras como calhaus afiados. Há navalhas e palavras para ferir. Há quem as dispare dos bolsos onde as teve sempre escondidas. Eu uso as palavras nas palmas das mãos abertas. Como calhaus rolados pelas águas de mil marés vivas. Palavras lavadas pela água, expostas para corar, ao sol destes projectores.

É a água do mar que escorre pelas linhas da minha mão ou do rosto ou do corpo: pela linha da vida, pela linha da morte, pela linha do coração correm e morrem as águas que galgaram as margens dos olhos. E eu? Que faço eu? Na escola como peixe na água. Deixem-me respirar esta água, este ar. Por estas águas troquei o meu passado e o meu presente de ar anunciado na palma da mão de minha mãe, nos gestos de me educar para o ar. Onde estão os meus amigos? Quase como sombras longínquas, postais de Lisboa e porto escritos apressadamente com tinta de água: Como vais? Que é feito de ti? Que resposta tenho para este passado?

Mãe, minha mãe, que quero eu? Se não voltar ao princípio para que tudo recomece e possa acariciar os meus sonhos, os meus amigos que se perderam nessa sombra espelhada destas águas, em que me movo, em vez de tudo o resto. Mas os caminhos de regresso estão todos fechados e é por isso que a escola é um mundo em que me tenho de reconstruir e reconstruir os castelos no ar, nem que sejam outros os arquitectos, os alcaides, os actores, os estudantes que brilham no escuro e me reflectem no que vale a pena. Ou valeu a pena. É aqui mãe, entre as ruínas deste presente, que das águas desta escola pescamos os filhos da escola, os educamos para o ar e quem nos dera mãe que lhes déssemos asas!

Está descansada, mãe. Já ninguém se ri do teu filho. Porque ele envelheceu demais no discurso da água. E porque ele deixou, por momentos, de ser quem era, o outro, aquele que não está no espectáculo. Olham para ele e não o vêem. As palavras que ele disse eram água pelos dedos abertos. Amanhã, à luz do dia, não haverá lembrança deste gesto insensato. E todos viverão como antes em nome do futuro.

Arsélio Martins

Aliás, Escola Secundária José Estêvão

 

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