Artur Jorge Almeida, Requiem pelas muralhas de Aveiro, In: "Boletim da ADERAV", n.º 12,  Outubro 1984, pp. 38-39.


Requiem pelas muralhas de Aveiro

 

Abatem as muralhas pedra a pedra,
ruem a pouco os bastiões robustos.
Nas brechas a figueira brava medra,
de envolta com maléficos arbustos.

                António Sardinha

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Vista geral da muralha no séc. XVIII. Painel de azulejos existente na estação de caminhos de ferro de Aveiro.

Decorria o ano de 1418. A fisionomia de Aveiro começava a mudar. O Infante D. Pedro, Duque de Coimbra e donatário de Aveiro, manda cercar a vila de muralhas. Quando, em 1422, as obras terminaram, Aveiro, orgulhosamente, ostentava as suas muralhas, idênticas às da Cidade de Jerusalém, como o fazia notar uma inscrição colocada junto da Porta do Côjo (1).

Eram dotadas de nove portas: a Porta da Vila (ou da Cidade, a partir de 1759), do Sol, do Campo, do Côjo, da Ribeira, do Cais (ou do Norte), do Alboi, de Rabães e a de Vagos, bem como de alguns postigos e torreões.

O decorrer dos tempos fez sentir os seus efeitos, pelo que tiveram de ser restauradas no reinado de D. Manuel I. Com a entrada do Prior do Crato sofreram bastantes danos, tendo sido novamente restauradas no reinado de D. João V. No ano de 1806, começaram a ser demolidas, a fim de a sua pedra ser utilizada nas obras da barra. Mais tarde, esta foi também aproveitada na construção do edifício do Liceu. 

Vestígios da muralha criminosamente destruídos.

Em 1852, o Presidente da Câmara, Dr. Bento José Rodrigues Xavier de Magalhães, em discurso que havia preparado para receber a Rainha D. Maria II, referia-se ao que ainda restava das muralhas, dizendo: «Guardamo-las com desvelo, porque vão levando às gerações a memória gloriosa do homem grande, que as ergueu aí!» (2). Bela frase de um Aveirense, que compreendia bem o significado histórico que elas representavam e a herança cultural que transmitiam.

Pena foi que, recentemente, e apesar dos esforços desenvolvidos pela ADERAV, os responsáveis pela Câmara Municipal não tenham obstado à destruição dos últimos vestígios visíveis da muralha (3). Correspondiam estes restos à Porta de Rabães e ao torreão que lhe ficava contíguo. Torreão esse que, por ser o mais imponente, era vulgarmente apelidado de «Castelo».

Escondidos dos olhos do público menos atento num quintal do ângulo da Travessa das Beatas com a Rua Homem Cristo Filho, podiam facilmente tornar-se, mediante um arranjo singelo, num memorial ao homem a quem Aveiro tanto deve e que, vítima da intriga política, tombou honrosamente nos campos de Alfarrobeira.

Não o quis o destino — ou os responsáveis autárquicos; e, em Novembro de 1983, as máquinas destruíram estes restos que, até então, tinham obstinadamente permanecido no seu lugar em frontal desafio à estupidez humana. Tombaram ingloriamente, como tombou outrora a Igreja Matriz de S. Miguel, que o Infante D. Pedro mandara restaurar, e a casa da Rua Direita, onde, segundo a tradição, o Infante teria vivido.

Lá do Além, o Infante D. Pedro (se não voltou já as costas, cheio de amargura, a esta terra ingrata), deve rezar para que não destruam também o Convento de S. Domingos, de que foi fundador...

 

ARTUR JORGE ALMEIDA

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NOTAS:

(1) - RANGEL DE QUADROS, «Aveiro (Apontamentos Históricos», vol. II, p. 13 (fotocópia de recortes existentes na Biblioteca Municipal de Aveiro).

(2) - Idem, ibidem, p. 37.

(3) - Vd. Boletim da ADERAV n.º 7, p. 30.

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