Turismo etnográfico

 

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Atravessada toda a vasta zona plana, onde poucas elevações se destacam e prendem a nossa atenção, sempre a uma razoável velocidade, alcançámos o povo de Canambua.

— Pára aqui. — gritei para o condutor. — Vamos fazer uma pequena paragem. Olha ali, Graça Marques.

— Olho o quê, Ulisses? É um povo minúsculo. Não tem nada com interesse.

— Não tem?! Como não tem? Olha para ali. Não estás a ver? Não é a povoação. Não são as duas ou três cubatas. Olha para ali, para aquele tipo tão castiço, a limpar os dentes.

— Não vejo qual o interesse.

— Não vês? Pois vejo eu.

Saltei da viatura. Peguei na máquina e tirei uma fotografia ao velhote. Depois, meti conversa com ele. Enfiei a mão no bolso direito do camuflado, a meia altura da perna, e tirei um maço de cigarros. Procurei fazer-me entender e lembrei-me, de repente, do meu antigo companheiro, o Joaquim. Que será feito dele? Por onde andará? Estará bem? Falando de vagar e com gestos, consegui comunicar com o velhote. Sorridente, aceitou o maço de cigarros que lhe ofereci e percebi perfeitamente o que estava a fazer: a tratar da higiene oral, com um instrumento originalíssimo. Sem água nem pasta dentífrica, o velhote estava a tratar da limpeza da boca, de uma fiada de magníficos dentes brancos que contrastavam com a pele escura da cara. E a escova? Do mais natural e original que até agora encontrei. Tratava-se de um pau, com um comprimento mais ao menos idêntico ao dos lápis com que escrevemos. Uma das extremidades era afiada, em ponta fina, para limpeza das cavidades e zonas intersticiais, entre os dentes. A outra, uma autêntica escova, parecida com as nossas, constituída pelas fibras soltas da própria madeira. Friccionava-as sobre o esmalte branco dos dentes, perfeitos, tal como nós fazemos habitualmente quando os lavamos.

— Qual foi o interesse de teres gasto uma fotografia com o velhote, Ulisses?

— Qual o interesse? Estás a deixar-me completamente baratinado, Graça Marques! Completamente boquiaberto! Não estás a ver o interesse? Um registo etnográfico perfeitamente invulgar? Até deverias estar interessado, como médico. Isto até é da tua área! Ou a higiene oral não será um procedimento básico para a saúde das pessoas?

— Não gozes comigo. Estás a querer dar-me alguma lição?

— O capelão não diz nada? — perguntei, em alta voz, voltando-me para o capelão que assistia, impávido e sereno, lá do alto da caixa da Berliet, à conversa entre mim e o médico.

Não consegui nada em minha defesa, a não ser um fugaz sorriso, que penso haver percebido. O capelão preferia manter-se em terreno neutro, não tomando o partido de nenhum de nós. Despedi-me do velhote, cumprimentando-o com um aperto de mãos.

— Vamos embora, Graça Marques. Ocupa o teu lugar, que temos de prosseguir a viagem.

Reocupámos os nossos lugares e arrancámos.

— Daqui a pouco, vamos ter muitas paragens e motivos fotográficos.

— Vamos?

— Vamos. Não te lembras da viagem de ontem? Da conversa que tive quando parámos na picada ao lado da Quimabaca? Estamos a chegar à zona. Canambua foi o primeiro povo, para quem vem do Cuango. Agora, daqui para a frente, encontramos muitas sanzalas. As mais importantes, vamos voltar a atravessá-las.

— Visitaste-as todas, Ulisses?

— Todas, não. Houve uma ou duas que nunca consegui descobrir. Uma delas, desconfio que já não deve existir. Nunca pude saber onde fica. E a maior parte dos nativos a quem perguntei disse-me que nunca tinha ouvido falar.

— Como é que sabias da sua existência, se nunca aqui estiveste?

— Estive aqui durante quase um mês, ou será que já te esqueceste?

