Quando um amigo aveirense de longa data me trouxe dois mapas da Ria de
Aveiro, de formato quadrado, com um metro de lado, foi para mim uma
surpresa. Há trinta ou quarenta anos que não via um documento impresso
em «ozalid». Na altura, por mais que espevitasse os neurónios para
classificar este tipo de documento, a palavra adequada nunca me surgiu,
embora soubesse que estava, algures, bem escondida e coberta de poeira,
em algum recanto do meu cérebro. Para cúmulo do azar, o amigo e
detentor desta verdadeira preciosidade também não sabia ou não se
lembrava do nome. Passado algum tempo, quinze ou mais dias, em plena
conversa com uma colega de profissão sobre algo que nada tinha a ver com
isto, foi como se um relâmpago súbito e imprevisto saltasse de uma nuvem
inexistente. Saiu-me a palavra OZALID, completamente descontextualizada.
Parei a conversa. Antes que o diabo me pregasse a partida, peguei num
pedaço de papel e registei-a. Ainda um tanto incrédulo, como que
duvidando do que acabara de me acontecer, abri o computador e escrevi,
no motor de busca, «ozalide». Será que quer dizer «OZALID»? --
interrogou-me a máquina, perante o registo incorrecto que fizera no
pedaço de papel. Respondi afirmativamente. E tinha a confirmação.
A primeira vez que observei este sistema de registo gráfico em
superfícies de grandes dimensões, era eu ainda um jovem na casa dos 15
ou 16 anos. Por esta altura, a minha vida repartia-se essencialmente por
três localidades à beira-mar situadas: Espinho, Porto e Aveiro. No
Porto, porque era aqui que frequentava o ensino liceal; em Espinho,
porque era aqui que vivia; em Aveiro, porque era aqui a casa da minha
avó, onde passava as férias pequenas e alguns fins de semana, quando não
era a avó paterna que se deslocava para Espinho, para estar na companhia
do filho e do neto.
Em Espinho, descobri o que era o OZALID graças ao arquitecto Sérgio
Gonçalves, um amigo ligado também a Aveiro, porque a sogra, com o mesmo
nome da minha avó, era natural daqui. No seu «atelier», vi-o muitas
vezes desenhar os projectos sobre folhas de «papel de engenheiro», uma
espécie de papel vegetal, com a diferença de serem mais encorpadas e
resistentes. Todos os desenhos ou os traçados dos projectos eram feitos
a tinta da china e as letras escritas com a ajuda de escantilhões, com
diferentes tamanhos de letra. Acabados os projectos em folhas de grandes
dimensões, tudo quanto estava desenhado a tinta da china era transferido
para as folhas de «oazalid», do mesmo tamanho, por meio de um processo
com algumas semelhanças com a fotografia. Nesta, as imagens são obtidas
sobre a película recorrendo a uma máquina fotográfica, obtendo-se um
negativo. Revelado o rolo na câmara escura, as imagens em negativo são
passadas para positivo mediante um processo de impressão por contacto ou
por projecção com um ampliador. Utilizando-se um ampliador, a imagem do
negativo é projectada sobre a folha de papel fotográfico, cortada nas
dimensões pretendidas, que podia ir desde o formato 24x36 cm ao formato
9x12. Os diferentes formatos obtinham-se dividindo sucessivamente a
folha ao meio, sempre em ambiente de laboratório, porque as folhas de
papel não podiam ser expostas à luz branca. Os fomatos, por ordem
decrescente, a partir de uma folha 18x24, eram 12x18 e 9x12 cm. Depois
da imagem do negativo projectada durante uns segundos no papel
fotográfico, este era revelado e obtinha-se a imagem positiva. A folha
em «papel de engenheiro» com o projecto ou as imagens desenhadas a
nanquim era colocada sobre a folha de «ozalid», de iguais dimensões, um
quadrado com cerca de 1 metro de lado, e o conjunto (ou sanduiche)
formado pela «matriz» translúcida e o ozalid era exposto a uma fonte de
luz. Em seguida, a folha de «ozalid» era sujeita a uma espécie de
revelação que fazia lembrar os processos da fotografia. Havia, no
entanto, uma grande diferença entre estes dois processos de obtenção de
imagens. Enquanto, na fotografia, eu tinha de trabalhar sob ténue luz,
quase às escuras, no laboratório fotográfico do meu pai, construído na
cave da moradia dos professores na Escola Primária nº1 de Espinho, onde
vivia, as folhas de «ozalid» eram sujeitas a um processo de revelação
dentro duma câmara de madeira com o formato de um prisma quadrado, uma
espécie de caixa fechada com pouco mais de um metro de altura e que
ocupava reduzido espaço, recorrendo a uma solução de amoníaco. E este
procedimento fazia-se sem necessidade de recurso a câmaras escuras.
