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Não dormiam, corriam,
voavam,
roubavam, mentiam, fugiam de si próprios
fingiam viver num mundo asséptico
povoado de chamamentos improváveis
e assim foram esquecendo a família, os amigos,
a fraternidade, a piedade, e o amor.
Havia então no ar uma auréola de magia,
força que os atraía, inebriava, hipnotizava
e, embalados em ridentes sonhos
nem sabiam o porquê daquele frenesi
filho da enigmática e incontida ambição:
estigma de vivências furtivas, virtuais
polarizadas em constante luz translúcida
a bruxulear nas consciências - a inveja.
Mas eis que chega, vinda do oriente,
invisível, avassaladora, mortal - a peste.
Num abrir e fechar de olhos, alastrou
até pôr todo o mundo de cócoras
distraído e apanhado de calças na mão.
A humanidade mergulhou no seu medo
e foi ressuscitando aquela atávica angústia
residente nos abismos do inconsciente
agora visível nos anseios de alegrias sem freio
a encherem de nostalgia um passado recente
nas quenturas de verão em praias sem nome
ombreando o fardo da sofreguidão latente.
Esse desejo cumpriu-se e o receio fugiu
pois a natureza mais uma vez foi generosa
e o esforço indómito dos oficiais da saúde
debelaram esta ameaça recorrente
à custa de muitas das suas próprias vidas.
Nesse então, o mundo estará mudado; a memória não.
Lentamente voltarão as asneiras de tantos anos
com o pudor que será desvirtuado à sorrelfa
pois o hedonismo de braço dado com a inveja,
a desfaçatez a coroar a hipocrisia e a ignomínia
são ainda mais traiçoeiros que esta peste malina.
Abril 2020
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