— Não é isso. Não me esqueci. O que quero dizer é que nunca aqui estiveste, antes de teres vindo fazer o recenseamento.

— Ah! Pois! Quando vim para aqui, trouxe comigo uma relação de todos os povos da região. Uma listagem de outros tempos, fornecida juntamente com o modelo de inquérito. Uma relação seguramente de outras épocas. Por isso é que me fartei de andar inutilmente à procura de duas sanzalas. Nunca consegui localizá-las. Desconfio mesmo que já não devem existir há muitos anos. A relação deveria ser da década de 1960, da altura em que eclodiu o terrorismo em Angola. Além do mais, muitas sanzalas eram de povos muito reduzidos, isto é, com meia dúzia de pessoas. Devem ter sido reagrupados, para formarem sanzalas com maior número de habitantes, reposicionadas em zonas de melhor acesso. Olha, estamos a chegar a Buatelele. Estás a ver a quantidade de gente? Sempre há mercado. Pára no meio, quando chegarmos — gritei para o condutor. — Vamos fazer aqui uma pausa prolongada, antes do almoço.

A seguir ao povo, numa ampla zona quase sem árvores, ao lado da picada, ergue-se uma edificação comprida, sem paredes laterais, coberta por um amplo telhado de colmo. Numa extremidade, um grupo de mulheres faz fila. Mais adiante, uma grande quantidade de sacas brancas amontoadas.

Desço da viatura. Antes de me aproximar para conversar com as pessoas, tiro a minha primeira fotografia, sem me preocupar com o médico, que desceu atrás de mim. Estou mais preocupado em procurar recolher elementos do que em estar a dar instruções sobre fotografia. Obtida a imagem, dirijo-me ao indivíduo que está junto de uma balança a fazer pesagens.

— Bom dia! — Apresentei-me, cumprimentando com um aperto de mãos.

Sou cumprimentado pelo civil, um indivíduo branco, coadjuvado por outro de cor.

— Isto branco, que estão a pesar, é algodão?

— Não. Isto é punga. Aqui não é região de algodão.

Escusado será dizer-vos que estou farto de saber que não estava numa região de algodão. O algodão, se é que existe nalgum recanto do sector do Uíge, não se encontra na área que calhou ao meu batalhão. Isso é lá mais para o sul, para o sector contíguo, que creio ser Malanje. Aqui, o café. Um café excelente, por sinal! Mas não pode ser consumido sozinho. Parece autêntica pólvora. Provei, em tempos, a bebida que me deram os nativos duma sanzala e andei a tremer como varas verdes durante todo o dia. O café da região só é bom depois de ter sido lotado com outras espécies. Claro está que não podia mostrar conhecimentos ao indivíduo com quem estava a falar. Tinha apenas de arranjar um pretexto para meter conversa e, sobretudo, dar a impressão de ignorância, para transmitir ao meu interlocutor uma ideia de superioridade. Aprendi, quando andei aí por Portugal a efectuar os meus inquéritos linguísticos, que as pessoas são muito mais espontâneas, quando verificam que falamos como elas e se sentem com mais conhecimentos do que nós. Ficam muito mais comunicativas e como que se esbatem as barreiras sociais. O meu interlocutor pareceu reagir positivamente à minha aparente ignorância e tornou-se falador. Para acentuar ainda mais a superioridade dele, fingi uma grande surpresa e espanto.

— Isto não é algodão?! Pensei mesmo que era! Nunca tive a sorte de ver algodão, sem ser nas roupas que trazemos. O que é a punga? Um vegetal para a alimentação?

— Não, alferes. É um vegetal, mas não serve para a alimentação...

— Então para quê?

— Isto é uma fibra vegetal.

— Pois! Mas para que serve? É para extrair óleo?

O meu interlocutor sorriu, perante a ignorância que lhe estava a mostrar.

— Não, alferes. O óleo extrai-se das sementes. Por exemplo, da ginguba.

— Da ginguba?