Tirei pela primeira vez proveito desta técnica de obtenção de imagens de
grandes dimensões anos mais tarde, já no meu terceiro ano de faculdade,
quando precisei de uma planta com a localização de todas as Gafanhas da
região de Aveiro. Fiquei a dever esse mapa à Câmara Municipal de Ílhavo,
corria o ano de 1967. Depois de um inquérito linguístico realizado na
Gafanha do Carmo, durante o período de férias da Páscoa em Aveiro e,
mais tarde, durante as férias grandes, passou esse mapa a fazer parte do
relatório que entreguei para avaliação pelo meu professor de Linguística
Portuguesa. Voltei a contactar com esta técnica de obtenção de mapas e
imagens já definitivamente enraizado em Aveiro, na década de 1980,
graças a um amigo, o arquitecto Barroca, com quem tive oportunidade de
trabalhar e conviver durante bastante tempo.
Na segunda década do século XXI, o «ozalid» é um processo praticamente
extinto. O aparecimento dos computadores e o seu acelerado
desenvolvimento a partir da década de 1990, com «plotters» de grandes
dimensões e fotocopiadores que reproduzem todo o material impresso com a
maior das facilidades, fez com que todas as técnicas tradicionais
desaparecessem.
Para as gerações mais novas, que quase só conhecem as maquinetas
informáticas e também quase deixaram de recorrer às brincadeiras
tradicionais de antanho, vejamos, socorrendo-nos de informação mais
técnica, o que vem a ser o «ozalid». E não será necessário recorrermos a
enciclopédias ou a livros técnicos. Basta-nos utilizar o motor de busca
do computador e escrever a palavra «Ozalid». Eis o que a pesquisa nos
permite descobrir, por intermédio da Wikipedia:
«Ozalid é um tipo de papel usado para imprimir provas tipográficas no
processo de impressão offset monocromático clássico. Através de um
processo químico, com a exposição a luz ultravioleta e a gás amoníaco,
este papel permite reproduzir a imagem a preto e branco de um original
negativo em fotolito (também chamado "filme"), papel vegetal ou outro
tipo de transparência. Este sistema poupava o recurso à complexa
impressão offset. Assim, a impressão neste papel passou a ser sinónimo
da última prova de um trabalho antes de ser definitivamente impresso,
isto é, antes de se fabricar a chapa que dará entrada nas máquinas de
offset.»
Claro que esta definição não corresponde àquilo que pude observar na
prática. Para cúmulo, não tem qualquer semelhança com aquilo que pude
observar in loco. Com ela, qualquer leigo na matéria fica a saber
praticamente o mesmo, ou seja, quase nada, porque o procedimento nem
sequer é explicado. Em termos práticos, não tivesse eu observado o que
anteriormente descrevi e hoje nem saberia da sua existência. Portanto,
sistematizando o que anteriormente expliquei, o arquitecto ou a pessoa
que efectuou o desenho colocava a folha em «papel de engenheiro» sobre a
folha de «ozalid». Depois, o conjunto, com a folha de papel de
engenheiro voltada para cima, era sujeito a um «banho» de luz
ultravioleta. Em seguida, era separada a matriz em papel de engenheiro e
colocada a folha de ozalid, uma folha quadrada com um metro de lado,
dentro de uma caixa de madeira com capacidade adequada, ou seja, a
câmara de revelação do «ozalid» era um prisma quadrangular de madeira
com pouco mais de um metro de altura e uma base quadrada com cerca de 50
cm de lado. Um dos lados era uma porta com dobradiças, que permitia
abrir e fechar a caixa. Pendurado o «ozalid» dentro da câmara, pendurado
ou simplesmente metido no interior, era colocada a solução de amoníaco
na base e fechada a porta, para que os vapores do amoníaco não
contaminassem o ambiente. Ao fim de certo tempo, abria-se a caixa e
retirava-se a folha. O gás de amoníaco tinha «comido» todo o produto
químico da superficíe do «ozalid», excepto a parte que não fora exposta
à luz, correspondente ao desenho a tinta da china, que não deixou passar
a luz ultravioleta. Com este processo, podíamos obter tantas cópias da
matriz quantas quiséssemos. No final, a matriz era guardada, mantendo-a
perfeitamente direita e sem dobras, para futuras utilizações ou, muito
simplesmente, para funcionar como arquivo histórico.
