Tempo ácido

 

Os ventos cruzados nos ulmeiros

provocando torções descabelados

fogem-me dos dedos, em farrapos,

e eu a querer afastar o horizonte

vendo-o em avanço desbragado,

absoluto, irracional, inconsequente;

sei que a Terra continua a rodopiar

em louca correria pelo cosmos

para voltar ao ponto de partida

permitindo que, neste desembaraço,

o meu tempo se esvaia sem remédio.

 

 

Vejo formigas com a pragana

na rotina certa do formigueiro

medindo o tempo do inverno

no despacho da sua tarefa;

enxergo abelhas de patas encardidas

pejadas com pólen de urze e tília

a dançarem no arraial da colmeia

no receio dum outono precoce;

contemplo miríades de insetos

esquerdeados pela tóxica acidez

dum mel adulterado em pote partido

com odor a cigarro mal apagado.

Assim encerra o ciclo deste tempo.

 

 

Entrementes cacofónica sinfonia

preenche com sons subliminares

o espaço onde pernoita a peste

e fomenta alucinações etéreas

em cujas asas me vou despegar

assim fugindo à acidez do tempo

não excluindo alguma queda fatal

no desamparo duma solidão

onde mora o mantra dos avatares

convivendo com o nirvânico estado

que, à revelia de todos os cânones

e numa ocasional compaixão

talvez me livre neste meu Hades

do castigo de Sísifo. Tão só.

                          Março de 2021

 

 

15-12-2020