— Sim, alferes. O alferes está cá há pouco tempo... Não sabe o que é a ginguba?

— Não sou assim tão ignorante como pensa. A ginguba conheço eu bem. Tenho comido bastante, torrada sobre chapas de zinco, na companhia dos sobas....

— Dos sobas, alferes?

— Sim, dos sobas. Já aqui passei quase um mês com um pequeno grupo de soldados, numa sanzala. Mas nunca encontrei isto que aqui estão a comprar aos nativos. Por isso é que lhe estou a perguntar o que é e para que serve. Gosto de aprender com quem sabe mais do que eu. E como tenho um especialista na minha frente, que é o senhor, agradeço-lhe os seus esclarecimentos.

— A punga é uma fibra vegetal, alferes. É uma fibra como o sisal. Já ouviu falar?

— Na punga ou no sisal?

— Nas duas coisas, alferes.

— No sisal já ouvi falar. Mas nunca vi. Por acaso, estou até a lembrar-me que, na terra onde vivi, há uma fábrica...

— Onde é que o alferes viveu?

— Vivi durante muitos anos em Espinho, uma vila da metrópole, perto do Porto...

— Também conheço, alferes.

— Nesta vila, há uma fábrica de cordas, que utiliza o sisal como matéria-prima. Mas de punga, foi agora a primeira vez que ouvi falar.

— Pois, alferes, a punga é como o sisal. Serve para fazer, olhe, por exemplo, os sacos para as batatas, está a ver? Sabe o que é? É para isto. E para outros fins, alferes.

— E como é que os nativos sabiam do mercado? Como é que as mulheres sabiam que estavam aqui a comprar a punga?

— A gente avisa-os. Isto é só nas épocas próprias. Quando chega a altura são avisados...

— Pois! Mas quem é que os avisa? Aqui não há rádio nem telefone...

— É através dos regedores... A administração, alferes. Depois, passam a palavra aos sobas e eles mandam avisar.

Ouvidos todos estes esclarecimentos e obtidas as respostas a muitas outras perguntas, agradeci as explicações e aproveitei para explorar a zona, na companhia do doutor e do capelão.

— Malta, temos mais dez minutos para dar uma volta. Depois arrancamos.

A certa altura:

— Olha para ali, Graça Marques. Estás a ver? Temos concorrentes. Há mais fotógrafos.

Junto a uma árvore, um furriel estava de joelhos. Com a máquina apontada, enquadrava um grupo de mulheres e crianças para a fotografia. Achei curioso o conjunto. Registei-o na película, procurando apanhar também o fotógrafo.

Agora, que vos estou a escrever à distância de alguns dias, penso que as fotografias terão interesse, daqui por uns tempos. Além dos aspectos humanos, tive o cuidado de enquadrar os conjuntos, registando elementos relacionados com a região e os costumes: os cestos típicos com os quais transportam os produtos, alguns deles colocados sobre os telhados de colmo. São também de realçar os trajes típicos das nativas, que se destacam pelo colorido dos padrões geométricos dos tecidos, alguns fazendo lembrar certos motivos que encontramos em azulejos.

Já na Berliet e ainda com algum pessoal voltado para mim, entre os quais o furriel mecânico que nos acompanhou, registei a minha última foto do mercado de Buatelele, apanhando toda a zona, incluindo o capelão, sentado na caixa da viatura, próximo da cabine e imediatamente atrás de mim e do médico.

— A viagem está cheia de surpresas, Graça Marques. Ainda temos mais um mercado, depois da Quimabaca. Ainda falta o nosso encontro com os sobas. Quase de certeza que devem estar à minha espera.

— À tua espera, Ulisses?

— Sim! À minha espera. Sou amigo deles todos. O soba da Quimabaca foi sempre o meu companheiro de viagem durante os recenseamentos. Andou quase sempre comigo. Ia todo inchado, sentado no meu lugar; e eu atrás, com os soldados.

— Levava-lo contigo para os recenseamentos?