De acordo com a informação fornecida por um aveirense que foi desenhador
e topógrafo na CMA (Câmara Municipal de Aveiro) e na JAPA (Junta
Autónoma do Porto de Aveiro), os ozalides eram «revelados», para
utilizarmos uma expressão por analogia com a fotografia, dentro de uma
caixa de madeira com a forma de um prisma quadrangular, com cerca de 40
cm e porta de guilhotina. Esta caixa estava pendurada na parede, num
canto do patamar das escadas do sótão, onde estava instalada a Sala de
Desenho, no edifício dos actuais Paços do Concelho. O «ozalid» era
enrolado e metido no interior. Colocada a solução de amoníaco, era
fechada a porta de guilhotina e, ao fim de algum tempo, estava o
trabalho concluído.
Actualmente, se as matrizes que permitiam obter os ozalides ainda
existirem, nem será necessária a relativa trabalheira que dava o
processo de duplicação. Bastará repetir o que fizemos com os exemplares
em «ozalid» que nos foram emprestados. Colocámo-los no chão, numa zona
com boa exposição solar, pegámos no telemóvel, com uma maior resolução
que a máquina fotográfica digital, e tirámos as fotografias às duas
metades do mapa da ria. Depois, descarregámo-las para o computador.
Auxiliados por uma boa ferramenta de tratamento gráfico de imagens, não
só juntámos as duas metades, como procedemos à limpeza e correcção de
pequenas deficiências causadas pelo tempo.
Para servir de documento, ilustramos este texto com a imagem de uma das
metades do mapa, tal como ficou registada no telemóvel. Só não
reproduzimos as biqueiras dos sapatos, que a objectiva também apanhou, porque os sapatos nada têm de especial para os nossos
objectivos.
Dito tudo isto, que não é pouco, lamentamos que no original não constem
nem a data nem a autoria deste trabalho. Também não é de admirar que os
autores não tenham colocado os respectivos nomes, uma vez que a base de
trabalho destes e de outros mapas eram geralmente as cartas topográficas
do exército. Seja como for, não deixou de ser uma excelente trabalheira.
E estes particularmente valorizados pelas ilustrações e textos
explicativos em três línguas, coisa que não se encontra nas cartas do
exército, que fomos obrigados a conhecer e utilizar durante o nosso
período de dois anos de serviço militar. Sabemos que, muito
provavelmente, a nossa «relíquia» da Ria de Aveiro será da década de
1960, porque um dos desenhos apresenta o centro da nossa cidade com a
ponte-praça tal como os aveirenses a passaram a conhecer a partir de
1952, ano em que foram concluídas as obras de transformação das duas
antigas pontes de Aveiro numa única. De acordo com a consulta efectuada
no «Calendário Histórico de Aveiro», inserido no espaço «Aveiro e
Cultura», em 25 de Maio de 1952, «foram inaugurados três melhoramentos
de importância decisiva para a cidade: a ponte-praça, o reservatório de
água para o abastecimento da rede urbana e, na Quinta das Agras, o novo
edifício do Liceu Nacional de Aveiro, de acordo com o “Correio do Vouga”
de 31-5-1952. Logo, o mapa da Ria terá de ser posterior a esta data.
Relativamente às páginas disponibilizadas na Internet, tivemos a
preocupação de as programar tendo em conta as modernas tabletes e
telemóveis, bem como os computadores mais recentes, com ecrãs tácteis. O
mapa está reproduzido em quatro resoluções: mil, dois mil, três mil e
cinco mil píxeis de largura. Escolhida a resolução, bastará ampliar a
imagem colocando os dedos indicador e polegar sobre ela e afastando-os.
Para os sistemas com Windows anteriores às actuais versões, por exemplo,
Windows XP Pack 1 e 2 (ou mesmo sistemas anteriores), o utilizador
poderá clicar sobre o rectângulo colorido colocado ao lado da indicação
do tamanho da imagem. Esta opção é também válida para os modernos
sistemas, permitindo, inclusive, uma maior qualidade de visualização.
Para tornar legíveis os quadros explicativos manuscritos no original,
efectuámos a sua reprodução fac-similada.
E chega de explicações. Resta-nos desejar que o presente trabalho possa
ter alguma utilidade para todos vós. E que venha também a ser útil para
os pescadores desportivos, porque este mapa da Ria de Aveiro tem a
invulgar característica de indicar as diferentes espécies de peixe que
por cá existiam. Esperemos que a informação ainda seja válida nos tempos
que correm.
Aveiro, 29 de Julho de 2017
Henrique J. C. de Oliveira |