— Sempre que a distância não era exagerada e que ele queria ir comigo. Tratava-o como se fosse o meu pai.

— Tu estás a sair-me um grande exagerado! Bem se lá lembram eles de ti!

— Olha que lembram, Graça Marques. Tal como eu me recordo deles! Aliás, por que achas que fui à cantina antes de sairmos do Cuango? Trago os bolsos cheios de maços de tabaco. É para lhes oferecer. E bem merecem! Foram sempre de uma extrema simpatia, enquanto estive a viver com eles.

Alguns quilómetros depois.

— Olha para ali. Ali em cima. Vês aquelas cubatas, no cimo da colina? É a Quimabaca. Estive ali, no meio da sanzala, a viver durante um mês. Não chegou, mas quase! Quase um mês! Daqui a pouco, chegamos ao Quicombo. Estás a ver aqui, no meu mapa?

Tirei de um bolso do camuflado a reprodução da carta topográfica, que fiz em tempos, em papel vegetal, e mostrei ao médico os vários pontos por mim assinalados.

— Estás a ver a quantidade de povos que visitei e recenseei? Os mais importantes são estes quatro: Buatelele, que deixámos há bocado, a Quimabaca, a poucos metros da picada que estamos a percorrer, o Quicombo, onde vamos parar daqui a pouco, se lá estiver a decorrer o mercado, e a Regedoria de Marimba, próxima desta bifurcação. Estás a ver aqui? Seguindo em frente, vai dar à picada do Alto Zaza. Nós vamos cortar à direita, directos a Quimbele, por onde já viemos. É sempre no meio de mata cerrada, como já viste ou deves ter visto. Não viste bem, porque estava ainda pouco claro, à hora a que aqui passámos. Mas agora, em pleno dia, vais ter a possibilidade de contemplar paisagens espectaculares, nas zonas mais elevadas. Vais ver um mar verde, ondulado, de acordo com as elevações do terreno. Só encontramos povoados quando chegarmos à zona em redor de Quimbele. Entre a Regedoria de Marimba e Quimbele, é tudo mata cerrada.

— Olha, Ulisses. Larga o mapa e olha para a estrada. Estamos a chegar ao Quicombo. O soba não nos enganou: há mercado.

— Um grande mercado, Graça Marques! Repara na quantidade de gente! Sabes o que é que isto me está a fazer recordar?

— Não. O quê?

— A feira semanal de Espinho.

— A feira de Espinho?! Que exagero! Conheço a feira de Espinho. Não tem nada a ver!

— Claro que não, Graça Marques. Mas... Ainda assim... É o que me faz lembrar! É o maior mercado a que já assisti nesta região! Também não admira! Com a quantidade de povos à volta da Quimabaca...

De facto, se vocês tivessem tido a oportunidade de presenciar o que os meus olhos me mostraram, também recuariam no tempo, como me sucedeu, e se lembrariam da feira de Espinho. Claro que não é a mesma coisa! Mas, para efectuarmos uma avaliação correcta, necessitamos de pontos de referência, temos de ter outros modelos. E o modelo que guardo melhor na memória é a feira de Espinho. E existem muitíssimas semelhanças, esta é que é a verdade! Uma vasta zona cheia de multidão colorida, contrastando com o vermelho barrento do chão! Viaturas espalhadas numa ampla zona. Filas de gente, ao lado de um edifício coberto com chapas de zinco, à espera de trocarem aquilo que trazem pelo dinheiro que lhes permitirá adquirirem bugigangas várias e outros produtos indispensáveis. Mercadorias expostas no chão, formando largas manchas contrastantes com o fundo avermelhado; na orla da clareira, estendais de tecidos multicolores de padrões geométricos, em cordas esticadas nas árvores, delimitando uma área pisada por inúmeros pés, uns descalços, outros com sandálias e sapatos toscos. Uma autêntica feira! Um local de comércio, concorrido de gente, com as mais variadas e desencontradas mercadorias.

— Malta — gritei para o pessoal da Berliet e do unimogue, que vinha atrás de mim. — Malta, vamos parar aqui, durante meia hora, mais ou menos. O almoço fica para depois, a caminho da Regedoria de Marimba. Aproveitem bem a pausa. Vamos, capelão? Vamos às fotografias, Graça Marques?

— Olha para ali, Ulisses. Vais ter de deixar as fotografias para depois...

Acabei de descer da viatura e olhei. De facto, vinham os nativos ao meu encontro. Entre eles, o soba da Quimabaca, de vestimenta creme-claro e chapéu tipo “capacete colonial”, a condizer. Com ele, um de cada lado, os sobas de duas sanzalas próximas, devidamente indumentados e com boné de pala, atestando a importância e papel social. Nas mãos, traziam galinhas pretas, penduradas pelas patas e presas com atilhos, pequenas tiras de tecido rasgado. Fui ao encontro deles, para os cumprimentar. Atrás de mim, o capelão e o médico, e também os olhares curiosos do meu pessoal, alguns ainda em cima da viatura, a prepararem-se para descer. Ia para estender a mão e cumprimentar as autoridades locais, mas vi-me subitamente com elas ocupadas pelas galinhas que me estendiam como oferta. Peguei nelas e passei-as ao capelão, mais perto de mim:

— Agarre-me aqui nos bichos, capelão, que eu tenho de libertar as mãos para poder cumprimentar os meus amigos.

Cumprimentei cada um deles, prolongando intencionalmente o aperto de mãos ao velhote que me acompanhou, durante quase um mês, em várias deslocações às sanzalas dos arredores. Notei nele uma satisfação especial e dei-lhe um aperto diferente, envolvendo-o nos meus braços.

— Trago também uma lembrança para os meus amigos. Não me esqueci de vós.

Enfiei as mãos nos bolsos do camuflado e tirei os vários maços de tabaco, comprados na cantina do Cuango. Distribuí-os pelos três amigos, deixando apenas um para o resto da viagem. Entretanto, tínhamos, à nossa volta, uma razoável quantidade de homens e crianças.

— É preciso tirarmos uma fotografia para recordação deste momento. Abram espaço.

Fiz o gesto com as mãos para as pessoas se afastarem, peguei na máquina que trazia a tiracolo e passei-a ao doutor.

— Pega lá. Regula a máquina, tal como te expliquei. É só focar e prestar atenção à célula fotoeléctrica. Tira-nos uma fotografia.

Coloquei o soba da Quimabaca à minha esquerda, passando-lhe o braço por cima do ombro. Disse aos outros dois que se colocassem um de cada lado, deixando-me a mim e ao elemento mais velho no meio.

— Capelão, passe-me essa galinha. Essa, a mais gorda, que tem umas coxinhas bem feitas. É para ficar na foto.

— Olá! Estás a apreciar as coxas às galinhas, Ulisses?

— Deixa-te de disparates, Graça Marques. Se ainda fossem de umas miúdas jeitosas, ainda vá que não vá!...

— Pega lá, Ulisses. Deixem-se de conversas pornográficas e despachem-se...

— Tenha calma, capelão. O Graça Marques está a querer gozar comigo... Mas eu não me importo! O que é preciso é boa disposição.

Os sobas, na extremidade do grupo, puseram-se em posição de sentido, para ficarem numa pose de autoridade, com as mãos pendentes e esticadas. A multidão em redor voltou-se para o fotógrafo, alguns também com as mãos esticadas, como se estivessem em sentido. E ficámos registados para a posteridade, tendo por enquadramento o estendal dos produtos, que alguns dos meus soldados iam mirando, indiferentes ao «passarinho» que não saiu da objectiva da máquina.

Depois do momento, quase solene, do encontro e da fotografia, aproveitámos para uma volta atenta pelo recinto do mercado, reforçada pelo registo de algumas imagens na película.

Andei sempre com uma vasta comitiva. Não me refiro nem ao médico, nem ao capelão. Estou a falar dos nativos e dos sobas, que me seguiram por todo o lado, atentos e deliciados com a minha curiosidade, ora a mexer nas coisas expostas e a meter conversa com os vendedores, para saber preços e utilização, ora a perguntar às clientes acerca do uso dos objectos que traziam, especialmente dos cestos confeccionados na região e com os quais transportam, às costas, os produtos que trazem para venda... E também para os que adquirem com o dinheiro obtido.

Os bons momentos passam depressa, quase sem darmos por isso. E a meia hora de paragem no mercado do Quicombo, na companhia dos sobas, passou com a rapidez de um fósforo a arder. Em breve, estava o médico a fazer-me sinal: a apontar para o pulso esquerdo.

— Certo! Entendido, Graça Marques. Estás a dizer-me que são horas de abalar. Vá, pessoal! — gritei para os furriéis e soldados que estavam perto de mim. — Está na hora de retomarmos a viagem. Olha, — disse para o condutor da Berliet, que entretanto se aproximara — paramos na primeira linha de água que atravessarmos, antes da Regedoria de Marimba. Temos que almoçar.

— O alferes quer levar a Berliet até lá, para fazer o gostinho ao dedo?

— Não, rapaz. Obrigado. Hoje, conduzes tu. Hoje, só pego nas minhas coisas... na minha tralha, especialmente na máquina. Só se estiveres cansado e quiseres que te substitua...

— Não, alferes. Estou bem.

Dei um aperto de mãos aos sobas e um abraço prolongado, muito especial, ao velhote da Quimabaca, ao meu antigo companheiro de algumas viagens de recenseamento, de conversas e confraternizações junto ao lume. Por fugazes instantes, vi-me recuado no tempo, sentado em frente à cubata dele, a torrarmos ginguba sobre uma chapa e a contarmos histórias. E revi o meu jovem companheiro, o Joaquim, sempre atento ao que dizíamos e que nos ajudava a dissipar qualquer problema de comunicação que surgisse.

Já na Berliet e em andamento, segui em pé, durante um longo pedaço, voltado para trás, para me despedir dos nativos que me diziam adeus.

— Só falta que eles tirem os lenços, Ulisses, para te dizerem adeus...

— Não queria mais nada, capelão? Isto aqui não é Fátima! E eles, se calhar, nem sabem o que são lenços, quanto mais...

— Quanto mais o quê, Ulisses?

— Nada, capelão. Gozemos a paisagem até à próxima paragem.

— Há mais paragens?

— Claro, capelão. Não quer almoçar? A próxima vai ser daqui por uns minutos, na primeira linha de água que atravessarmos...

O resto da viagem não necessita que gastemos mais combustível da esferográfica. Tirando a breve paragem para o almoço e algumas brincadeiras e piadas do meu pessoal, durante a distribuição das rações de combate e, sobretudo, depois, por me ter esquecido de trazer a lamparina e a máquina do café, não me parece que haja nada de relevante para vos dar a conhecer. Por isso, prego a fundo para acelerarmos a caneta, tanto mais que estamos chegados a Quimbele, a muito boas horas, a meio da tarde, muito a tempo de irmos tomar um chuveiro, mudarmos de roupa e descansarmos um pouco antes do jantar. E, depois, irmos ao cinema. Hoje passa o filme «007 Ordem para matar». Já que somos uns felizardos, porque nunca precisámos de utilizar as nossas armas, fiquemos pelo tiroteio dos filmes de James Bond. Não falta neles acção e cumprimentos bélicos. O que vale é que o herói deve estar protegido por um escudo invisível. Sai sempre incólume e de fatinho impecável, como acabado de sair da lavandaria, sem a mais pequena ruga e sujidade por maior que seja a barafunda.

Ah, é verdade, ia-me esquecendo de uma coisa importante, antes de encerrar esta enorme pilha de aerogramas e deixar o café de Carmona, de onde vos estou a escrever.

 

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